João Pereira Coutinho*
Não existe nada de mais trágico do que experimentar uma vez a morte e ser depois restituído à vida
Todos conhecemos a história bíblica de Lázaro, o homem que Jesus
ressuscitou dos mortos. O que não conhecemos é a vida que Lázaro teve
depois.
Como será regressar dos mortos? Como será ter o conhecimento do outro
lado e voltar a cruzar o rio para o nosso lado? Será uma experiência que
permite uma vida normal -e, sobretudo, uma nova morte normal?
C.S. Lewis, o conhecido escritor e pregador cristão, escreveu em "A
Grief Observed", diário de seu luto depois da morte da mulher, que
Lázaro é uma figura imensamente trágica, cujo destino não devemos
desejar a ninguém. Nem sequer aos que mais amamos.
Porque não existe nada de mais trágico do que experimentar uma vez o
ordálio aterrador da morte e ser depois restituído à vida para voltar a
passar pela mesma experiência terminal. Morrer uma vez basta. Morrer
duas vezes devasta.
Lembrei Lázaro, e as palavras de C.S. Lewis sobre ele, ao ler o novo
livro do romancista irlandês Colm Tóibín, "The Testament of Mary" (o
testamento de Maria; Viking, 112 págs.), que tem sido tema de polêmica e
debate no Reino Unido.
A novela, como o título sugere, pretende ser o relato final de Maria,
mãe de Jesus, sobre os acontecimentos que ficaram para trás. E, entre
eles, está Lázaro: não apenas o milagre da sua ressurreição, mas o que
sucedeu depois.
São as melhores páginas do livro, porque Tóibín, retomando a ideia de
C.S. Lewis, não nos apresenta uma criatura redimida e feliz. Pelo
contrário: Lázaro é pintado com cores negras, fantasmagóricas -um
espectro silencioso e sofredor, de quem todos se afastam como se fosse a
peste.
- O romancista irlandês Colm Tóibín -
Isso, claro, se acreditarmos mesmo que aquele homem foi ressuscitado por
Jesus. Eis a polêmica em torno do livro: Maria, na sua velhice, não
acredita. Sim, existem relatos de relatos de relatos. Alguém testemunhou
a cura de um cego, a caminhada de Jesus sobre as águas, a ressurreição
de Lázaro e, evidentemente, a ressurreição do próprio Messias redentor.
Só que, para Maria, Jesus não é o Messias. É apenas o seu filho muito
amado -a criança que ela educou e viu crescer na banalidade dos dias;
que acompanhava o pai ao Templo em pleno Sabbath; e que, mais tarde, se
rodeara fatalmente por uma turba fanática ("marginais", como ela designa
os apóstolos), congregando sobre si a histeria das massas e a pena
pesada das autoridades romanas (e judaicas).
Foi essa arrogante imprevidência -a imprevidência de quem se apresentara
como o rei dos reis e filho de Deus- que condenara seu filho à morte,
apesar das inúmeras tentativas da mãe para o resgatar de um caminho
lúgubre.
Mesmo a versão oficial da crucificação é desautorizada por Maria: ela
esteve lá, no Gólgota desolado. Mas jamais recebera o corpo do filho
depois de morto.
Na verdade, Maria fugira antes, temendo pela sua própria vida, deixando
para trás um filho agonizante. Essa fuga persegue a consciência da mãe
até ao fim.
Na literatura contemporânea, existem vários exemplos de literatura
"blasfema" sobre os Evangelhos -do "Cristo Recrucificado", de Nikos
Kazantzakis, ao célebre "Evangelho Segundo Jesus Cristo", de José
Saramago.
Mas a força do livro de Colm Tóibín não está na atitude propositadamente
"blasfema" e confrontacional. Está antes na profunda ambiguidade que o
autor confere ao relato de Maria.
Charlotte Moore, na revista "Spectator", resumiu o problema: o
testamento de Maria, tal como escrito por Tóibín, desautoriza a
construção de Jesus feita pelos seus apóstolos. Mas o escritor é audaz
na forma como também desautoriza as palavras de Maria: ela é
apresentada, repetidamente, como uma mulher envelhecida, amedrontada,
confusa, sem o discernimento necessário para separar fatos de
efabulações, fatos de fabricações.
O relato de Maria é tão dúbio como os relatos que ela considera dúbios.
Isso, que para alguns críticos constitui uma fraqueza narrativa, é na
verdade a maior força -literária, teológica e obviamente sacrílega- do
livro de Colm Tóibín: é preciso ser um escritor de excelência para
infectar de dúvida todas as dúvidas de Maria.
E, no final de seu relato, deixar o leitor, seja crente ou não crente, profundamente abalado. Um pequeno grande livro.
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* Colunista da Folha
jpcoutinho@folha.com.brFonte: Folha on line, 13/11/2012
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