segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Os filantrocapitalistas vão salvar o mundo?

Adriano Campos* 
 
As estimativas variam entre 225% a 356% do PIB mundial. A gigantesca proporção do setor financeiro, assim como a sua composição, refletem as transformações do capitalismo mundial na última década: desde o ano 2000, o valor dos títulos de dívida pública emitidos pelo Estados quase que triplicou, sendo notória a crescente falta de investimento na economia real. A consequência é uma polarização social crescente, cujos sinais estão à nossa disposição: enquanto a Forbes celebra os 30 melhores gestores globais com menos de 30 anos, os números da OIT confirmam o direito ao trabalho como uma miragem para toda uma geração de novos trabalhadores. Ao longo da história, nem à boleia do Deloren conduzido por Marty Mcfly (Regresso ao Futuro) conseguiríamos recuar a um mundo com uma concentração de renda tão alta como a de hoje - apenas comparável à realidade descrita nos romances de Charles Dickens ou Victor Hugo. Mas em meio à catástrofe provocada por este sistema predatório, ouvimos, com cada vez mais frequência, vozes improváveis convocando a uma militância pela alteração do paradigma.

Da Fundação Gates ao Senhor Facebook

O primeiro aviso veio de Warren Buffet, em 2006, ao afirmar que "Há uma luta de classes, certo, mas é a minha classe que está a ganhar". Nesse mesmo ano, o magnata da finança tentou equilibrar a balança ao doar 85% da sua fortuna a cinco fundações, entre as quais a fundação Bill e Melinda Gates. Criada em 1997, a maior fundação filantrópica do mundo, que gere um valor equivalente ao PIB da Lituânia, tem-se destacado pelo combate a doenças, como a malária e a tuberculose, e pelo incentivo à escolarização de crianças pobres nos E.U.A. Os prémios internacionais pela ação meritória multiplicam-se enquanto Melinda Gates figura em todas as listas de mulheres mais influentes do planeta. Mas a filantropia praticada pelo casal Gates e por Buffet é bem diferente da tradicional caridade levada a cabo por outros milionários no passado (Rockefeller, Carnegie, Ford). Como refere Nicole Aschoff, editora da revista Jacobin, o "filantrocapitalismo" dos Gates é muito mais ambicioso, "pois procura disciplinar as forças do capitalismo que os fizeram fabulosamente ricos e assim ajudar o resto do planeta. Os filantrocapitalistas pensam que soluções lucrativas para os problemas sociais são mais eficientes, pois dão ao capital privado uma razão para se importarem."

Um exemplo ilustrativo desta visão é o desenvolvimento de vacinas para os países pobres, fortemente impulsionado pela Fundação Gates nos últimos anos. Ao contrário do que muitos possam imaginar, não se trata de ajudar diretamente estes Estados a desenvolver os seus recursos farmacêuticos, garantindo serviços nacionais de saúde com qualidade. Como resume Melinda Gates, "Se conseguirmos estimular as companhias farmacêuticas a criar vacinas através de parcerias público-privadas. Se conseguirmos garantir-lhes um mercado de milhões de crianças que usem essas vacinas. Se conseguirmos esse comprometimento com o mercado, sabendo que haverá uma procura garantida, nós podemos incentivá-los com os dólares necessários para de facto criarem essas vacinas". Uma fórmula elucidativa para um ativismo desinteressado: enquanto a pobreza e o atraso causadores de muitas destas doenças permanecerem, o pragmatismo do mercado e dos dólares podem ajudar a atenuar o problema.

Recentemente, Mark Zuckerberg juntou-se ao clube dos filantrocapitalistas, anunciando a doação de 99% da sua fortuna. No caso, as ações do Facebook irão, não para uma fundação, mas para uma companhia LLC (empresa de sociedade limitada), o que permitirá a Zuckerberg manter operações de venda e investimento pagando menos impostos. À semelhança de Bill Gates - criticado por ter criado a sua fundação no auge do processo antitrust contra a Microsoft nos E.U.A - Zuckerberg foi acusado de usar este mecanismo como autopromoção da sua imagem. Esse fator poderá desempenhar uma importância considerável na ação individual destes multimilionários, mas o fortalecimento do filatrocapitalismo representa uma alteração mais profunda do sistema, que não devemos ignorar.

Mercado disciplinado ou totalitarismo financeiro?

A existência de Organizações Não Governamentais (ONG) e o alargamento da sociedade civil na provisão das necessidades sociais não é uma novidade na história do capitalismo. Como referem Matthew Bishop e Michael Green, o crescimento da filantropia parece estar associado a todos os períodos em que o crescimento massivo da riqueza é acompanhado pelo aumento das desigualdades sociais. Uma válvula de escape que protege o sistema de pressões sociais e políticas. O que constitui a novidade é, por um lado, a dimensão atual destas organizações - a Amnistia Internacional, por exemplo, tem um orçamento anual superior ao Conselho dos Direitos Humanos da ONU - e, por outro, o facto destas se expandirem num contexto de crescimento medíocre da economia nas últimas décadas. A explicação para esta dinâmica, refere Phil McMichael, reside no esgotamento do modelo de desenvolvimento nacional implementado por muitos países subdesenvolvidos, assente na soberania económica e na libertação da dependência externa, que deu lugar, a partir da década de 80, ao "projeto de globalização", promotor dos processos de privatização e de redução dos serviços públicos. Este giro abriu as portas à filantropia institucional e transferiu poderes soberanos para redes e organizações internacionais que não estão submetidas a um escrutínio democrático.
Em Portugal, o apreço da direita pelo mercado eleitoral das IPSS garantiu, nos últimos anos, um retorno em força da caridadezinha institucional, pelo que a expressão deste filantrocapitalismo revigorado e interventivo fica reduzida ao esforço ideológico da Fundação Francisco Manuel dos Santos e às suas ramificações nos meios de comunicação
Quando até o Estado Chinês, tradicionalmente avesso à caridade social, se prepara para facilitar uma filantropia livre de impostos, percebemos a dimensão do fenómeno. E pese embora os avanços efetivos de alguns destes empreendimentos, a ação dos filantrocapitalistas pode não estar assim tão distante das práticas que alimentam a finança global. Segundo Max Haiven, uma das características do "totalitarismo financeiro" em que vivemos é a captura das subjetividades e a reprodução de práticas sociais submetidas à especulação. Assim acontece com a quotização coletivas dos salários para a segurança social, cujo valor final, em cada vez mais países, termina a ser jogado em bolsa, ou com a escolarização, não mais apresentada como um bem coletivo ao serviço do conhecimento comum mas como um ativo pessoal necessário a quem queira prevalecer no mercado de trabalho, mesmo que adquirido às custas de pesados empréstimos bancários.

Em 2010, não por acaso, Mark Zuckerberg, Oprah Winfrey e o Governador republicano de Nova Jersey juntaram-se para promover um modelo inovador nas escolas públicas de Newark. O plano, generosamente financiado em 100 milhões de dólares por Zuckerberg, previa a introdução de métodos empresariais no ensino, desde uma avaliação agressiva dos professores, a cooptação de gestores externos sem ligação à comunidade e a hostilização dos sindicatos. Cinco anos depois, o projeto é um rotundo fracasso, com resultados dececionantes e uma desorganização geral da rede pública de ensino da cidade. Este exemplo demonstra o perigo de submeter a esfera pública ao capital privado, dando-lhe, ainda para mais, um poder de gestão e decisão na condução dos serviços que devem estar à disposição de todos.

Em Portugal, o apreço da direita pelo mercado eleitoral das IPSS garantiu, nos últimos anos, um retorno em força da caridadezinha institucional, pelo que a expressão deste filantrocapitalismo revigorado e interventivo fica reduzida ao esforço ideológico da Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS) e às suas ramificações nos meios de comunicação (como é o exemplo do Observador), o que já não é coisa pouca. O problema, aqui como lá fora, é que a ideia de um mercado norteado pelo lucro (pois há, com certeza, mercados não capitalistas) e disciplinado pela força de beneméritos milionários, em que o cidadão se transforma num cliente exigente e participativo, só faz sentido se esquecermos que na origem de muitos problemas sociais estão os meios pelos quais estas fortunas foram acumuladas. A FFMS teria a capacidade financeira de ditar políticas e programas ideológicos caso o seu patrono, o dono do Pingo Doce, fosse obrigado a pagar os impostos em Portugal (e não na Holanda) e a praticar salários decentes?

Os filantrocapitalistas parecem ter vindo para ficar, com toda a sua influência e exuberância, com o seu elogio do mercado e o encantamento da sua riqueza pessoal como legitimidade para uma ação política pragmática. São parte do problema.
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* Sociólogo.
Fonte:  http://www.esquerda.net/opiniao/os-filantrocapitalistas-vao-salvar-o-mundo/40533
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