Marcelo Coelho*
Talvez prefiram acreditar em Deus. Mas o fato de ser preferível não torna alguma crença mais verdadeira
Militantes antirreligiosos fizeram circular uma mensagem audaciosa nos
ônibus de Londres. "Provavelmente Deus não existe", diziam os cartazes.
"Então, pare de se preocupar e aproveite a vida."
No livro "Unapologetic", publicado neste ano na Inglaterra, o escritor
inglês Francis Spufford critica a iniciativa. Como assim, "aproveite a
vida"? Em que mundo esses caras estão?
Imagine, diz ele, uma senhora de meia-idade, com sua sacola de compras
do supermercado, voltando para casa, onde irá encontrar aquele que foi o
homem de sua vida, agora tomado pelo mal de Alzheimer, que acaba de
espalhar mais uma vez suas fezes pela parede.
Ou então imagine o garoto numa cadeira de rodas, com as pernas torcidas
como um saca-rolhas pelos espasmos da doença, sem poder falar; ele é
capaz apenas de teclar suas mensagens no computador, mas isso também
está ficando cada vez mais difícil.
"Aproveite a vida?" Para Spufford, que responde ao ateísmo de Richard Dawkins e Christopher Hitchens, quem criou esse slogan é que vive no mundo da carochinha.
Adotou-se, diz ele, a mentalidade típica da publicidade comercial: todo
mundo é feliz, saudável e bonito e, se aparece alguém de cabelo branco, é
porque se trata de um daqueles anúncios de aposentadoria privada, em
que há muita disposição para os prazeres da "melhor idade".
Spufford não é teólogo. Escreveu um romance de ficção científica e
ensaios sobre a história da tecnologia. "Unapologetic", que poderia ser
traduzido como "Sem Justificativa", ou "Sem Pedir Desculpa" (por ser
cristão), traz argumentos muito amigáveis, dirigidos a quem não vê
sentido no modo de vida religioso.
Como sou uma dessas pessoas, logo pensei numa resposta aos exemplos da
mulher de meia-idade e do menino de cadeira de rodas. É cruel dizer-lhes
para "aproveitar a vida". Mas também é duro dizer que um Deus
misericordioso quer que essas desgraças lhes aconteçam.
Mesmo assim, talvez até prefiram acreditar em Deus. Mas o fato de ser preferível não torna alguma crença mais verdadeira.
Os argumentos a favor e contra podem estender-se, é claro. Constituem um
dos principais temas de "Expresso do Pôr do Sol", peça do
norte-americano Cormac McCarthy, em cartaz no Tucarena até 25 de
novembro.
Ao longo de uma hora e pouco, dois excelentes atores (Cacá Amaral e
Guilherme Sant'Anna) discutem bravamente a questão. Mais do que isso:
Cacá Amaral, no papel de um professor universitário branco, acaba de ser
salvo de se atirar da plataforma de um trem.
É um ex-presidiário negro, convertido ao cristianismo, quem o impede de se matar. No papel de "Black", Guilherme Sant'Anna é um anjo de astúcia e vitalidade, tentando
desmontar a descrença furiosa de "White". Como bom ateu, o diálogo me
pareceu desequilibrado a favor de uma ótica cristã. A peça mostra bem os
motivos biográficos que fizeram o ex-presidiário abraçar a escolha
"correta".
Os argumentos de "White" em favor do suicídio, entretanto, são
impessoais e vagos. Ele declara, por exemplo, que toda sua fé na cultura
e no progresso desapareceu "nas cinzas dos campos de extermínio"; sendo
toda esperança de felicidade uma mentira, o melhor é se jogar na frente
de um trem.
Evidentemente, nem todo ateu quer se jogar na frente de um trem. A moral
da história seria outra: sem acreditar "em alguma coisa", você não
consegue viver. O cristianismo pode ser essa "alguma coisa", e
certamente "Black" é feliz com sua religião. Livrou-me de um monte de
encrencas, diz o ex-presidiário. Certamente. Mas ainda falta escrever
uma peça em que o ateu, vivendo feliz seu modesto destino, tenta tirar o
religioso das encrencas em que ele se mete.
Imagine, por exemplo, um jovem homossexual que renega seu amor por outro
homem simplesmente pelo fato de que sua religião não permite esse tipo
de coisa. Ou a mãe que se recusa a abortar e gera um filho com grave
deficiência, quando poderia ter outro normal numa gravidez posterior.
"Expresso do Pôr do Sol" não vai muito longe nesse tipo de debates, que
naturalmente varariam a madrugada toda. De todo modo, para quem não está
disposto a se atirar nos trilhos de um trem, não deixa de ser um bom
ponto de partida para a discussão.
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* Colunista da Folha.
coelhofsp@uol.com.brFonte: Folha on line, 14/11/2012
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