quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

O TEMPO DO COTIDIANO E O TEMPO HISTÓRICO


Mauro Luis Iasi*
 iasi tempo histórico

 
“Seria tudo o que vejo natural, e estaria eu doente,
ao desejar remover o irremovível?
Li canções dos egípcios, dos homens que construíram as pirâmides.
Queixavam-se dos seu fardo e perguntavam
Quando terminaria a opressão. Isso há quatro mil anos.”
– BERTOLT BRECHT


O tempo flui indiferente às mazelas e pequenas catástrofes daqueles que o criaram. Mais uma dimensão daquilo que se estranha e volta contra seus criadores como uma força hostil que parece controlá-los, mais uma vereda do fetichismo e da reificação, mais uma face de tempos sombrios que nos couberam atravessar.
O tempo é uma criação humana. Na natureza as coisas simplesmente são. Elas têm seus ciclos de nascimento vida e morte, acendendo e apagando segundo a necessidade, nos dizia Heráclito de Éfeso. No entanto, as coisas, orgânicas ou inorgânicas, existem e percorrem seus caminhos sem a dimensão do tempo – este é uma construção do ser social na medida em que não apenas existe, mas ousa produzir as condições de sua existência rompendo os limites das barreiras naturais, tornando-se um ser histórico e social.
Em nossas consciências imediatas o tempo se apresenta como único, como um fluxo dentro do qual se dá a trajetória das coisas e dos seres, de maneira que nossa impressão é que existe fora de nós, que dias e noites se sucedem, formando a carne dos dias que fenecem, somando-se em semanas e meses, até que anos e décadas anunciam a proximidade do fim inexorável. Tal fluxo existe em si e nós nos jogamos em sua corrente para viver o que nos cabe. Pulamos de onde? Bom, João Ubaldo Riberio em seu Viva o Povo Brasileiro, descreve a curiosa tese do “puleiro das almas”, no qual aguardamos nossa vez de entrar na dimensão temporal e mundana. Parece-me tão pertinente como qualquer outra tese religiosa ou filosófica.
Marilena Chauí, que sempre nos trás elementos interessantes, nos lembra que na Antiguidade se concebia duas dimensões: a Cósmica como um ciclo perene e eterno, portanto atemporal, e um tempo dos seres, linear e finito, seja dos seres, seja das cidades e impérios (Brasil: Mito fundador e sociedade autoritária, Perseu Abramo, 2000, p. 70). Trata-se da famosa diferenciação de uma dimensão temporal e mundana e outra atemporal e divina, própria da consciência social medieval.
De qualquer forma, nossa consciência parece nos indicar que estamos dentro de um fluxo que se encontra dentro de outro, que, por sua vez, encontra-se dentro de outro. Vivemos os dias que fluem dentro de períodos históricos que fluem dentro de séculos e milênios que constituem as eras. O que diferencia estas dimensões não é apenas o aspecto quantitativo (dias, anos, milênios), mas há uma diferença de ritmo e de substância que nos interessa. O tempo cotidiano não apenas se dá no ritmo das horas, dias, semanas, meses e anos com os quais tecemos a trama que constitui nossa vida, mas agimos nesta dimensão temporal premidos pela imediatez, pela ultrageneralização, pela heterogeneidade das esferas do trabalho, da linguagem, da vida privada. Como nos demonstra José Paulo Netto, seguindo as pistas de Heller e Lukács, não há um ser humano sem vida cotidiana, “enquanto espaço-tempo de constituição, produção e reprodução do ser social, a vida cotidiana é ineliminável” (José Paulo Netto e Maria do Carmo B. De Carvalho, Cotidiano, conhecimento e crítica, São Paulo, Cortez: 2012).
No entanto, apesar de “insuprimível” o cotidiano é histórico. Isto é: não é sempre o mesmo, pois trata-se da constituição, produção e reprodução de uma forma determinada de vida, uma vida histórica, portanto, nos remetendo a outro ritmo, aquele dos períodos históricos de constituição dos modos de produção, que não pode ser concebido a não ser em séculos e milênios, como pensam Marx e Engels. Ocorre que este tempo histórico tem também suas mediações, na história concreta das formações sociais, da dinâmica da luta de classes, no jogo político do nascimento, vida e morte dos Estados e formas de governo, na constituição de uma superestrutura política e jurídica, na conformação de uma determinada consciência social, de uma cultura e de suas múltiplas expressões.
Esta segunda dimensão, dentro da dimensão histórica mais geral, encontra sua fronteira com o tempo cotidiano em conjunturas determinadas. Como se visualizássemos uma linha que a todo momento pudesse cortar o corpo da história com um eixo que tem sua raiz numa certa conjuntura na qual os homens e mulheres vivem seu cotidiano, transpasse um período histórico da formação social e corresponda a um ponto determinado do desenvolvimento do modo de produção que os inclui.
A simultaneidade destas três dimensões temporais, ainda que não seja percebida na “superficialidade extensiva” da consciência imersa no cotidiano, atua de forma bem objetiva no acontecimento histórico.
Uma grávida e seu marido marceneiro buscam uma manjedoura onde possam parir o messias. Fazia frio na noite do deserto. Estrelas gélidas e indiferentes pontuavam o firmamento, enquanto apenas uma parecia indicar o caminho. O casal sentia fome e frio – alegria pelo filho que vinha, mas apreensão pela situação. Esta trama não bóia no nada, tem local e tempo. Estamos na Palestina, num certo momento do desenvolvimento do Império Romano que impunha ali seu domínio, através do Rei de Israel – Herodes – garantido por poderosa força militar enviada por Antônio, imperador romano. Seu governo consolidara-se no ano 31 a. C.
Não importa se o calendário, confuso que estavam os tempos, passaria pelo ano zero com o nascimento de tão esperada criança, começando a contagem de novo. As três dimensões do tempo se chocavam naquela noite. A família pobre a espera do rebento, as dores do parto e o orgulho esperançoso do pai; o governo de Herodes e seus mega empreendimentos, sua corte de grande influência helênica de cultura refinada, havia chegado ao poder derrubando mais de um século da dinastia hasmonéia, angariando simpatias e antipatias por sua proximidade com os romanos.
A grandiosidade de seus monumentos fariam parecer eterno seu poder, como Roma, no entanto, Herodes morrerá cerca de quatro anos depois e Roma sucumbirá e dolorosa fragmentação até a deposição do último imperador romano em 476 d. C., enquanto a pobre criança perseguida, presa quando adulta, torturada e executada como criminoso na cruz ao lado de ladrões, será a base de uma religião que suplantaria a grandiosidade dos templos de Herodes e o Império que executou o homem para tornar suas ideias imortais.
Ainda que a exata conexão dos fatos e das dimensões temporais só possam ser averiguadas com o próprio desenvolvimento da história, ele estavam lá, presentes no momento dos acontecimentos cotidianos. Herodes caminhava já para sua morte, assim como germinava no grandioso Império Romano a decadência que levaria à sua queda.
Vivemos, já dizia Hegel ao seu tempo, sempre a morte de um mundo no momento em que germina outro, mas no âmbito da vida cotidiana temos a ilusão da eternidade do presente, sempre foi assim e sempre será, grita nossa consciência prenha de ultrageneralização. É difícil separar as pedras que caem em ruínas, pois são as mesmas que edificam as novas fundações daquilo que se constrói. São lamentáveis os patéticos esforços daqueles que se agarram às ruínas e zombam dos esforços dos construtores, assim como é muito difícil desprender-se da miséria dos tempos para ver além da noite que parece eterna.
Sempre me causou estranhamento a persistência daqueles que moram perto de vulcões ativos. Constroem suas casas, cultivam a terra e erguem suas cidades, criam seus filhos, ao lado do caminho da lava que ainda há pouco corria fluida e incandescente. Correm desesperados ao menor tremor e ameaça da gigante boca de fogo e destruição, mas logo voltam para reconstruir suas vidas em terras renovadas e férteis. Mas, talvez, assim sejamos todos nós, este estranho ser que se denomina de humano. Somos construtores de futuras ruínas, nascendo agora para morrer depois, querendo acreditar ser eterna a vida que temos, o amor que encontramos, os laços que nos unem. Talvez.
Toda crise é enorme para aquele que a vive. Maldizemos nosso tempo, a desgraça da vida, a frustração amorosa como sendo a porta que sela o destino de nossas vidas… nunca mais serei feliz… mas, a vida segue. Nem sempre nós podemos fazer o mesmo.
Aceito o caráter insuprimível do cotidiano, mas a história que se abre é um fluxo feito por nós, ainda que alienada, de forma que da mesma maneira que produzimos a história que nos aprisiona na reificação, podemos igualmente, produzir as circunstâncias que podem nos emancipar. Talvez.
De uma coisa temos certeza, estes tempos vão passar e outros virão. Nossa decisão é nos inscrever nas fileiras daqueles que os construirão na perspectiva da emancipação humana. Uma das vantagens de se pensar com base no tempo histórico é essa. Tal perspectiva não tem o poder de eliminar as mazelas do cotidiano, mas nos permite olhar para elas e vislumbrar a exata estatura das coisas. E elas, meus caros, hoje em dia, são pequenas… muito pequenas.
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* Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
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