Quando, em janeiro de 2011, aceitou o cargo de secretário da Cultura do governador Tarso Genro, de quem é amigo pessoal, alguns escritores lhe advertiram a respeito dos riscos dessa escolha. Temiam que, absorvido pela agitação inerente à política, Assis Brasil parasse de escrever. A prova de que estavam enganados nos chega agora, com o lançamento de "Figura na Sombra" (L&PM), seu 19º romance. Admite que a entrada na política desarrumou, inicialmente, sua vida: "Foi uma revolução nos primeiros meses. Simplesmente, eu não conseguia mais escrever". Mas, desmentindo os pessimistas, logo superou esse período de incompatibilidade. "Agora é uma revolução controlada. Encontrei, enfim, tempo para meus livros." Trabalha à noite, após o expediente oficial. Isso quando não precisa representar o governador em eventos culturais.
Assis Brasil é, antes de tudo, um homem metódico, e esse atributo foi decisivo na conciliação entre política e literatura. Foi preciso que fizesse escolhas. Que mantivesse a escrita, mesmo com o tempo curto, como prioridade. "Leio pouco hoje em dia. Prefiro dedicar o tempo disponível para escrever." Não chega a se aborrecer com essa escolha: "Já li muito, e o que li me é suficiente". Sempre foi um leitor abnegado dos clássicos, em particular de Gustave Flaubert, Eça de Queiroz e Machado de Assis. Hoje, quando lhe sobra tempo para ler, prefere, porém, alguns contemporâneos. Em particular, os franceses, como Pascal Quignard, de 64 anos, Michel Quint, de 63, e Philippe Claudel, de 50. Explica: "São escritores que aprecio muito pelo sentido de economia verbal". Apesar de serem da mesma geração, servem-lhe de mestres. Dá o exemplo mais forte de Quignard: "É um escritor mais novo do que eu, com quem aprendi a escrever menos e, ainda, a tratar de épocas pretéritas com o olhar de hoje". São escritores, ele sintetiza, que, com pouco, dizem tudo. Entre esses mestres contemporâneos, inclui ainda o italiano Alessandro Baricco, de 54.
"Minha ideia fixa é o choque entre o que é
civilizado
e o que é bárbaro. Gosto dessas dicotomias
coletivas", revela
o romancista
Desde que publicou seu primeiro livro, "Um Quarto de Légua em Quadro", romance histórico lançado em 1958, a escrita de Assis Brasil passou a se caracterizar por períodos longos e tortuosos. A grande ruptura aconteceu em 2001, quando surgiu "O Pintor de Retratos", o 15º deles. "Com esse livro, alterei drasticamente meus períodos gramaticais, trabalhando, quase sempre, com sentenças declarativas e extremamente curtas." Seguindo a mesma estratégia de contensão, "Figura na Sombra" - que começou a escrever em setembro de 2006, em Gramado, e só terminou em abril deste ano - se comprime em 73 capítulos curtos, numerado em romanos. Não se importa de comparar sua nova linguagem, nascida com o século XXI, à linguagem das crianças, que ainda não sabem construir períodos complexos e, por isso, se amparam nas frases curtas. "Talvez seja uma volta às origens. Não sei dizer como isso aconteceu. O fato é que eu estava farto de minha forma anterior, com frases de pelo menos três ou quatro linhas." Tampouco se arrisca a dizer que essa transformação tenha sido uma "evolução". "Foi, talvez, uma involução", chega a imaginar. "Mas nunca mais me foi possível recuperar minha anterior expressão linguística."
Algumas obsessões fundamentais, porém, permanecem. "Minha ideia fixa é o choque entre o que é civilizado e o que é bárbaro. Gosto dessas dicotomias coletivas." Sua visão do presente, em consequência, está sempre transpassada pela presença do passado. Em "Figura na Sombra", o novo romance, Assis Brasil usa a figura de dois importantes cientistas do século XIX, e grandes amigos, o naturalista francês Aimé Bonpland e o explorador alemão Alexandre von Humboldt, para pensar um tema complexo: o período de transição entre o iluminismo e o incipiente romantismo. "Tento pensar suas repercussões no pensamento e na cultura. Muita pretensão, como se vê." Ambos, Bonpland e Humboldt, tiveram seus destinos ligados, em algum momento, à América do Sul.
Há ainda, nessa reviravolta, uma conexão com certo traço determinante da personalidade de Assis Brasil: a obsessão pelo método e pela clareza. Tem, por exemplo, a obsessão da folha limpa e impecável. Não suporta trabalhar com a desordem. "Enquanto escrevo, vou imprimindo, vou rabiscando, vou corrigindo, para depois imprimir de novo, de tal modo que sempre tenho à mão um texto virgem." Também não consegue escrever sem que seu gabinete de trabalho e sua mesa estejam milimetricamente organizados. Só produz em um ambiente sem máculas, mesmo que se trate, apenas, de um detalhe. "Um lápis fora do lugar me perturba a ponto de não conseguir escrever. Tive uma infância normal... Mas sou um maníaco." Faz, porém, uma distinção importante entre o escritor e o homem: "Isso quanto a mim. Quanto aos outros, sou muito tolerante, quase permissivo".
Ainda assim, Assis Brasil é um escritor feliz, que não aceita a ligação, tão comum, entre literatura e sofrimento. "Sempre senti muito prazer em escrever", afirma, destoando daqueles que falam, às vezes até dramaticamente, da dor imposta pela escrita. "Sou feliz, exceto quando escrevo meu diário", ressalva. "Mas escrever ficção não me faz sofrer: é uma experiência empolgante, venturosa. É quando me sinto mais eu mesmo." Enquanto escreve, sente-se soberano e senhor das palavras. "E gosto desse poder, que exerço de maneira despótica e tirânica." Em sua ficção, só ele manda. Fora dela, ao contrário, e eis aqui um atributo muito útil na vida política, é um homem que gosta de trocar ideias, de dialogar, de consultar outras pessoas. Não hesita em dizer: "Penso que sou um bom sujeito". Merece, assim, a denominação de "venturoso", que ele mesmo dá à sua escrita. Atributo que nos remete à figura de d. Manuel I de Portugal, que reinou durante o período das grandes descobertas marítimas. Sim: Assis Brasil também é um incansável descobridor.
Aos 67 anos, admite que tem hoje "uma preocupação notável com a morte". Preocupação que, é claro, aparece em suas ficções. Apressa-se em ressalvar: "Nada mórbido, nada que me deixe melancólico ou candidato ao manicômio". É, mais, a sensação, cada vez mais clara, não só de que já construiu uma obra, mas, sobretudo, de que só ela restará depois de sua morte. Nada mais.
Por causa disso, tornou-se, aos poucos, um homem impaciente com as banalidades do cotidiano. Quando entra em um quarto de hotel, por exemplo, e a torneia do chuveiro não funciona, em vez de pedir para consertá-la, prefere mudar imediatamente de quarto. Tenta resumir: "Digamos assim: estou vivendo 'sub specie aeternitatis'". Usa uma expressão do filósofo holandês do século XVII Baruch Spinoza, cuja tradução aproximada seria: "na perspectiva do eterno". A ideia de Spinoza se contrapõe aos princípios daqueles que regem suas vidas sob o ponto de vista objetivo, ou seja, sob a perspectiva do presente. Sempre crítico, Assis Brasil critica, porém, o paralelo que ele mesmo construiu: "É um absurdo. É o resultado de ler muito Spinoza".
"Escrever ficção não me faz sofrer:
é uma experiência empolgante, venturosa.
É quando me sinto mais eu mesmo"
Na escrita de "Figura na Sombra", repetiu uma estratégia muito particular de trabalho - que lhe é sempre útil. Em seus romances, começa escrevendo apenas a primeira página ou o final do livro. "O miolo vem depois, quando passo à fase de organização do romance, sua divisão em capítulos, em subcapítulos e em que prevejo o número de páginas." É um método que se transformou em vício: "Não consigo trabalhar se não for assim", admite. Contudo, uma vez o romance pronto, o escritor disciplinado se transforma em um escritor desleixado. "Sempre fui displicente em relação aos livros concluídos", revela. "Os amigos me dizem que já perdi muito dinheiro por isso. E têm razão."
Dá um exemplo: "Deixei transcorrer anos antes que me animasse a rescindir um contrato com uma editora que deixava o mercado deserto dos meus livros. Quando o assunto se tornou escandaloso, aí sim, negociei com a L&PM, que é uma bela editora, com presença nacional". Como entender uma discrepância tão grande entre o escritor metódico e o mesmo escritor displicente? Assis Brasil tenta explicar: "O processo é meio psicanalítico. Terminado o livro, esqueço-me dele, livro-me dele. Desfaço-me de tudo o que diz respeito a esse livro. Ele já não me pertence". Admira os escritores que seguem, passo a passo, as obras publicadas. Sabe que deveria fazer o mesmo. Chega, então, àquele que é, provavelmente, o motivo verdadeiro: "Mas no fundo, no fundo, tenho uma imensa preguiça".
Afora esse desleixo com a própria obra, Assis Brasil continua a ser o mesmo homem metódico e simples. "Acho que minhas rotinas e hábitos não se alteraram." Seu único hobby é colecionar arte sacra, "com peças que já atulham minha casa do primeiro ao terceiro piso". Muitas vezes, as galerias de arte o consultam a respeito do tema. "Nunca cobro por isso. Fazer o quê?" Acredita que a coleção tem uma função especial em sua vida: lembrar-lhe da existência do transcendente. A transcendência é outra de suas obsessões. E talvez seja a origem de sua ventura.
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Reportagem Por José Castello | Para o Valor, de Curitiba
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