"Se há pessoas que olham o que construí
como difícil de entender é porque não compreendem a complexidade da vida, e
isso não é culpa minha, é defeito delas."
Desde que estreou no mundo literário em 1979,
com "Memória de Elefante", António Lobo Antunes tem se deparado com
leitores e críticos rotulando sua escrita como intrincada, obscura e mesmo
experimental. O escritor português, hoje com 70 anos de idade e 24 romances
publicados, nunca se mostrou confortável com tal constatação - basta ver o tom
provocativo com que retomou a questão em recente crônica publicada na revista
portuguesa "Visão", da qual vem o trecho citado.
Mas seria, de fato, Lobo Antunes um escritor
difícil? Em certo aspecto, sim. O trato particular com a língua, a
multiplicidade de vozes e as alternâncias temporais que marcam seus romances
tornam sua leitura uma experiência que exige foco e entrega do leitor. Isso
tudo, no entanto, não faz dele um autor de caminhos indecifráveis, de jogos
linguísticos destinados a seduzir críticos e acadêmicos. Como ele insiste: o
que suas páginas tentam oferecer é a complexidade da vida, e em sua face mais
dura, permeada por medos, incertezas e inevitável solidão. E a linguagem é sua
arma para abarcar esse universo disforme.
Em Portugal, a fama do autor se sedimentou logo
com sua primeira trilogia ("Memória de Elefante", "Os Cus de
Judas" e "Conhecimento do Inferno"), editada em um curto
intervalo entre 1979 e 1980. Os protagonistas dos três romances são veteranos
da guerra colonial de Angola atormentados pela cruel memória dos tempos de
combate. Por ser uma das primeiras obras literárias portuguesas a tratar do espinhoso
tema, a trilogia angariou muitos leitores e fez relativo sucesso. Alguns anos
depois, viriam traduções e reconhecimento em outros países europeus (em
especial, França, Alemanha e Espanha).
No Brasil, essa descoberta tem se firmado de
forma mais lenta e tênue. Antunes já declarou em antiga entrevista ter deixado
o Brasil para "o outro", em referência a seu desafeto José Saramago
(1922-2010). Apenas em anos recentes sua obra tem sido editada de forma
constante no país. Infelizmente, o leitor brasileiro ainda não dispõe da
totalidade de seus títulos. Alguns de seus principais volumes, como "Que
Farei Quando Tudo Arde?" e "Não Entres tão Depressa Nessa Noite
Escura", permanecem inéditos por aqui.
A densidade linguística do texto antuniano
representa, de fato, um desafio ao leitor. A obra de Antunes não se oferece de
pronto, não se presta a leituras ligeiras ou distraídas. É necessário
desejá-la, se embrenhar nas múltiplas vozes que ecoam nas páginas, se perder em
sua escritura labiríntica. Quem já se aventurou pela prosa de William Faulkner
(1897-1962), Virginia Woolf (1882-1941) ou mesmo de Hilda Hilst (1930-2004)
provavelmente não encontrará dificuldades maiores para decifrar a poética
antuniana. Mas é preciso estar disposto a enfrentá-la.
Mesmo quando traz passagens da história de
Portugal como pano de fundo (caso de "Fado Alexandrino", "Auto
dos Danados" ou "O Esplendor de Portugal"), o núcleo dos
romances é sempre o sujeito fraturado, deslocado no mundo. Seus protagonistas
costumam estar sozinhos, se expressando por meio de monólogos e rememorações
intermináveis. É nesse ponto que sua poética se adensa: sempre há mais de uma
voz em ação, muitas vezes emaranhadas, misturando tempos e visões distintos.
Não há enredos bem armados, desfechos surpreendentes ou gestos heroicos. A ação
costuma ser mínima e se estruturar a partir de fragmentos revelados por essas
vozes que desnudam em profundidade temores, desilusões e ansiedades que
espreitam o ser humano. Intromissões em itálico e parênteses, períodos interrompidos
e pontuação em suspenso intensificam (dificultam?) ainda mais a leitura do
texto antuniano.
Uma experiência menos radical para os que ainda
titubeiam em iniciar o encontro com essa literatura de alta tensão é
representada pelas crônicas do autor. De expressão mais límpida, as crônicas
têm sido publicadas na imprensa portuguesa desde os anos 90 e já renderam
quatro volumes em livro (no Brasil, saiu a coletânea "As Coisas da
Vida"). Criando pequenos contos, gravitando em torno de singelos dramas
cotidianos ou mesmo escrevendo em primeira pessoa sobre temas que considera
relevantes, o autor faz das crônicas um microcosmo de sua produção artística -
miniaturas de um vital universo poético.
Independentemente do caminho de entrada
escolhido, descobrir a literatura de Lobo Antunes é um imperativo.
Especialmente para nós, nativos do português, pecado é deixar de conhecer um
dos maiores artesãos que o idioma já teve.
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Reportagem Por Fabricio Vieira | De São Paulo
Fonte: Valor Econômico on line, - Acesso 26/12/2012
Fonte: Valor Econômico on line, - Acesso 26/12/2012
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