Rosana Moreira de Souza Coelho*
O texto A República, de Platão, está dividido em dez
livros ou diálogos em que é exposto o seu pensamento sobre diversos
temas; entre eles, a concepção de um Estado e de um homem ideal.
Sócrates figura como personagem principal, estabelecendo diálogos com
seus interlocutores, nos permitindo acesso às formulações de Platão.
Nosso foco se volta para a abordagem da Educação, no diálogo travado entre Sócrates e Glauco, transcrito no livro VII de A República. Nessa passagem, Platão elabora sua famosa metáfora da caverna, onde, segundo ele, a caverna seria o mundo das ilusões no qual estaria preso a maioria dos homens. O prisioneiro, permanecendo de costas para a abertura luminosa da frente da caverna, voltado para a parede escura dos fundos e devido a uma réstia de luz que penetra a escuridão, contempla na parede do fundo as projeções dos seres que compõem a realidade. Acostumado a ver somente essas projeções, assume a ilusão do que vê, tomando as sombras de um mundo irreal como verdadeiras. Se o prisioneiro da caverna escapasse e alcançasse o mundo luminoso da realidade, ficaria livre da ilusão sendo que esta só poderia ser rompida se o prisioneiro se libertasse das correntes que o impedem de ver a verdadeira realidade das coisas. Primeiro ele olharia as estrelas da noite, depois as imagens das coisas refletidas nas águas tranquilas, até que pudesse, enfim, olhar diretamente o sol e enxergar a fonte de toda a luminosidade.
Um trecho do diálogo nos chama a atenção, quando Platão fala sobre a natureza da educação. Vejamos:
[Sócrates] Temos então, continuei, de pensar o seguinte sobre essa matéria, se é verdade o que dissemos: a educação não é o que alguns apregoam que ela é. Dizem eles que arranjam a introduzir ciência numa alma em que ela não existe, como se introduzissem a vista a olhos cegos.
[...]
A educação seria, por conseguinte, a arte desse desejo, a maneira mais eficaz de fazer dar a volta a esse órgão, não a de fazer obter a visão, pois já a tem, mas uma vez que ele não está na posição correta e não olha para onde deve, dar-lhe os meios para isso.
[Glauco] Acho que sim.
[Sócrates] Por conseguinte, as outras qualidades chamadas da alma podem muito bem aproximar-se das do corpo, com efeito, se não existiram previamente podem criar-se, pelo hábito e pela prática. Mas a faculdade de pensar é, ao que me parece, de um caráter mais divino que tudo o mais; nunca perde a força e conforme a volta que lhe derem, pode tornar-se vantajosa e útil, ou inútil e prejudicial. Ou ainda não te apercebeste como a deplorável alma dos chamados perversos, mas que na verdade são espertos, tem um olhar penetrante e distingue claramente os objetos para os quais se volta, uma vez que não tem vista fraca, mas é forçado a estar a serviço do mal, de maneira que, quanto mais aguda a visão, maior é o mal que pratica? (PLATÃO, 2012, p. 214).
Nessa passagem, Platão expressa sua concepção sobre a capacidade humana de pensar e a considera de natureza divina. Indica que o papel da educação não é de fazer o sujeito “obter a visão”. Uma vez que ele não se encontra na posição correta, não olha pra onde deve, a função da educação seria dar-lhe os meios corretos para isso.
Isso nos remete à seguinte reflexão. Como a educação pode ser esse instrumento que possibilita aos nossos educandos se libertar das correntes da ilusão?
Demerval Saviani (2000 apud POZZATTI, 2002) reflete sobre os meios universais dos quais a burguesia se utiliza para ser porta-voz do conjunto da humanidade, logrando com isso a sua hegemonia, qual seja: a obtenção do consenso das demais classes em torno da legitimidade da sua direção. A educação, com um viés tecnicista, é utilizada como meio e estratégia para a manutenção desse fim, sob os paradigmas do mercado de trabalho.
Qual seria, portanto, o papel de uma educação dentro desse contexto marcado por uma lógica racionalista e mercadológica? Que homem pretendemos formar? Que concepção de educação deve nortear uma prática libertadora capaz de romper com essa lógica, na qual o cidadão é concebido como mero consumidor, e ser um instrumento para que nosso educando possa, enfim, romper as correntes e voltar seus olhos para a contemplação da luz?
O capitalismo, a cada dia, sinaliza ao mundo valores de competitividade onde a educação é vista também sob essa lógica, de forma a atender as necessidades da economia mundial.
Nossa reflexão parte do pressuposto de uma formação pautada em uma ética de valores humanitários e para a formação da cidadania em que a educação ocupa um papel relevante, podendo ser um instrumento, não para que o jovem “obtenha a visão”, mas para que, por ele mesmo, possa voltar-se para a luz, rompendo com as correntes que o aprisionam e o impedem de ser feliz.
Em Platão, essa distinção entre a ilusão e essência é clara. O mundo sensível é ilusório. Os olhos foram feitos para ver, mas só a alma é capaz de conhecer. Enxergar essa capacidade, para além de um racionalismo escravizante, está necessariamente relacionado à prática da virtude, do bem e da justiça. Em Platão, temos a educação do ser em sua plenitude enquanto sujeito ético, cidadão e agente transformador, construtor de uma sociedade nova.
O MITO DA CAVERNA E OS PARADIGMAS DA MODERNIDADE
[Sócrates] Em seguida, continuei, imagina a nossa natureza relativamente à educação ou à sua falta, de acordo com a seguinte experiência. Suponhamos os homens em uma habitação subterrânea em forma de caverna, com uma entrada aberta para a luz, que se estende a todo o comprimento dessa gruta. Estão lá dentro desde a infância, algemados de pernas e pescoços, de tal maneira que só lhes é dado permanecer no mesmo lugar e olhar em frente; são incapazes de voltar a cabeça, por causa dos grilhões [...]. (PLATÃO, 2012, p. 210).
Vivemos em um contexto de modernidade marcado por paradoxos de dimensões imensuráveis. Em que pese todo o desenvolvimento do pensamento humano, de toda a sofisticação tecnológica, da globalização em série, ainda são gritantes as desigualdades sociais nos causando grande perplexidade. Apesar do avanço da ciência e da tecnologia ainda não demos conta de resolver os grandes problemas que afetam o homem contemporâneo: a má distribuição da riqueza, a concentração de renda nas mãos de poucos, o esgotamento dos recursos naturais em nome da riqueza e do lucro nos obriga a pensar que ainda não rompemos com as amarras e com as misérias dos grilhões que nos aprisionam na grande caverna do capitalismo.
O mundo moderno avança de modo acelerado com uma lógica de mercado imposto pelo modelo neoliberal, colocando, como paradigma, a competição e o lucro, em detrimento de uma vida pautada em valores éticos de respeito e de solidariedade humana. O caminho proposto pelo capital é de uma sociedade de livre comércio competitivo em que o indivíduo não é mais visto em sua capacidade plena enquanto ser. O paradigma da modernidade coloca o consumo como condição para a felicidade e para a realização do “ser”, reduzindo o conceito de cidadão a mero consumidor.
Por sua vez, os meios de comunicação impregnam as casas e as famílias com seu ideário ideológico do lucro, do consumo e da inversão de valores, ocasionando um consequente esvaziamento nas relações humanas. A informação chega com a velocidade da “luz”, no dedilhar dos teclados, pelas vias dos modernos computadores, da internet e das redes sociais. Embora admirados com a capacidade criativa e inventiva do homem, ao mesmo tempo, ficamos perplexos diante dos paradoxos, pois, por mais que se rompam as barreiras, e se aproximem os mundos, mais o homem se sente vazio e angustiado.
Rubem Alves (2009), em seu livro Entre a ciência e a sapiência: O dilema da educação, narra uma metáfora intitulada “O homem deve reencontrar o Paraíso”, em que uma família, querendo se aventurar pelos caminhos da navegação, se dispõe a aprender todas as suas técnicas.
Puseram-se então a estudar cada um aquilo que teria que fazer no barco: manutenção do casco, instrumentos de navegação, astronomia, meteorologia, as velas, as cordas, as polias e roldanas, os mastros, os lemes, os parafusos, o motor, o radar. (ALVES, 2009, p. 73).
Enfim se aparatam de todos os meios técnicos necessários para empreender seu intento. Ocorre, entretanto, no momento de decidir qual o rumo a ser tomado, todo o aparato tecnológico se cala. Onde queremos chegar?
Os computadores, coitados, chamados a dar palpite, ficaram em silêncio. Computadores não têm preferências, falta-lhes a sutil capacidade de “gostar”, que é a essência da vida humana. Perguntados sobre o porto de sua escolha, disseram que não entendiam a pergunta, que não lhes importava para onde se estava indo. Se os barcos se fazem com ciência, a navegação se faz com os sonhos. Infelizmente, a ciência, utilíssima, especialista em saber “como as coisas funcionam”, tudo ignora sobre o coração humano. É preciso sonhar para se decidir sobre o destino da navegação. Mas o coração humano, lugar dos sonhos, ao contrário da ciência, é coisa imprecisa. Disse certo o poeta: “Viver não é preciso”. Primeiro vem o impreciso desejo de navegar. Só depois vem a precisa ciência de navegar. (ALVES, 1999, p. 74, grifo do autor).
No campo educacional, a coisa não difere. A escola e a educação sofrem o reflexo dessa lógica neoliberal onde, na superfície da lousa negra, são projetadas sombras de uma educação pautada em uma pedagogia tecnicista e de uma lógica do consumo e da competividade. Saviani (2000, p. 192 apud POZZATTI, 2002, p. 26) nos indica como, através da educação, a burguesia tenta exercer seu poder hegemônico dentro das sociedades ditas democráticas:
Compreende-se, então, por que a escola primária pública, universal, gratuita, obrigatória e leiga, idealizada e realizada pela burguesia para converter os súditos em cidadãos, não tenha passado de um instrumento a serviço da emancipação política entendida como a redução do homem, de um lado a membro da sociedade burguesa, a indivíduo egoísta independente e, de outro, a cidadão do Estado, a pessoa moral.
No campo legal, Pozzatti ao analisar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei 9394/96, reflete como esta lei ao ser elaborada, se afinou com o mercado capitalista e com os ditames do modelo neoliberal.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional foi “fabricada” para atender aos ditames da realidade neoliberal. Desde o processo de tramitação para a elaboração da Lei, já se sentia a pressão neoliberal. (POZZATI, 2002, p. 25).
A concepção legal corrobora o princípio mercadológico ao afirmar, no artigo 2º da Lei n.º 9.394/96, que a educação tem por finalidade “o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. O espírito expresso no texto da referida Lei demonstra o descaso com o valor da pessoa humana, restringindo o conceito de cidadão a mero produtor e consumidor de produtos e serviços conforme criticado pelo jurista Miguel Reale. Vejamos:
[...] a lei vigente deixa de fazer expressa referência ao valor da pessoa, preferindo estabelecer que a educação “tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Daí por diante, numa visão pragmática, cidadania e trabalho passam a ser os valores essenciais de referência, como se pode verificar pela leitura dos art. 22, 27, ítens I e III, 35, inciso II e 36, inciso III, dando-se, ademais, reiterado relevo à “compreensão científico-tecnológica dos processos produtivos”, devendo o aluno, por exemplo, ao final do ensino médio, demonstrar “o domínio dos princípios científicos e tecnológicos que presidem a produção moderna”. (Miguel Reale. Uma lei decepcionante – O Estado de São Paulo).
No que tange ao currículo escolar, as teorias de Bourdieu e Passeron (1982) afirmam que a escola, ao tratar pessoas com culturas diferentes de maneira igual, acaba reproduzindo valores que interessam às classes dominantes, num processo de reeducação e aculturação, além do fato de deixar de dar respostas a situações do cotidiano dos alunos. A escola acaba tornando-se instrumento e mecanismo de controle social. O aparente processo de “democratização” do ensino oculta a intenção velada de inclusão das massas para domesticá-las.
Quando a cultura que a Escola tem objetivamente por função, conservar, inculcar e consagrar tende a reduzir-se à relação com a cultura que se encontra investida de uma função social de distinção só pelo fato de que as condições de aquisição monopolizada pelas classes dominantes, o conservadorismo pedagógico que, em sua forma extrema, não assinala outro fim ao sistema de ensino senão o de conservar-se idêntico a si mesmo, é o melhor aliado do conservadorismo social e político, já que, sob aparência de defender os fins de uma instituição particular, ele contribui, por seus efeitos diretos e indiretos, para manutenção da ordem social. (BORDIEU, PASSERON, 1982, p. 207).
Todo esse contexto nos propõe um grande desafio: Como a educação pode ser um instrumento eficaz que possibilite às nossas crianças e jovens uma mudança de olhar, rompendo com os atuais paradigmas na construção de uma sociedade mais humana e inclusiva?
DAS SOMBRAS À LUZ: A EDUCAÇÃO COMO PROCESSO DE LIBERTAÇÃO
[Sócrates] Temos então, continuei, de pensar o seguinte sobre essa
matéria, se é verdade o que dissemos: a educação não é o que alguns
apregoam que ela é. Dizem eles que arranjam a introduzir ciência numa
alma em que ela não existe, como se introduzissem a vista a olhos cegos.
[Glauco] Dizem, realmente.
[Sócrates] A presente discussão indica a existência dessa faculdade na alma e de um órgão pelo qual aprende; como um olho que não fosse possível voltar das trevas para a luz, senão juntamente com todo o corpo, do mesmo modo esse órgão deve ser desviado, juntamente com a alma toda, das coisas que se alteram, até ser capaz de suportar a contemplação do Ser e da parte mais brilhante do Ser. A isso chamamos o bem ou não?
[Glauco] Chamamos.
[Sócrates] A educação seria, por conseguinte, a arte desse desejo, a maneira mais eficaz de fazer dar a volta a esse órgão, não a de fazer obter a visão, pois já a tem, mas uma vez que ele não está na posição correta e não olha para onde deve, dar-lhe os meios para isso. (PLATÃO, 2012, p. 214).
Enquanto educadores, ante o desejo de contribuir para a transformação, somos convidados a tomar posição e contribuir para a inclusão de nossas crianças e jovens, enquanto cidadãos, no contexto da sociedade. A educação que propomos pressupõe uma formação pautada na lógica de uma ética de valores humanitários universais e de um cidadão comprometido com as mudanças sociais. Entendemos que uma sociedade, para ser considerada evoluída, não pode prescindir da inclusão de crianças, jovens e de suas famílias, com o mínimo de acesso aos bens essenciais que são inerentes a sua dignidade enquanto pessoas. Nas palavras do educador Paulo Freire (1988, p. 9-10),
[...] não há prática educacional neutra, nem prática política por si mesma [...] O educador deve se perguntar a favor do quê e de quem está a serviço; por conseguinte, contra o quê e contra quem deve lutar, dentro de suas possibilidades e do processo de sua prática. [...] Quanto mais se proclama a neutralidade da formação, exaltando-se a necessidade de uma competência técnica e científica sem cor político-ideológica, tanto mais trabalha-se para a ordem estabelecida.
É preciso pensar a educação e a sociedade sob novos paradigmas. A falta de uma definição político-pedagógica da educação e a exaltação de uma competência técnico-científica, sem um viés político-social pode representar a manutenção da ordem estabelecida e a situação de injustiça social na qual estão inseridos crianças e jovens das camadas populares, usuários da escola pública.
Mas qual seria então o papel da educação? Como ela pode ser esse instrumento que contribui para que nossas crianças, jovens e suas famílias possam romper com as amarras e as correntes da exclusão que os impedem de ser feliz?
No diálogo travado com Glauco sobre a educação, Platão expressa um conceito de educação que em sua visão não é o que
Dizem eles que arranjam a introduzir ciência numa alma em que ela não existe, como se introduzissem a vista a olhos cegos. [...] A educação seria, por conseguinte, a arte desse desejo, a maneira mais eficaz de fazer dar a volta a esse órgão, não a de fazer obter a visão, pois já a tem, mas uma vez que ele não está na posição correta e não olha para onde deve, dar-lhe os meios para isso. (PLATÃO, 2012, p. 214).
Temos em Platão a propositura de que a educação não é processo de introdução de ciência num corpo indeciso e inerte. É preciso voltar os olhos da aparência do mundo sensível das coisas para a essência do verdadeiro conhecimento que se encontra no mundo das ideias. Ao dispor sobre sua teoria das ideias, Platão nos indica a forma de conhecer em dois níveis: o conhecimento sensível e o conhecimento científico e sistematizado. A tarefa da educação é, portanto, ser o instrumento que possibilita essa transposição. O professor ocupa, nesse processo, a função de um mediador entre a experiência sensível e o conhecimento organizado. A escola pode contribuir para o despertar da consciência crítica do contexto dessa realidade.
No mesmo sentido, Paulo Freire, ao abordar o processo de conhecimento e a relação professor-aluno, faz clara a distinção entre uma educação bancária e uma educação libertadora. A educação bancária é o processo pelo qual o professor, dono do saber, transforma o aluno em depósito de informações, transformando-o em objeto do processo educativo. Em contrapartida uma educação libertadora é o processo dialogal e dialético em que o aluno é sujeito de sua própria aprendizagem. Vejamos:
Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar possibilidade para a sua produção ou a sua construção. (FREIRE, 2000, p. 25)
[...]
O que quero dizer é o seguinte: quanto mais criticamente se exerça a capacidade de aprender tanto mais se constrói e desenvolve o que venho chamando “curiosidade epistemológica”, sem a qual não alcançamos o conhecimento cabal do objeto. É isto que nos leva, de um lado, a crítica e à recusa ao ensino “bancário”, de outro, a compreender que, apesar dele, o educando a ele submetido não está fadado a fenecer; em que pese o ensino bancário, que deforma a necessária criatividade do educando e do educador, o educando e ele sujeitado pode, não por causa do conteúdo cujo conhecimento lhe foi transferido, mas por causa do processo mesmo de aprender, dar, como se diz na linguagem popular, a volta por cima e superar o autoritarismo e o erro epistemológico do “bancarismo”. (FREIRE, 2000, p. 27).
Partindo desses conceitos, entendemos que a escola e a educação podem ser instrumentos de libertação ou de manutenção das desigualdades sociais. No decurso da história, a educação, como “direito de todos”, foi um jargão para ocultar o interesse de poucos, tendo em vista, como vimos, o comprometimento com a ideologia das classes dominantes que perpassa os currículos escolares. Uma pedagogia libertadora deve ter como norte a consolidação de um currículo e de uma abordagem que possibilite uma reflexão crítica, partindo da experiência e do universo cultural dos alunos, e seja coerente com os interesses das classes oprimidas. É preciso pensar a escola e a educação enquanto espaço que possa promover o homem, propiciar sua integração calcada em projetos mais globais de vivência em sociedade, pautada em valores da dignidade, do bem e da justiça social. A educação seria, a nosso ver, “a arte desse desejo”, um processo de libertação que contribui para o reconhecimento da própria identidade enquanto sujeito histórico e para a percepção macroestrutural de que as injustiças sociais são frutos da própria sociedade injusta que causa a miséria e a exclusão.
Enfim, a educação pode ser um instrumento libertador dos grilhões das opressões culturais, sociais, econômicas e políticas que se impõem como reflexo nas paredes da caverna do capitalismo, para propiciar uma libertação do homem na busca da verdadeira essência da sua humanidade, enquanto pessoas éticas e comprometidas com a transformação social. Um cidadão novo para uma sociedade nova. É preciso refazer a pergunta: onde queremos chegar? Quem sabe assim nossa inteligência e nossa capacidade criativa possam voltar-se para a verdadeira luz, a sabedoria humana e divina que existe em cada um de nós. Eis o grande desafio.
REFERÊNCIAS
ALVES, Rubem. Entre a Ciência e a Sapiência: O Dilema da Educação. 20. ed. São Paulo: Loyola, 1999.
BORDIEU, Pierre; PASSERON, Jean Claude. A Reprodução. Elementos para uma teoria do sistema de Ensino. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
______. Prólogo. In: GUTIÉRREZ, Francisco. Educação como práxis política. São Paulo: Summus, 1988. (Novas buscas em educação, 34). p. 9-10.
PLATÃO. A República. São Paulo: Martin Claret, 2012.
POZZATTI, Vera Lúcia de Freitas. A Redefinição da Educação para o 3º Milênio: Ideário Neoliberal e LDB – Lei n.º 9.394/96. 2002. Dissertação (Mestrado) – Centro Universitário Salesiano de São Paulo, Lorena, 2002.
Nosso foco se volta para a abordagem da Educação, no diálogo travado entre Sócrates e Glauco, transcrito no livro VII de A República. Nessa passagem, Platão elabora sua famosa metáfora da caverna, onde, segundo ele, a caverna seria o mundo das ilusões no qual estaria preso a maioria dos homens. O prisioneiro, permanecendo de costas para a abertura luminosa da frente da caverna, voltado para a parede escura dos fundos e devido a uma réstia de luz que penetra a escuridão, contempla na parede do fundo as projeções dos seres que compõem a realidade. Acostumado a ver somente essas projeções, assume a ilusão do que vê, tomando as sombras de um mundo irreal como verdadeiras. Se o prisioneiro da caverna escapasse e alcançasse o mundo luminoso da realidade, ficaria livre da ilusão sendo que esta só poderia ser rompida se o prisioneiro se libertasse das correntes que o impedem de ver a verdadeira realidade das coisas. Primeiro ele olharia as estrelas da noite, depois as imagens das coisas refletidas nas águas tranquilas, até que pudesse, enfim, olhar diretamente o sol e enxergar a fonte de toda a luminosidade.
Um trecho do diálogo nos chama a atenção, quando Platão fala sobre a natureza da educação. Vejamos:
[Sócrates] Temos então, continuei, de pensar o seguinte sobre essa matéria, se é verdade o que dissemos: a educação não é o que alguns apregoam que ela é. Dizem eles que arranjam a introduzir ciência numa alma em que ela não existe, como se introduzissem a vista a olhos cegos.
[...]
A educação seria, por conseguinte, a arte desse desejo, a maneira mais eficaz de fazer dar a volta a esse órgão, não a de fazer obter a visão, pois já a tem, mas uma vez que ele não está na posição correta e não olha para onde deve, dar-lhe os meios para isso.
[Glauco] Acho que sim.
[Sócrates] Por conseguinte, as outras qualidades chamadas da alma podem muito bem aproximar-se das do corpo, com efeito, se não existiram previamente podem criar-se, pelo hábito e pela prática. Mas a faculdade de pensar é, ao que me parece, de um caráter mais divino que tudo o mais; nunca perde a força e conforme a volta que lhe derem, pode tornar-se vantajosa e útil, ou inútil e prejudicial. Ou ainda não te apercebeste como a deplorável alma dos chamados perversos, mas que na verdade são espertos, tem um olhar penetrante e distingue claramente os objetos para os quais se volta, uma vez que não tem vista fraca, mas é forçado a estar a serviço do mal, de maneira que, quanto mais aguda a visão, maior é o mal que pratica? (PLATÃO, 2012, p. 214).
Nessa passagem, Platão expressa sua concepção sobre a capacidade humana de pensar e a considera de natureza divina. Indica que o papel da educação não é de fazer o sujeito “obter a visão”. Uma vez que ele não se encontra na posição correta, não olha pra onde deve, a função da educação seria dar-lhe os meios corretos para isso.
Isso nos remete à seguinte reflexão. Como a educação pode ser esse instrumento que possibilita aos nossos educandos se libertar das correntes da ilusão?
Demerval Saviani (2000 apud POZZATTI, 2002) reflete sobre os meios universais dos quais a burguesia se utiliza para ser porta-voz do conjunto da humanidade, logrando com isso a sua hegemonia, qual seja: a obtenção do consenso das demais classes em torno da legitimidade da sua direção. A educação, com um viés tecnicista, é utilizada como meio e estratégia para a manutenção desse fim, sob os paradigmas do mercado de trabalho.
Qual seria, portanto, o papel de uma educação dentro desse contexto marcado por uma lógica racionalista e mercadológica? Que homem pretendemos formar? Que concepção de educação deve nortear uma prática libertadora capaz de romper com essa lógica, na qual o cidadão é concebido como mero consumidor, e ser um instrumento para que nosso educando possa, enfim, romper as correntes e voltar seus olhos para a contemplação da luz?
O capitalismo, a cada dia, sinaliza ao mundo valores de competitividade onde a educação é vista também sob essa lógica, de forma a atender as necessidades da economia mundial.
Nossa reflexão parte do pressuposto de uma formação pautada em uma ética de valores humanitários e para a formação da cidadania em que a educação ocupa um papel relevante, podendo ser um instrumento, não para que o jovem “obtenha a visão”, mas para que, por ele mesmo, possa voltar-se para a luz, rompendo com as correntes que o aprisionam e o impedem de ser feliz.
Em Platão, essa distinção entre a ilusão e essência é clara. O mundo sensível é ilusório. Os olhos foram feitos para ver, mas só a alma é capaz de conhecer. Enxergar essa capacidade, para além de um racionalismo escravizante, está necessariamente relacionado à prática da virtude, do bem e da justiça. Em Platão, temos a educação do ser em sua plenitude enquanto sujeito ético, cidadão e agente transformador, construtor de uma sociedade nova.
O MITO DA CAVERNA E OS PARADIGMAS DA MODERNIDADE
[Sócrates] Em seguida, continuei, imagina a nossa natureza relativamente à educação ou à sua falta, de acordo com a seguinte experiência. Suponhamos os homens em uma habitação subterrânea em forma de caverna, com uma entrada aberta para a luz, que se estende a todo o comprimento dessa gruta. Estão lá dentro desde a infância, algemados de pernas e pescoços, de tal maneira que só lhes é dado permanecer no mesmo lugar e olhar em frente; são incapazes de voltar a cabeça, por causa dos grilhões [...]. (PLATÃO, 2012, p. 210).
Vivemos em um contexto de modernidade marcado por paradoxos de dimensões imensuráveis. Em que pese todo o desenvolvimento do pensamento humano, de toda a sofisticação tecnológica, da globalização em série, ainda são gritantes as desigualdades sociais nos causando grande perplexidade. Apesar do avanço da ciência e da tecnologia ainda não demos conta de resolver os grandes problemas que afetam o homem contemporâneo: a má distribuição da riqueza, a concentração de renda nas mãos de poucos, o esgotamento dos recursos naturais em nome da riqueza e do lucro nos obriga a pensar que ainda não rompemos com as amarras e com as misérias dos grilhões que nos aprisionam na grande caverna do capitalismo.
O mundo moderno avança de modo acelerado com uma lógica de mercado imposto pelo modelo neoliberal, colocando, como paradigma, a competição e o lucro, em detrimento de uma vida pautada em valores éticos de respeito e de solidariedade humana. O caminho proposto pelo capital é de uma sociedade de livre comércio competitivo em que o indivíduo não é mais visto em sua capacidade plena enquanto ser. O paradigma da modernidade coloca o consumo como condição para a felicidade e para a realização do “ser”, reduzindo o conceito de cidadão a mero consumidor.
Por sua vez, os meios de comunicação impregnam as casas e as famílias com seu ideário ideológico do lucro, do consumo e da inversão de valores, ocasionando um consequente esvaziamento nas relações humanas. A informação chega com a velocidade da “luz”, no dedilhar dos teclados, pelas vias dos modernos computadores, da internet e das redes sociais. Embora admirados com a capacidade criativa e inventiva do homem, ao mesmo tempo, ficamos perplexos diante dos paradoxos, pois, por mais que se rompam as barreiras, e se aproximem os mundos, mais o homem se sente vazio e angustiado.
Rubem Alves (2009), em seu livro Entre a ciência e a sapiência: O dilema da educação, narra uma metáfora intitulada “O homem deve reencontrar o Paraíso”, em que uma família, querendo se aventurar pelos caminhos da navegação, se dispõe a aprender todas as suas técnicas.
Puseram-se então a estudar cada um aquilo que teria que fazer no barco: manutenção do casco, instrumentos de navegação, astronomia, meteorologia, as velas, as cordas, as polias e roldanas, os mastros, os lemes, os parafusos, o motor, o radar. (ALVES, 2009, p. 73).
Enfim se aparatam de todos os meios técnicos necessários para empreender seu intento. Ocorre, entretanto, no momento de decidir qual o rumo a ser tomado, todo o aparato tecnológico se cala. Onde queremos chegar?
Os computadores, coitados, chamados a dar palpite, ficaram em silêncio. Computadores não têm preferências, falta-lhes a sutil capacidade de “gostar”, que é a essência da vida humana. Perguntados sobre o porto de sua escolha, disseram que não entendiam a pergunta, que não lhes importava para onde se estava indo. Se os barcos se fazem com ciência, a navegação se faz com os sonhos. Infelizmente, a ciência, utilíssima, especialista em saber “como as coisas funcionam”, tudo ignora sobre o coração humano. É preciso sonhar para se decidir sobre o destino da navegação. Mas o coração humano, lugar dos sonhos, ao contrário da ciência, é coisa imprecisa. Disse certo o poeta: “Viver não é preciso”. Primeiro vem o impreciso desejo de navegar. Só depois vem a precisa ciência de navegar. (ALVES, 1999, p. 74, grifo do autor).
No campo educacional, a coisa não difere. A escola e a educação sofrem o reflexo dessa lógica neoliberal onde, na superfície da lousa negra, são projetadas sombras de uma educação pautada em uma pedagogia tecnicista e de uma lógica do consumo e da competividade. Saviani (2000, p. 192 apud POZZATTI, 2002, p. 26) nos indica como, através da educação, a burguesia tenta exercer seu poder hegemônico dentro das sociedades ditas democráticas:
Compreende-se, então, por que a escola primária pública, universal, gratuita, obrigatória e leiga, idealizada e realizada pela burguesia para converter os súditos em cidadãos, não tenha passado de um instrumento a serviço da emancipação política entendida como a redução do homem, de um lado a membro da sociedade burguesa, a indivíduo egoísta independente e, de outro, a cidadão do Estado, a pessoa moral.
No campo legal, Pozzatti ao analisar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei 9394/96, reflete como esta lei ao ser elaborada, se afinou com o mercado capitalista e com os ditames do modelo neoliberal.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional foi “fabricada” para atender aos ditames da realidade neoliberal. Desde o processo de tramitação para a elaboração da Lei, já se sentia a pressão neoliberal. (POZZATI, 2002, p. 25).
A concepção legal corrobora o princípio mercadológico ao afirmar, no artigo 2º da Lei n.º 9.394/96, que a educação tem por finalidade “o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. O espírito expresso no texto da referida Lei demonstra o descaso com o valor da pessoa humana, restringindo o conceito de cidadão a mero produtor e consumidor de produtos e serviços conforme criticado pelo jurista Miguel Reale. Vejamos:
[...] a lei vigente deixa de fazer expressa referência ao valor da pessoa, preferindo estabelecer que a educação “tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Daí por diante, numa visão pragmática, cidadania e trabalho passam a ser os valores essenciais de referência, como se pode verificar pela leitura dos art. 22, 27, ítens I e III, 35, inciso II e 36, inciso III, dando-se, ademais, reiterado relevo à “compreensão científico-tecnológica dos processos produtivos”, devendo o aluno, por exemplo, ao final do ensino médio, demonstrar “o domínio dos princípios científicos e tecnológicos que presidem a produção moderna”. (Miguel Reale. Uma lei decepcionante – O Estado de São Paulo).
No que tange ao currículo escolar, as teorias de Bourdieu e Passeron (1982) afirmam que a escola, ao tratar pessoas com culturas diferentes de maneira igual, acaba reproduzindo valores que interessam às classes dominantes, num processo de reeducação e aculturação, além do fato de deixar de dar respostas a situações do cotidiano dos alunos. A escola acaba tornando-se instrumento e mecanismo de controle social. O aparente processo de “democratização” do ensino oculta a intenção velada de inclusão das massas para domesticá-las.
Quando a cultura que a Escola tem objetivamente por função, conservar, inculcar e consagrar tende a reduzir-se à relação com a cultura que se encontra investida de uma função social de distinção só pelo fato de que as condições de aquisição monopolizada pelas classes dominantes, o conservadorismo pedagógico que, em sua forma extrema, não assinala outro fim ao sistema de ensino senão o de conservar-se idêntico a si mesmo, é o melhor aliado do conservadorismo social e político, já que, sob aparência de defender os fins de uma instituição particular, ele contribui, por seus efeitos diretos e indiretos, para manutenção da ordem social. (BORDIEU, PASSERON, 1982, p. 207).
Todo esse contexto nos propõe um grande desafio: Como a educação pode ser um instrumento eficaz que possibilite às nossas crianças e jovens uma mudança de olhar, rompendo com os atuais paradigmas na construção de uma sociedade mais humana e inclusiva?
DAS SOMBRAS À LUZ: A EDUCAÇÃO COMO PROCESSO DE LIBERTAÇÃO
[Glauco] Dizem, realmente.
[Sócrates] A presente discussão indica a existência dessa faculdade na alma e de um órgão pelo qual aprende; como um olho que não fosse possível voltar das trevas para a luz, senão juntamente com todo o corpo, do mesmo modo esse órgão deve ser desviado, juntamente com a alma toda, das coisas que se alteram, até ser capaz de suportar a contemplação do Ser e da parte mais brilhante do Ser. A isso chamamos o bem ou não?
[Glauco] Chamamos.
[Sócrates] A educação seria, por conseguinte, a arte desse desejo, a maneira mais eficaz de fazer dar a volta a esse órgão, não a de fazer obter a visão, pois já a tem, mas uma vez que ele não está na posição correta e não olha para onde deve, dar-lhe os meios para isso. (PLATÃO, 2012, p. 214).
Enquanto educadores, ante o desejo de contribuir para a transformação, somos convidados a tomar posição e contribuir para a inclusão de nossas crianças e jovens, enquanto cidadãos, no contexto da sociedade. A educação que propomos pressupõe uma formação pautada na lógica de uma ética de valores humanitários universais e de um cidadão comprometido com as mudanças sociais. Entendemos que uma sociedade, para ser considerada evoluída, não pode prescindir da inclusão de crianças, jovens e de suas famílias, com o mínimo de acesso aos bens essenciais que são inerentes a sua dignidade enquanto pessoas. Nas palavras do educador Paulo Freire (1988, p. 9-10),
[...] não há prática educacional neutra, nem prática política por si mesma [...] O educador deve se perguntar a favor do quê e de quem está a serviço; por conseguinte, contra o quê e contra quem deve lutar, dentro de suas possibilidades e do processo de sua prática. [...] Quanto mais se proclama a neutralidade da formação, exaltando-se a necessidade de uma competência técnica e científica sem cor político-ideológica, tanto mais trabalha-se para a ordem estabelecida.
É preciso pensar a educação e a sociedade sob novos paradigmas. A falta de uma definição político-pedagógica da educação e a exaltação de uma competência técnico-científica, sem um viés político-social pode representar a manutenção da ordem estabelecida e a situação de injustiça social na qual estão inseridos crianças e jovens das camadas populares, usuários da escola pública.
Mas qual seria então o papel da educação? Como ela pode ser esse instrumento que contribui para que nossas crianças, jovens e suas famílias possam romper com as amarras e as correntes da exclusão que os impedem de ser feliz?
No diálogo travado com Glauco sobre a educação, Platão expressa um conceito de educação que em sua visão não é o que
Dizem eles que arranjam a introduzir ciência numa alma em que ela não existe, como se introduzissem a vista a olhos cegos. [...] A educação seria, por conseguinte, a arte desse desejo, a maneira mais eficaz de fazer dar a volta a esse órgão, não a de fazer obter a visão, pois já a tem, mas uma vez que ele não está na posição correta e não olha para onde deve, dar-lhe os meios para isso. (PLATÃO, 2012, p. 214).
Temos em Platão a propositura de que a educação não é processo de introdução de ciência num corpo indeciso e inerte. É preciso voltar os olhos da aparência do mundo sensível das coisas para a essência do verdadeiro conhecimento que se encontra no mundo das ideias. Ao dispor sobre sua teoria das ideias, Platão nos indica a forma de conhecer em dois níveis: o conhecimento sensível e o conhecimento científico e sistematizado. A tarefa da educação é, portanto, ser o instrumento que possibilita essa transposição. O professor ocupa, nesse processo, a função de um mediador entre a experiência sensível e o conhecimento organizado. A escola pode contribuir para o despertar da consciência crítica do contexto dessa realidade.
No mesmo sentido, Paulo Freire, ao abordar o processo de conhecimento e a relação professor-aluno, faz clara a distinção entre uma educação bancária e uma educação libertadora. A educação bancária é o processo pelo qual o professor, dono do saber, transforma o aluno em depósito de informações, transformando-o em objeto do processo educativo. Em contrapartida uma educação libertadora é o processo dialogal e dialético em que o aluno é sujeito de sua própria aprendizagem. Vejamos:
Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar possibilidade para a sua produção ou a sua construção. (FREIRE, 2000, p. 25)
[...]
O que quero dizer é o seguinte: quanto mais criticamente se exerça a capacidade de aprender tanto mais se constrói e desenvolve o que venho chamando “curiosidade epistemológica”, sem a qual não alcançamos o conhecimento cabal do objeto. É isto que nos leva, de um lado, a crítica e à recusa ao ensino “bancário”, de outro, a compreender que, apesar dele, o educando a ele submetido não está fadado a fenecer; em que pese o ensino bancário, que deforma a necessária criatividade do educando e do educador, o educando e ele sujeitado pode, não por causa do conteúdo cujo conhecimento lhe foi transferido, mas por causa do processo mesmo de aprender, dar, como se diz na linguagem popular, a volta por cima e superar o autoritarismo e o erro epistemológico do “bancarismo”. (FREIRE, 2000, p. 27).
Partindo desses conceitos, entendemos que a escola e a educação podem ser instrumentos de libertação ou de manutenção das desigualdades sociais. No decurso da história, a educação, como “direito de todos”, foi um jargão para ocultar o interesse de poucos, tendo em vista, como vimos, o comprometimento com a ideologia das classes dominantes que perpassa os currículos escolares. Uma pedagogia libertadora deve ter como norte a consolidação de um currículo e de uma abordagem que possibilite uma reflexão crítica, partindo da experiência e do universo cultural dos alunos, e seja coerente com os interesses das classes oprimidas. É preciso pensar a escola e a educação enquanto espaço que possa promover o homem, propiciar sua integração calcada em projetos mais globais de vivência em sociedade, pautada em valores da dignidade, do bem e da justiça social. A educação seria, a nosso ver, “a arte desse desejo”, um processo de libertação que contribui para o reconhecimento da própria identidade enquanto sujeito histórico e para a percepção macroestrutural de que as injustiças sociais são frutos da própria sociedade injusta que causa a miséria e a exclusão.
Enfim, a educação pode ser um instrumento libertador dos grilhões das opressões culturais, sociais, econômicas e políticas que se impõem como reflexo nas paredes da caverna do capitalismo, para propiciar uma libertação do homem na busca da verdadeira essência da sua humanidade, enquanto pessoas éticas e comprometidas com a transformação social. Um cidadão novo para uma sociedade nova. É preciso refazer a pergunta: onde queremos chegar? Quem sabe assim nossa inteligência e nossa capacidade criativa possam voltar-se para a verdadeira luz, a sabedoria humana e divina que existe em cada um de nós. Eis o grande desafio.
REFERÊNCIAS
ALVES, Rubem. Entre a Ciência e a Sapiência: O Dilema da Educação. 20. ed. São Paulo: Loyola, 1999.
BORDIEU, Pierre; PASSERON, Jean Claude. A Reprodução. Elementos para uma teoria do sistema de Ensino. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
______. Prólogo. In: GUTIÉRREZ, Francisco. Educação como práxis política. São Paulo: Summus, 1988. (Novas buscas em educação, 34). p. 9-10.
PLATÃO. A República. São Paulo: Martin Claret, 2012.
POZZATTI, Vera Lúcia de Freitas. A Redefinição da Educação para o 3º Milênio: Ideário Neoliberal e LDB – Lei n.º 9.394/96. 2002. Dissertação (Mestrado) – Centro Universitário Salesiano de São Paulo, Lorena, 2002.
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* Diretora de Escola
Fonte: http://blogln.ning.com/profiles/blogs/por-uma-educa-o-humanista-em-plat-o-um-desafio-a-modernidade?xg_source=activity
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