Pierre Teilhard de Chardin
Ofertório
Senhor, já que uma vez ainda, não mais nas
florestas da França, mas nas estepes da Ásia, não tenho pão, nem vinho,
nem altar, eu me elevarei acima dos símbolos até à pura majestade do
Real, e vos oferecerei, eu, vosso sacerdote, sobre o altar da terra
inteira, o trabalho e o sofrimento do mundo.
O sol acaba de iluminar, ao longe, a franja
extrema do primeiro oriente. Mais uma vez, sob a toalha móvel de seus
fogos, a superfície viva da Terra desperta, freme, e recomeça o seu
espantoso trabalho. Colocarei sobre minha patena, meu Deus, a messe
esperada desse novo esforço. Derramarei no meu cálice a seiva de todos
os frutos que hoje serão esmagados.
Meu cálice e minha patena, são as profundezas de
uma alma largamente aberta a todas as forças que, em um instante, vão
elevar-se de todos os pontos do Globo e convergir para o Espírito. - Que
venham pois, a mim, a lembrança e a mística presença daqueles que a luz
desperta para uma nova jornada!
Um a um, Senhor, eu os vejo e os amo, aqueles que
me destes como sustento e como encanto natural de minha existência. Um a
um, também, eu os conto, os membros dessa outra e tão cara família que
pouco a pouco as afinidades do coração, da pesquisa científica e do
pensamento juntaram à minha volta, a partir dos elementos mais diversos.
Mais confusamente, mas todos sem exceção, eu os evoco, aqueles cujo
exército anónimo forma a massa inumerável dos vivos: aqueles que me
rodeiam e me sustentam sem que eu os conheça; aqueles que vêm e aqueles
que vão; sobretudo aqueles que, na Verdade ou através do Erro, no seu
escritório, laboratório ou fábrica, creem no progresso das Coisas e,
hoje, perseguirão apaixonadamente a luz.
Quero que neste momento o meu ser ressoe ao
murmúrio profundo dessa multidão agitada, confusa ou distinta, cuja
imensidão nos espanta, - desse oceano humano cujas lentas e monótonas
oscilações lançam a inquietação nos corações mais crentes. Tudo aquilo
que vai aumentar no Mundo, ao longo deste dia, tudo aquilo que vai
diminuir, - tudo aquilo que vai morrer, também, - eis, Senhor, o que me
esforço por reunir em mim para vos oferecer; eis a matéria de meu
sacrifício, o único que vós podeis desejar.
Outrora, carregava-se para vosso Templo as
primícias das colheitas e a flor dos rebanhos. A oferenda que esperais
agora, aquela de que tendes misteriosamente necessidade cada dia, para
aplacar a vossa fome, para acalmar a vossa sede, é nada menos do que o
crescimento do mundo impelido pelo devir universal.
Recebei, Senhor, esta Hóstia total que a Criação,
movida por vossa atração, vos apresenta à nova aurora. Este pão, nosso
esforço, não é em si, eu o sei, mais que uma degradação imensa. Este
vinho, nossa dor, não é ainda, ai de mim, mais que uma dissolvente
poção. Mas, no fundo dessa massa informe, colocastes - disso estou
certo, porque o sinto - um irresistível e santificador desejo que nos
faz a todos gritar, desde o ímpio ao fiel:
"Senhor, fazei-nos Um!
Porque, à falta do zelo espiritual e da sublime
pureza de vossos santos, deste-me, meu Deus, uma simpatia irresistível
por tudo quanto se move na matéria obscura, - porque irremediavelmente,
reconheço em mim, bem mais que um filho do Céu, um filho da Terra, -
subirei, esta manhã, em pensamento, às alturas, carregado das esperanças
e das misérias de minha Terra-Mãe; e lá, por força de um sacerdócio que
somente Vós, creio, me destes, - sobre tudo
aquilo que, na Carne humana, se prepara para nascer ou perecer sob o sol que se levanta, eu chamarei o Fogo. (...)
aquilo que, na Carne humana, se prepara para nascer ou perecer sob o sol que se levanta, eu chamarei o Fogo. (...)
O fogo no mundo
Aconteceu.
O fogo, mais uma vez, penetrou na Terra.
Não caiu ruidosamente sobre os cimos como o raio em seu fragor. Força o Mestre as portas para entrar em sua casa?
Sem abalo, sem trovão, a chama iluminou tudo por
dentro. Desde o coração do menor átomo à energia das leis mais
universais, ela tão naturalmente invadiu, individual e conjuntamente,
cada elemento, cada mola, cada liame do nosso Cosmos que ele,
poder-se-ia crer, inflamou-se espontaneamente.
Na Humanidade nova que hoje se engendra, O Verbo
prolongou o ato sem fim do seu nascimento; e, por virtude de sua imersão
no seio do Mundo, as grandes águas da Matéria, sem um arrepio,
carregaram-se de vida. Nada estremeceu, aparentemente, sob a inefável
transformação. E, entretanto, misteriosa e realmente, ao contacto da
substancial Palavra, o Universo, imensa Hóstia, fez-se Carne. Meu Deus,
toda a matéria é doravante encarnada, pela vossa Encarnação.
Há tempo que nossos pensamentos e nossas
experiências humanas reconheceram as estranhas propriedades do Universo
que o fazem tão semelhante a uma Carne...
Como a Carne, ele nos atrai pelo encanto que flutua no mistério de suas dobras e na profundidade de seus olhos.
Como a Carne, ele nos atrai pelo encanto que flutua no mistério de suas dobras e na profundidade de seus olhos.
Como a carne, ele decompõe-se e escapa-nos sob o trabalho das nossas análises, das nossas quedas e da sua própria duração.
Como a Carne, ele não se abraça verdadeiramente senão no esforço sem fim para atingi-lo sempre mais além daquilo que nos é dado.
Senhor, todos nós sentimos, ao nascer, essa
mistura inquietante de proximidade e distância. E, não há, na herança de
dor e de esperança que transmitem as idades, não há nostalgia mais
desolada que aquela que faz o homem chorar de irritação e de desejo no
seio da Presença que paira, implacável e anónima, em todas as coisas, à
sua volta: "Que definitivamente os homens A alcancem..."
Agora, Senhor, pela Consagração do Mundo, o
clarão e o perfume flutuando no Universo, tomam, em Vós, corpo e feição
para mim. Aquilo que o meu pensamento hesitante entrevia, aquilo que o
meu coração reclamava por um desejo inverossímil, Vós mo concedeis
magnificamente: que as criaturas não sejam somente solidárias entre si, a
ponto de nenhuma poder existir sem que todas as outras a rodeiem, - mas
que sejam de tal maneira sustentadas pelo mesmo centro real, que uma
verdadeira Vida, experimentada em comum, lhes dê definitivamente a sua
consistência e a sua união.
Fazei explodir, meu Deus, pela audácia de vossa
Revelação, a timidez de um pensamento pueril que nada ousa conceber de
mais vasto, nem de mais vivo no mundo, que a miserável perfeição de
nosso organismo humano! Na via de uma compreensão mais perfeita do
Universo, os filhos do século ultrapassam, a cada dia, os mestres de
Israel. Vós, Senhor, Jesus, "em quem todas as coisas encontram a sua
consistência", revelai-Vos enfim àqueles que vos amam, como a Alma
superior e o Foco físico da Criação. Trata-se de nossa vida, não vedes?
Se eu não pudesse acreditar que a vossa Presença real anima, enleva,
aquece a menor das energias que me penetram ou que me roçam, não morrria
de frio, enregelado no âmago do meu ser?
Obrigado, meu Deus, por terdes, de mil maneiras,
conduzido o meu olhar até fazê-lo descobrir a imensa simplicidade das
Coisas! Pouco a pouco, sob o desenvolvimento irresistível das aspirações
que depositastes em mim quando eu era ainda uma criança, sob a
influência de amigos excecionais que surgiram na altura exata ao longo
de meu caminho para esclarecer e fortalecer o meu espírito, sob o
despertar de iniciações terríveis e doces cujos círculos me fizestes
sucessivamente transpor, chego a nada mais poder ver nem respirar fora
do Meio onde tudo não é mais que Um.
Neste momento em que a Vossa vida acaba de
passar com um acréscimo de vigor no Sacramento do Mundo, experimentarei,
com uma consciência maior, a forte e calma embriaguez de uma visão cuja
coerência e harmonia não chego a esgotar. (...)
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Fonte: http://www.snpcultura.org/missa_sobre_o_mundo.html 11/11/2012
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