Rémi Brague nasceu em Paris no ano de 1947.
Especialista em Filosofia Árabe e Judaica, leciona também Filosofia
Grega e Romana na Sorbonne e em Munique, sendo investigador no Centro
Nacional de Pesquisa Social. É desde 2009 membro da Academia Católica
de França e foi, no mesmo ano, eleito para a Academia de Ciências
Morais e Políticas. Em 20 de outubro deste ano recebeu das mãos do Papa
Bento XVI o Prémio Ratzinger de Teologia.
O jornalista António Marujo entrevistou-o aquando da sua passagem por Portugal, em 1994, conversa que reproduzimos na íntegra.
O jornalista António Marujo entrevistou-o aquando da sua passagem por Portugal, em 1994, conversa que reproduzimos na íntegra.
No seu livro "Europa, a Via Romana", propõe
que a civilização romana não criou nada, limitando-se a transmitir a
herança grega e a herança judaica.
Sim, esse é um conceito da Europa que proponho e creio
que este é o único livro que conheço que se propõe definir a Europa.
Apareceu no fim de 1992, depois de o preparar durante uma dezena de
anos: a ideia central data do inverno de 1982. Portanto, não tem nada a
ver com Maastricht nem com as eleições europeias.
Nem, tão-pouco, com a queda do Muro de Berlim, em 1989?
Não diretamente. Tudo estava pensado antes. Gostaria
simplesmente de dizer que tivemos, a partir de Maastricht e do referendo
[francês sobre o Tratado da União Europeia], uma inundação de livros
sobre a Europa. Mas tenho a impressão de que o meu é o único que tenta
definir o que é a Europa, enquanto todos os outros supõem conhecido o
sentido dessa palavra e, sobretudo, chamam à Europa não importa o quê.
Há no título, bem entendido, um jogo de palavras, no
sentido da via como estrada, mas que designa também uma atitude de
espírito que é, parece-me, um dinamismo, uma direção, um avanço.
Portanto, uma estrada, um caminho, mais do que uma conceção estável de
um certo tesouro cultural.
Chamei-lhe romana não porque queira fazer o elogio da Roma histórica. Não era essa, de todo, a minha intenção. Como também não era dizer que a Europa latina, por exemplo, à qual você e eu pertencemos, seria mais europeia que a outra.
Chamei-lhe romana não porque queira fazer o elogio da Roma histórica. Não era essa, de todo, a minha intenção. Como também não era dizer que a Europa latina, por exemplo, à qual você e eu pertencemos, seria mais europeia que a outra.
A minha intenção é dizer que toda a Europa é romana, na
medida em que ela repete, constantemente, no decurso da sua história
cultural, um ato de coragem e de humildade dos romanos que consistia em
reconhecer-se inferior em relação à cultura grega.
Mas ao mesmo tempo, os romanos aceitaram ir buscar
coisas a esta cultura, aceitaram aprender, em lugar de dizer «Não temos
nada a aprender dessa gente, eles são demasiado refinados, e a vitória
política é nossa». Eles aceitaram transmitir ao resto do mundo bens
culturais que não produziram. E que foram buscar a uma cultura
superior.
Que repercussões houve das suas ideias?
O livro foi objeto de diversos artigos na imprensa
italiana. Um desses artigos dizia: «Rémi Brague é muito gentil, mas
esquece, entre as conquistas da romanidade, o aqueduto». E dizia isso
de um modo divertido: «Sou um italiano do Sul», dizia o autor, «somos
pessoas que têm sede e, para nós, a água é preciosa e, para nós, Roma
são os aquedutos».
Descobri que a imagem do aqueduto é talvez ainda melhor que a do caminho. Num aqueduto, há um desnível: há uma fonte que está no cimo e qualquer coisa que está em baixo. Ora bem: é romana a experiência daquele que sabe que há uma fonte cultural antes dele e uma barbárie interior e exterior a irrigar. É isso que eu chamo a via romana.
Descobri que a imagem do aqueduto é talvez ainda melhor que a do caminho. Num aqueduto, há um desnível: há uma fonte que está no cimo e qualquer coisa que está em baixo. Ora bem: é romana a experiência daquele que sabe que há uma fonte cultural antes dele e uma barbárie interior e exterior a irrigar. É isso que eu chamo a via romana.
"O marcionismo é justamente esta tentação de pensar que
nós não temos mais nada a aprender com quem quer que seja. Para
Marcion, não tínhamos nada a aprender do judaísmo, do Antigo
Testamento; para nós,
será talvez que não temos nada a aprender
dos clássicos gregos e latinos,
será talvez que não temos nada a aprender
dos clássicos gregos e latinos,
ou talvez, mais geralmente, que não temos
nada a aprender do passado."
Nesse seu livro, propõe uma outra ideia: o
acontecimento fundador da Europa é a recusa do marcionismo. O
marcionismo cultural é um perigo para a Europa da época atual?
É, em qualquer caso, um perigo que a ameaça. É uma
tentação que ela deve combater. A ideia de marcionismo pode parecer um
pouco esotérica. É uma alusão à história da teologia cristã, quando o
dogma cristão se formou. O cristianismo é uma religião segunda, em
relação à revelação que foi feita a Israel.
Então, era muito fácil dizer: «Os escritos do Antigo
Testamento fizeram a sua época, agora estão ultrapassados, fora de
moda, out, e podemos contentar-nos com a plenitude da revelação feita
por Cristo». Ora bem, a Igreja, no século II da nossa era, soube
recusar esta tentação, ligada ao nome de Marcion, que queria justamente
largar as amarras, cortar os laços com o Antigo Testamento.
Desde então, o cristianismo mantém, no interior de si mesmo, uma exterioridade. Mantém, no seu livro sagrado, o livro sagrado de uma outra religião que o precede. O que é absolutamente extraordinário quando pensamos nisso. Quando vamos à livraria comprar uma Bíblia, compramos os livros sagrados de duas religiões num só volume.
Desde então, o cristianismo mantém, no interior de si mesmo, uma exterioridade. Mantém, no seu livro sagrado, o livro sagrado de uma outra religião que o precede. O que é absolutamente extraordinário quando pensamos nisso. Quando vamos à livraria comprar uma Bíblia, compramos os livros sagrados de duas religiões num só volume.
E o marcionismo é a recusa dessa relação?
O marcionismo é justamente esta tentação de pensar que
nós não temos mais nada a aprender com quem quer que seja. Para
Marcion, não tínhamos nada a aprender do judaísmo, do Antigo
Testamento; para nós, será talvez que não temos nada a aprender dos
clássicos gregos e latinos, ou talvez, mais geralmente, que não temos
nada a aprender do passado.
A Europa poderia dizer: propomos ao resto do mundo não
olharmo-nos e admirarmo-nos, mas olhar e admirar os valores em relação
aos quais a Europa se definiu. E a questão de saber se a Europa atual é
fiel ou não a esses valores é um outro problema. Porque o que a Europa
transmitiu ao resto do mundo é qualquer coisa que a julga a ela mesma.
O marcionismo consiste, então, em propor-se a si
mesma como modelo. A contentar-se de si e a recusar tomar emprestada,
para além de si mesma, mais alto que a si mesma, o que oferecer ao
resto do mundo.
Então, a Europa não se construiu com uma identidade própria, mas sobretudo na relação, no confronto com outras identidades?
Sim, é o que eu chamei no meu livro uma identidade
excêntrica. Aliás, é curioso que, quando o livro foi traduzido na
Alemanha, foi essa expressão que o editor escolheu como título. Porque
via romana, na Alemanha, não pode designar senão uma estrada, não pode
designar um way, um modo de viver, o tao chinês.
A identidade europeia consiste em ter constantemente a
consciência da sua exterioridade em relação a uma fonte; a partir de
quando, na história, se fala de Europa; a partir de quando a palavra
Europa designa um espaço e não apenas uma direção - o primeiro
significado de Europa era o Oeste, o Ocidente, o canto em que o sol se
põe, o poente, poderíamos mesmo dizer.
Quando falamos então de Europa?
Falámos de Europa como constituindo uma unidade a
partir de Carlos Magno. E quem era Carlos Magno? Diga-mos que era um
chefe de bando que teve sorte, um chefe de bando germânico que soube
conseguir tomar o poder, mas que constantemente sonhava em fazer
tam-bém no Ocidente o que se fazia em Bizâncio, no Leste.
Ele quis criar um Império Romano do Ocidente porque
sentiu que era inferior cultural, economicamente e em todos os planos
ao Império Grego. Esse é um gesto, uma atitude profundamente europeia:
saber-se já excêntrico. Se olharmos o mapa do mundo, estamos habituados
a ver a Europa no centro do mundo; quando a Europa se formou, não
havia Novo Mundo. E depois, o centro do mundo - cultural, económico,
político - estava em Bizâncio ou em Bagdad. A Europa sentiu-se sempre
longe de tudo, periférica, excêntrica.
"A minha pergunta é saber se temos alguma
coisa a
dar ao resto do mundo, se temos
qualquer coisa a transmitir a essas
gentes,
estejam elas fora das fronteiras da União Europeia ou dentro
delas. O problema de saber se elas estão fora ou dentro não é muito
importante. Importante é saber se temos qualquer coisa para lhes dar."
E essa experiência acabou por ser decisiva?
Há, na experiência cultural europeia, uma transposição
desta experiência geográfica. A Europa é o lugar onde nos apercebemos
de que não éramos gregos. E então dissemo-nos: «Está bem, não somos
gregos, estamos separados da fonte, não somos tão-pouco judeus.» Há um
facto que se deve sublinhar: nem Atenas nem Jerusalém - as duas cidades
símbolo da cultura europeia - nem uma nem outra se encontram na
Europa.
Ora bem, ser europeu é saber-se exterior, é saber-se
destinado a tentar compensar esta experiência de exterioridade e
inferioridade por um retorno às fontes, que são fontes exteriores. É
isso que há de notável na experiência europeia e que a distingue de um
retorno às fontes em que se insiste em outras civilizações.
As outras civilizações procuram regressar às suas próprias fontes, à restituição de uma pureza primitiva. A Europa, por seu lado, vai para além de si mesma. É o que eu chamo, no meu sistema de conceitos, um renascimento. O que é próprio dos renascimentos europeus é a procura, fora da Europa, de elementos com que se alimentarem.
As outras civilizações procuram regressar às suas próprias fontes, à restituição de uma pureza primitiva. A Europa, por seu lado, vai para além de si mesma. É o que eu chamo, no meu sistema de conceitos, um renascimento. O que é próprio dos renascimentos europeus é a procura, fora da Europa, de elementos com que se alimentarem.
Segundo esse conceito de apropriação, como
podemos ler o crescimento de fenómenos como o racismo e a xenofobia?
Não é contraditório com o que diz?
Totalmente. A Europa tem um contributo a dar ao resto
do mundo. O problema que é preciso colocar não é saber se a Europa, tal
como existe atualmente, deve acolher dentro das suas fronteiras tais
ou tais povos alógenos. A minha pergunta é saber se temos alguma coisa a
dar ao resto do mundo, se temos qualquer coisa a transmitir a essas
gentes, estejam elas fora das fronteiras da União Europeia ou dentro
delas. O problema de saber se elas estão fora ou dentro não é muito
importante. Importante é saber se temos qualquer coisa para lhes dar.
O problema da imigração é o problema da educação que
podemos dar. Acreditamos ainda suficientemente no Estado de Direito?
Acreditamos ainda suficientemente no cristianismo, sejamos nós crentes
ou não, mas falando em termos de valores? Acreditamos suficientemente
no que a Europa trouxe para continuar a propor isso ao resto do mundo? O
resto são problemas técnicos, para os quais não tenho competência
particular.
"Verifico apenas que a Grécia, por exemplo
- e isto
vai chocar, já chocou -
não se considerou nunca como
fazendo parte da
Europa.
Considerou-se sempre, a partir da sua conversão,
que é bem
anterior à da França ou de Portugal, como fazendo parte da cristandade,
isso é evidente."
Mas para isso é preciso falar também de uma
identidade comum ou, pelo menos, de um mínimo denominador comum a toda a
Europa. Podemos falar nesses termos, quando nos referimos à Europa do
Atlântico aos Urais?
Eu verifico que o que se chamou Europa, no passado, era
a cristandade católica - e isto não é uma reivindicação, entendo por
cristandade católica a cristandade antes da Reforma. Ou seja, a Europa
de Lisboa a Zagreb, e de Nápoles a Estocolmo - apenas para evitar que
se chame Europa não importa seja a que for, porque também podemos dizer
que os japoneses estão muito europeizados.
Depende do que entendemos por Europa. Na História, o
que a si mesmo se chamou Europa - o espaço no interior do qual as
pessoas diziam «nós somos europeus», o espaço que foi chamado «Europa»
pelos seus vizinhos, fosse Bizâncio ou o islão - foi sempre esse
espaço.
Verifico apenas que a Grécia, por exemplo - e isto
vai chocar, já chocou - não se considerou nunca como fazendo parte da
Europa. Considerou-se sempre, a partir da sua conversão, que é bem
anterior à da França ou de Portugal, como fazendo parte da cristandade,
isso é evidente. Considerou-se como fazendo parte do mundo romano, a
tal ponto que os bizantinos se chamavam a si mesmos romanos, não se
chamavam gregos, isso para eles era um insulto, grego queria dizer
pagão. Mas nunca Bizâncio se chamou a si mesma Europa.
Isso deixou consequências até hoje…
É isso que explica que, depois da queda de Bizâncio,
muita água passou debaixo das pontes, mas os países herdeiros de
Bizâncio conservam uma relação ambivalente com a Europa: uma atitude de
exterioridade, de tentação, de aversão ao mesmo tempo; uma atitude
muito ambígua, muito complicada, que fez com que eles se tenham
decidido chamar-se a si mesmos europeus e dizer que pertenciam à Europa
apenas numa data muito recente. O que varia segundo os períodos: por
exemplo, a escolha da escrita latina pela Roménia, que escrevia em
cirílico, no século XVII, é qualquer coisa de muito importante.
Mas é preciso introduzir aqui nuances. Não quero, com
o que digo, excluir ninguém da Europa. Verifico apenas, como
historiador, que há regiões que atualmente denominamos como europeias e
que o fizeram apenas muito tarde.
Isso é verdade também para outras regiões que
não estão tão presentes no seu livro e na sua reflexão, como a
Escandinávia, os celtas ou o Leste?
No meu livro, nenhuma região é privilegiada ou
desfavorecida em relação a outras. Digo muito claramente que a
Escandinávia, a Hungria, a Polónia, a Croácia, a Irlanda, são tão
europeias quanto a França, a Itália, a Espanha, Portugal, etc.
Às questões de línguas, de etnias, como dizemos, não
lhes dou nenhuma importância. O que é importante para mim são as
tradições culturais. Por exemplo, os holandeses são de certo modo muito
mais europeus que nós. Não esqueçamos que foram eles que nos
devolveram o cristianismo.
"Não sou sequer o que em Paris chamamos um intelectual.
Um intelectual é alguém que lhe
diz o que se deve pensar, alguém que
lhe traz
a solução dos problemas, que lhe diz
«é preciso fazer isto ou
aquilo»."
Os valores europeus desenvolveram-se depois do
Renascimento e das Luzes também porque havia uma certa homogeneidade
europeia. Hoje, isso não existe no continente. Ainda é possível
aprofundar e desenvolver os valores europeus?
Eu sou apenas um filósofo, não sou economista,
politólogo ou geopolítico. E também não sou profeta. Numa palavra, não
sou mais do que um filósofo, uma pessoa que tenta descrever a
realidade.
Não sou sequer o que em Paris chamamos um intelectual.
Um intelectual é alguém que lhe diz o que se deve pensar, alguém que
lhe traz a solução dos problemas, que lhe diz «é preciso fazer isto ou
aquilo». Contento-me em colocar nas mãos dos meus concidadãos -
europeus e outros - os instrumentos com que eles possam forjar as suas
próprias opiniões.
Sobre problemas como o que me coloca, não tenho mais
competência que qualquer outra pessoa. Tentei falar, neste livro,
unicamente sobre o que tenho qualquer coisa mais a dizer aos meus
contemporâneos. Do resto, permito-me calar.
Direi apenas talvez que, diante da situação atual, me pergunto se não teria feito melhor, em lugar de escrever um livro sobre a Europa, escrever um sobre a Suméria ou sobre o antigo Egito. Porque me pergunto se a Europa não estará em vias de desaparecer. Não sou de um grande otimismo. Quando vejo o que se passou na Bósnia, pergunto-me o que se passaria se a Europa existisse. Se ela existisse, não aconteceria nada como aquilo.
Direi apenas talvez que, diante da situação atual, me pergunto se não teria feito melhor, em lugar de escrever um livro sobre a Europa, escrever um sobre a Suméria ou sobre o antigo Egito. Porque me pergunto se a Europa não estará em vias de desaparecer. Não sou de um grande otimismo. Quando vejo o que se passou na Bósnia, pergunto-me o que se passaria se a Europa existisse. Se ela existisse, não aconteceria nada como aquilo.
Bósnia e desmembramento da União Soviética: não é possível ultrapassar as divisões através da tradição comum da Europa?
As divisões podem ser ultrapassadas. A minha ideia vai
contra o fechamento da Europa sobre si mesma. Não temos que anexar à
Europa pessoas que não querem necessariamente entrar nela. Se eles
pedem para entrar, se aceitam viver connosco, construir connosco
qualquer coisa de comum, é preciso dizer-lhes que sim. Mas é preciso
que a decisão venha deles. Não temos que decidir que a Europa vai até
aos Urais ou Vladivostoque. São as pessoas que habitam nessas regiões
que devem ver se desejam fazer qualquer coisa connosco.
O perigo para a Europa são os europeus. O perigo é
que os europeus creem que já são europeus e que não têm que fazer um
esforço para o ser cada vez mais. Como se bastasse ter nascido num dado
espaço para beneficiar automaticamente de todas as riquezas que
implica a herança cultural europeia.
É preciso assumir a herança e isso exige um esforço,
uma conquista sobre si mesmo, e sobretudo não se considerar um
privilegiado, um abastado a quem restaria apenas usufruir
sossegadamente do que possui.
O processo de construção europeia, que começou
para reconciliar a França e a Alemanha, pode assemelhar-se de algum
modo à construção dos Estados Unidos ou são processos completamente
diferentes?
Os Estados Unidos têm, em relação à Europa, uma
vantagem: a de saber que a população americana vem de fora. E isso é
uma experiência profundamente europeia: o que somos vem de fora. Temos
talvez muita tendência, naquilo que se chama, geograficamente falando, a
Europa, a esquecer isso. Os americanos estão constantemente a
lembrá-lo e estão muito conscientes disso. É, para eles, uma
oportunidade de «europeidade».
A segunda coisa que importa reforçar é que, quando a
Comunidade Europeia foi construída, não foi por razões económicas mas
por razões políticas, em particular para pôr fim à guerra.
Se as pessoas que construíram a Europa no início, nos anos 50, decidiram colocar em comum o carvão e o aço, não foi para poder fabricar tanques mais potentes ou viaturas maiores, mas para cortar na raiz as possibilidades de rivalidades económicas e, portanto, o risco de guerra. E penso que fizeram muito bem em começar por aí.
Se as pessoas que construíram a Europa no início, nos anos 50, decidiram colocar em comum o carvão e o aço, não foi para poder fabricar tanques mais potentes ou viaturas maiores, mas para cortar na raiz as possibilidades de rivalidades económicas e, portanto, o risco de guerra. E penso que fizeram muito bem em começar por aí.
Mas hoje a dimensão económica prevalece sobre todas as outras…
Sim, é o que toda a gente diz. Verifico apenas que o
modo como a França e a Alemanha se reconciliaram e, além deles, muitos
outros países - porque temos todos que fazer o nosso exame de
consciência e pedir perdão uns aos outros - esse modo é um exemplo para
o resto do mundo. Foi um japonês que mo disse, e que me disse que
gostaria de fazer o mesmo com os coreanos. Parece ridículo mas somos,
para o resto do mundo, um exemplo do que se pode fazer.
Qual é o lugar da tradição espiritual nesta
herança comum? Os fundamentalismos não mostram hoje que as religiões e
as espiritualidades são atualmente mais fator de divisão que de
unidade?
Isso exigiria uma grande resposta. A própria ideia de
fundamentalismo não é um conceito. O que chamamos fundamentalismo no
protestantismo (vem daí o sentido original da palavra), o integrismo na
Igreja Católica, o fundamentalismo no judaísmo ou no islão são quatro
fenómenos totalmente diferentes, e que importa distinguir muito
cuidadosamente.
Uma primeira medida higiénica para o pensamento é
re-nunciar a esse termo, deixar de falar de fundamentalis-mos para
analisar do que se trata em cada caso. O fun-damentalismo protestante é
um literalismo, é ver o texto da Bíblia literalmente falando, como se
todos os textos da Bíblia tivessem um valor de documento, quase como um
documento de polícia, de descrição da realidade.
O integrismo católico é uma vontade de manter, como o nome indica, a integridade duma mensagem que se pensa que foi pervertida ou mesmo perdida. Mas dirige-se ao conjunto dos católicos e não tem pretensões políticas.
O integrismo católico é uma vontade de manter, como o nome indica, a integridade duma mensagem que se pensa que foi pervertida ou mesmo perdida. Mas dirige-se ao conjunto dos católicos e não tem pretensões políticas.
E quanto ao judaico e ao islâmico?
Os Lubavitch, por exemplo, procuram converter o
conjunto do povo judaico à prática dos mandamentos e à prática literal
do modo como os mandamentos foram interpretados. Mas não se dirige
senão a Israel. Não fazem proselitismo. Os cristãos fazem proselitismo e
não podem deixar de o fazer. Tal como os muçulmanos.
No fundamentalismo muçulmano não há distinção entre o
espiritual e o temporal, entre o religioso e o político. Uma tal
distinção é blasfemadora para um muçulmano, uma vez que suporia que
haveria domínios que poderiam, por assim dizer, escapar a Deus.
No cristianismo não é de todo o caso. Nenhum domínio
escapa a Deus, mas todo o domínio político passa pela mediação da
moral. Não há um sistema político cristão. Há uma moral cristã que se
aplica ao domínio político.
Misturar todos estes fenómenos parece-me conduzir exclusivamente à confusão. Portanto, é melhor renunciarmos ao termo fundamentalismo.
Misturar todos estes fenómenos parece-me conduzir exclusivamente à confusão. Portanto, é melhor renunciarmos ao termo fundamentalismo.
Bento XVI e Rémi Brague na sessão de entrega do Prémio Ratzinger de Teologia. Fotos: L'Osservatore Romano
Este texto integra o número 18 do "Observatório da Cultura" (novembro 2012).
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António Marujo
In Deus vem a Público, ed. Pedra Angular
In Deus vem a Público, ed. Pedra Angular
Fonte: http://www.snpcultura.org/remi_brague_europa.html 15/11/2012
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