Edu Almeida*
O homem empurra um grande bloco de gelo pelas ruas da cidade, fazendo-o
deslizar com algum esforço. Deve pesar cinquenta quilos, talvez mais.
Empurra com as costas arqueadas e deixa para trás um rastro de água que
lembra o muco dos caracóis. Algumas pessoas olham sem interesse, uma
criança aponta mas logo se distrai com outra curiosidade qualquer,
ninguém vê nada de errado. Afinal, ele está fazendo alguma coisa, e
manter uma atividade é socialmente bem aceito, seja ela tão estranha
quanto levar um bloco de gelo para passear. Deve ser o seu trabalho,
coitado. E, se trabalha, é um homem de bem, melhor deixá-lo em paz.
A lógica engana. “Às vezes, fazer algo não leva a nada”. Este é o título que o artista Francis Alÿs escolhe para a experiência descrita acima. Trata-se de um ensaio visual sobre os meios de produção dominantes, que se apóiam na ideia de estar sempre fazendo alguma coisa na esperança de ter o esforço recompensado, seja financeira ou reconhecidamente. Homens e mulheres na “idade ativa”, não é assim que se diz?
A proposta é clara: o trabalho de empurrar o gelo pelas ruas se desfaz com ele próprio, até que não reste mais nada, nem gelo, nem trabalho, nem produto, com exceção do vídeo em si. É uma afronta a todo regime de produção que opera nos dias atuais, seja orientado por princípios capitalistas ou socialistas.
Francis Alÿs chama a atenção para certos elementos constitutivos das nossas atividades cotidianas que acabam ignorados, mas que de alguma maneira são importantes no processo e se deixam entrever no produto final. Quer dizer, quando estamos implementando um projeto no escritório, quando queremos reformar a loja, oferecer um serviço diferente, acrescentar um curso de aperfeiçoamento ao currículo ou pesquisar uma nova oportunidade — qualquer atividade se enquadra —, estamos sujeitos a uma série de frustrações, becos sem saída e “desperdícios” de tempo. São aqueles modos de “fazer algo” que aparentemente não levam a nada, mas que estarão contidos no resultado da empreitada, mesmo que não sejam tão fáceis de identificar.
Talvez a arte os evidencie. Eu me lembro de uma conversa que tive com o pintor Felipe Góes a respeito de um dos seus trabalhos. Ele apontou o centro da tela e comentou que, dali para baixo, era tudo uma porção de arrependimentos. Achei curiosa essa sua maneira de encarar a própria produção e assumir que as frustrações fazem parte do processo criativo. Porque ignorá-las — ou mesmo negá-las — pode ser uma maneira de lidar com elas, porém não impedirá que continuem a nos assombrar.
Observei a pintura durante um longo tempo. A metade de baixo era composta de pinceladas desordenadas; tentativas de dar forma a uma vontade que talvez não tenha se manifestado com clareza, ou que não conseguira solucionar o problema em questão. Ficaram fixadas ali como registro do processo.
Talvez aquelas frustrações signifiquem algo positivo para outra pessoa. O que me faz voltar à proposta de Francis Alÿs, para quem fazer algo pode levar a nada. Agora tenho dúvidas. Ainda que seja meio paradoxal, para mim o “nada” não existe, é somente algo que ainda não conseguimos definir ou compreender devidamente, uma espécie de vácuo conceitual ou ausência de significado.
A lógica engana. “Às vezes, fazer algo não leva a nada”. Este é o título que o artista Francis Alÿs escolhe para a experiência descrita acima. Trata-se de um ensaio visual sobre os meios de produção dominantes, que se apóiam na ideia de estar sempre fazendo alguma coisa na esperança de ter o esforço recompensado, seja financeira ou reconhecidamente. Homens e mulheres na “idade ativa”, não é assim que se diz?
A proposta é clara: o trabalho de empurrar o gelo pelas ruas se desfaz com ele próprio, até que não reste mais nada, nem gelo, nem trabalho, nem produto, com exceção do vídeo em si. É uma afronta a todo regime de produção que opera nos dias atuais, seja orientado por princípios capitalistas ou socialistas.
Francis Alÿs chama a atenção para certos elementos constitutivos das nossas atividades cotidianas que acabam ignorados, mas que de alguma maneira são importantes no processo e se deixam entrever no produto final. Quer dizer, quando estamos implementando um projeto no escritório, quando queremos reformar a loja, oferecer um serviço diferente, acrescentar um curso de aperfeiçoamento ao currículo ou pesquisar uma nova oportunidade — qualquer atividade se enquadra —, estamos sujeitos a uma série de frustrações, becos sem saída e “desperdícios” de tempo. São aqueles modos de “fazer algo” que aparentemente não levam a nada, mas que estarão contidos no resultado da empreitada, mesmo que não sejam tão fáceis de identificar.
Talvez a arte os evidencie. Eu me lembro de uma conversa que tive com o pintor Felipe Góes a respeito de um dos seus trabalhos. Ele apontou o centro da tela e comentou que, dali para baixo, era tudo uma porção de arrependimentos. Achei curiosa essa sua maneira de encarar a própria produção e assumir que as frustrações fazem parte do processo criativo. Porque ignorá-las — ou mesmo negá-las — pode ser uma maneira de lidar com elas, porém não impedirá que continuem a nos assombrar.
Observei a pintura durante um longo tempo. A metade de baixo era composta de pinceladas desordenadas; tentativas de dar forma a uma vontade que talvez não tenha se manifestado com clareza, ou que não conseguira solucionar o problema em questão. Ficaram fixadas ali como registro do processo.
Talvez aquelas frustrações signifiquem algo positivo para outra pessoa. O que me faz voltar à proposta de Francis Alÿs, para quem fazer algo pode levar a nada. Agora tenho dúvidas. Ainda que seja meio paradoxal, para mim o “nada” não existe, é somente algo que ainda não conseguimos definir ou compreender devidamente, uma espécie de vácuo conceitual ou ausência de significado.
A propósito, acabei me esquecendo de contar o final do filme. Pois bem, o bloco de gelo se reduz até ficar do tamanho de um sabonete, que o artista chuta despreocupadamente. Sua postura de trabalhador dedicado também se transforma, agora ele parece um vagabundo que caminha sem rumo pela cidade. Por fim, o gelo é abandonado, desfaz-se numa pequena poça e logo não é mais nada, desaparecendo por completo. Sumiu, embora a gente saiba que permanece ali, evaporado no ar, habitando a memória de quem o viu, descrito na proposta do artista ou sugerido na mancha que restou no pavimento. Mesmo que não haja nada para ver, o gelo e o esforço de quem o deslocou estão presentes de alguma maneira. Sempre resta uma evidência, sempre existe a possibilidade de um significado que contrarie a aridez do “nada”.
Nós fazemos coisas o tempo todo. Trata-se do bem e do mal-estar da civilização. “Não fazer” é uma promessa que tanto se deseja quanto se condena. Veja a integridade, esse valor social tão benquisto, que também está associado ao fazer: pois moral íntegra é aquela bem constituída, que não se desfaz. Porque trabalhar tornou-se sinônimo de existir, é o ato que tenta nos definir. Ao ponto de, quando conhecemos alguém, perguntarmos “O que você faz?” ao invés de “Quem é você?”
Não que seja um jeito “errado” de viver (se por acaso existem certos e errados). Tampouco é o único jeito. Enquanto fazer algo pode levar a nada, fazer nada também poder ser um caminho ou uma maneira de ser. Não?
Para mim, parece errado apenas não pensar a respeito. Trabalhar a vida inteira sem saber aonde vai chegar, sem consciência das escolhas. A arte incentiva essa reflexão. Temos o quadro na parede, o gelo que escorre por entre nossos dedos e desaparece no chão. Temos todas as nossas realizações e arrependimentos que ainda buscam sentido. O esforço valeu a pena? Se a resposta é “sim”, já me parece um ótimo motivo para se fazer.
------------------
* Edu Almeida é publicitário, crítico e historiador da arte.
Fonte: http://correio.rac.com.br/_conteudo/2012/11/colunistas/edu_almeida/10559-fazer--se-e-desfazer--se.html
Imagens da Internet
Nenhum comentário:
Postar um comentário