Sírio Possenti*
Em sua coluna de novembro, Sírio Possenti
mostra – com
exemplos claros –
que analisar uma língua não é tarefa simples,
não
basta dominar as regras. É preciso coerência
na aplicação de conceitos e
capacidade de
compreender fatos novos.
‘Aluga-se casas’ ou ‘alugam-se casas’? Tais estruturas são
necessariamente passivas? Sírio Possenti analisa esse tipo de situação
mostrando a incoerência de certas gramáticas. (foto: marcella bona/
Flickr – CC BY-NC-SA 2.0)
Um dos tópicos de todas as gramáticas é a análise. Essa prática tem
tanto relevo que muitas aulas lhe são dedicadas, e ‘saber português’ é
frequentemente associado a ‘saber fazer análises gramaticais do
português’.
Pode-se demonstrar com relativa facilidade que as duas ‘competências’ são de natureza diferente: por um lado, crianças falam (muito!) antes de saber fonologia, morfologia e sintaxe e, por outro, muitos povos escreveram antes de construírem as gramáticas de sua língua.
Parece claro que a ‘competência’ mais importante é saber a língua. O que se requer dos cidadãos é fundamentalmente que saibam ler e escrever (e falar e ouvir).
A ‘correção’ é uma ambição criada pela sociedade. Nas ‘festas’, pergunta-se a eventuais professores sobre a pronúncia de tal palavra ou se comenta o quanto um político ou artista fala ‘errado’. Mas nunca se discute sujeito indeterminado, agente da passiva ou classes de palavras.
No entanto, há certamente um déficit de análise. Ou falta a coerência
elementar na aplicação de conceitos ou o domínio de ferramentas
conceituais que permitam compreender o que ocorre. Quando se quer
analisar, não basta ensinar regras da norma. Nem basta encontrar um
adjunto em um exemplo escolar. Os verdadeiros testes são a coerência na
aplicação de conceitos e a capacidade de compreender fatos novos, mesmo
surpreendentes.
Vejamos alguns exemplos. Primeiro, dois casos de incoerência das gramáticas. Depois, um exemplo de fatos novos.
Perini destrói a análise peça por peça e, mais importante, faz isso seguindo as definições das gramáticas.
Por partes: a) aceita que o período é composto; b) a oração principal, no entanto, segundo sua análise, é o período todo, e não apenas “a menina disse”, por uma razão muito simples: “a menina disse” nem é uma oração, pois lhe falta o objeto, já que “disse” é um verbo transitivo (por isso, diz Perini, a oração principal equivale ao período, pois o que segue “disse” é seu objeto direto); c) a oração subordinada não é “que o cachorro está doente”, mas “o cachorro está doente”; de novo, por uma razão simples: “que o cachorro está doente” não é uma oração (essa estrutura nunca é proferida separadamente); se nem é oração, não poderia ser a subordinada; d) essa estrutura que começa com “que” é um sintagma nominal, cujo papel é o de objeto direto (portanto, o objeto direto não equivale à oração apenas, mas a toda essa estrutura, que, claro, a inclui). Bem mais coerente!
Primeiro, descobre-se que o texto quer dizer que o tal pó é ‘afrodisíaco’ (não importa muito onde o autor da placa ouviu essa informação, nem se ela circula de fato). É isso que faz rir, aliás. Feita a leitura, começa a análise propriamente dita, cujo objetivo é responder à seguinte questão: como se passou de ‘afrodisíaco’ para ‘a flor de zíaco’?
Os fatos a serem considerados são: a) sequências como ‘a flor/a gente’ são proferidas sem pausa, mas a escrita as separa; é o que faz o autor da placa (separa “a fro”); b) o rotacismo (r por l) é comum nas variedades interioranas (e mesmo em algumas urbanas, com as migrações, e os rr finais caem (dotô, flô / frô), o que leva o autor da placa a grafar o r medial de “fror” com l, e a restabelecer o r final; d) a palavra pronunciada “di” se escreve “de” – é o que ele fez; e) o som “z” inicial se escreve sempre com “z” – e ele acerta de novo!
Ou seja, o autor da placa, embora tivesse interpretado equivocadamente a sequência ‘afrodisíaco’, grafou-a ‘corretamente’, em todos os casos em que poderia errar, depois de tê-la interpretado como ‘a flor de zíaco’ (a hipótese de que tenha ‘pensado’ que o remédio tem alguma relação com flor, assim como outros a tem com casca, raiz etc., merece uma investigação).
Esse dado revela que uma mesma sequência pode eventualmente ser
‘segmentada’ de diferentes formas, o que, entre outras coisas, permite
análises corretas, mas também é fonte de erros de grafia e de humor,
conforme o caso: escrever ‘serhumano’ ou ‘agente’ (por ‘ser humano’ e ‘a
gente’) são exemplos de um erro; interpretar ‘consumo’ como ‘o que
ainda não foi espremido’ (com sumo) é exemplo de humor.
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*Sírio Possenti
Departamento de Linguística
Universidade Estadual de Campinas
Pode-se demonstrar com relativa facilidade que as duas ‘competências’ são de natureza diferente: por um lado, crianças falam (muito!) antes de saber fonologia, morfologia e sintaxe e, por outro, muitos povos escreveram antes de construírem as gramáticas de sua língua.
Parece claro que a ‘competência’ mais importante é saber a língua. O que se requer dos cidadãos é fundamentalmente que saibam ler e escrever (e falar e ouvir).
A ‘correção’ é uma ambição criada pela sociedade. Nas ‘festas’, pergunta-se a eventuais professores sobre a pronúncia de tal palavra ou se comenta o quanto um político ou artista fala ‘errado’. Mas nunca se discute sujeito indeterminado, agente da passiva ou classes de palavras.
Ou falta a coerência elementar na
aplicação de conceitos ou o domínio
de
ferramentas conceituais que
permitam compreender o que ocorre
Vejamos alguns exemplos. Primeiro, dois casos de incoerência das gramáticas. Depois, um exemplo de fatos novos.
Incoerências gramaticais
Professores e alunos aprenderam que se deve dizer ‘vendem-se flores’ e que essa estrutura é passiva. Engoliram que o ‘se’ dessa oração é diferente do ‘se’ de ‘precisa-se de empregados’, uma tese impossível de demonstrar. E aceitaram que ‘aluga-se esta casa’ quer dizer ‘esta casa é alugada’. Contra todas as evidências, porque todo mundo sabe que esse anúncio significa que a casa está vazia e disponível. Aceitaram também que ‘Ama-se Deus’ é uma passiva, mas ‘ama-se a Deus’, não (ou que ‘amar’ é transitivo direto no primeiro caso e indireto no segundo!). E que em ‘ama-se a Deus’, ‘Deus’ é um objeto direto (preposicionado), mas em ‘ama-se Deus’, ‘Deus’ é sujeito. Esses argumentos, apresentados cuidadosa e mais extensivamente, estão em “O pronome ‘se’”, que é de 1909 (!), publicado na coletânea Dificuldades da língua portuguesa, de Said Ali. Uma coerência mínima expurgaria as gramáticas dessa ‘análise’.
Aceita-se que ‘aluga-se esta casa’ quer dizer ‘esta casa é alugada’.
Contra todas as evidências, porque todos sabem que esse anúncio
significa que a casa está vazia e disponível
Em ‘O período composto’ (capítulo de Princípios de linguística descritiva,
de Mário Perini), o autor desmonta outra abordagem inconsistente.
Analisa o período “A menina disse que o cachorro está doente”. Primeiro,
recapitula a análise das gramáticas, que é a seguinte: a) o período é
composto; b) a oração principal é “a menina disse”; c) a subordinada é
“que o cachorro está doente”.Perini destrói a análise peça por peça e, mais importante, faz isso seguindo as definições das gramáticas.
Por partes: a) aceita que o período é composto; b) a oração principal, no entanto, segundo sua análise, é o período todo, e não apenas “a menina disse”, por uma razão muito simples: “a menina disse” nem é uma oração, pois lhe falta o objeto, já que “disse” é um verbo transitivo (por isso, diz Perini, a oração principal equivale ao período, pois o que segue “disse” é seu objeto direto); c) a oração subordinada não é “que o cachorro está doente”, mas “o cachorro está doente”; de novo, por uma razão simples: “que o cachorro está doente” não é uma oração (essa estrutura nunca é proferida separadamente); se nem é oração, não poderia ser a subordinada; d) essa estrutura que começa com “que” é um sintagma nominal, cujo papel é o de objeto direto (portanto, o objeto direto não equivale à oração apenas, mas a toda essa estrutura, que, claro, a inclui). Bem mais coerente!
Fatos novos
Vejamos agora um dado bastante excepcional, de um tipo que nunca é considerado nos manuais, mas que professores precisariam saber analisar. Ocorreu em um anúncio popular de pó de guaraná (pode ser encontrado facilmente na internet). O trecho que importa é “a flôr de zíaco do Amazonas”.Primeiro, descobre-se que o texto quer dizer que o tal pó é ‘afrodisíaco’ (não importa muito onde o autor da placa ouviu essa informação, nem se ela circula de fato). É isso que faz rir, aliás. Feita a leitura, começa a análise propriamente dita, cujo objetivo é responder à seguinte questão: como se passou de ‘afrodisíaco’ para ‘a flor de zíaco’?
Os fatos a serem considerados são: a) sequências como ‘a flor/a gente’ são proferidas sem pausa, mas a escrita as separa; é o que faz o autor da placa (separa “a fro”); b) o rotacismo (r por l) é comum nas variedades interioranas (e mesmo em algumas urbanas, com as migrações, e os rr finais caem (dotô, flô / frô), o que leva o autor da placa a grafar o r medial de “fror” com l, e a restabelecer o r final; d) a palavra pronunciada “di” se escreve “de” – é o que ele fez; e) o som “z” inicial se escreve sempre com “z” – e ele acerta de novo!
Ou seja, o autor da placa, embora tivesse interpretado equivocadamente a sequência ‘afrodisíaco’, grafou-a ‘corretamente’, em todos os casos em que poderia errar, depois de tê-la interpretado como ‘a flor de zíaco’ (a hipótese de que tenha ‘pensado’ que o remédio tem alguma relação com flor, assim como outros a tem com casca, raiz etc., merece uma investigação).
Uma mesma sequência pode eventualmente ser ‘segmentada’ de diferentes formas
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*Sírio Possenti
Departamento de Linguística
Universidade Estadual de Campinas
Fonte: http://cienciahoje.uol.com.br/colunas/palavreado/analises
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