Entrevista especial com Michael Löwy
Ainda hoje, encontramos na esquerda esta visão
idealista, neo-hegeliana, que faz do filósofo, ou da vanguarda, ou do
partido, a “cabeça” da revolução, constata sociólogo.
Questionado
a respeito dos principais limites do pensamento marxista e o que
explica o fato de que o marxismo seja visto por muitos setores da
academia como retrógrado, Michael Löwy, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, frisa que o marxismo é um pensamento em movimento, que trata de superar os limites que estão presentes na própria obra de Marx e Engels: “por exemplo, um tratamento muito insuficiente da questão ecológica”.
Para Löwy, alguns setores da academia confundem o
marxismo com sua caricatura retrógrada, a ideologia do assim chamado
“socialismo real”. E continua: “outros, identificados com a ideologia
dominante, pretendem que o desenvolvimento capitalista represente o
‘progresso’, sendo o marxismo ‘arcaico’, por se opor à expansão do
mercado e à acumulação do capital”.
Segundo o sociólogo marxista, tinha razão Jean Paul-Sartre
ao dizer que o marxismo é o horizonte intelectual de nossa época. Para
ele, as tentativas de “superá-lo” – pós-modernidade, pós-marxismo, etc. –
acabam sendo regressões políticas e culturais. “Como já diziam Rosa Luxemburgo, Lukács e Gramsci, quando a humanidade suprimir o capitalismo, o marxismo poderá ser substituído por novas formas de pensamento...”.
Michael Löwy (foto) é sociólogo marxista e filósofo.
É diretor emérito de pesquisas do Centre National de la Recherche
Scientifique – CNRS, tendo sido homenageado em 1994 com a medalha de
prata do CNRS em Ciências Sociais. É ainda um dos principais pensadores
marxistas da atualidade. Recentemente publicou os livros Revoluções (Boitempo, 2009) e A teoria da revolução no jovem Marx (Boitempo, 2012). Além disso, é autor de livros sobre Karl Marx, Che Guevara, a Teologia da Libertação, György Lukács, Walter Benjamin, Lucien Goldmann e Franz Kafka.
Recentemente ele publicou o livro A teoria da revolução no jovem Marx. São Paulo: Boitempo, 2012.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais são as peculiaridades da revolução na
obra do jovem Marx? Em que aspectos sua teoria se modifica em seus
escritos posteriores?
Michael Löwy – Nas Teses sobre Feuerbach (1845) – o germe genial de uma nova concepção do mundo, segundo Engels – e na Ideologia alemä (1846), Marx inventa uma nova teoria, que se poderia definir como filosofia da práxis (o termo é de Gramsci).
Superando dialeticamente o idealismo neo-hegeliano – para o qual a
mudança da sociedade começa com a mudança das consciências – e o
materialismo vulgar – para o qual é necessário primeiro mudar as
“circunstâncias” materiais –, Marx afirma, na Tese n. III sobre Feuerbach: na práxis revolucionária, coincidem a mudança das circunstâncias e automodificação dos indivíduos.
Como ele explica pouco depois na Ideologia alemã:
uma consciência comunista de massas só pode surgir da ação, da
experiência, da luta revolucionária das massas; a revolução é não apenas
necessária para derrubar a classe dominante, mas também para que a
classe subversiva se liberte da ideologia dominante.
Em outras palavras: a única emancipação verdadeira é a
autoemancipação revolucionária. Essa tese vai ser um fio vermelho,
através de toda sua obra, mesmo que as formulações sejam mais
diretamente políticas e menos filosóficas. Por exemplo, no célebre
preâmbulo dos Estatutos da Primeira Internacional: “A emancipação dos trabalhadores será a obra dos próprios trabalhadores”. Mas isso vale também para o Manifesto comunista, para os escritos sobre a Comuna de Paris, etc.
IHU On-Line – Como pode ser compreendida a ditadura do
proletariado face a democracia que emana da teoria da revolução
comunista?
Michael Löwy – A expressão “ditadura do proletariado” foi pouco feliz. Mas como o demonstrou o socialista americano Hal Draper, o que Marx e Engels queriam dizer com isso era o poder democrático dos trabalhadores, tal como o conheceu a Comuna de Paris,
que teve eleições democráticas, pluripartidarismo, liberdade de
expressão, etc. No século XX, essa expressão serviu para justificar
políticas autoritárias em nome do comunismo, que não correspondem ao
pensamento de Marx.
IHU On-Line – O que mudou na esquerda desde o lançamento da primeira edição de A revolução comunista na obra do jovem Marx?
Michael Löwy – O título da primeira edição (não da tese de doutorado) era A teoria da revolução no jovem Marx,
publicado pelas Editions Maspero, em 1971. Desde então muita água
correu nas margens do Sena, e a versão estalinista da esquerda, que
predominou durante boa parte do século XX, entrou em crise e
praticamente desmoronou no mundo inteiro. Fica então confirmada, pela
via negativa, a tese de Marx: a única revolução verdadeira é a autoemancipação dos oprimidos.
IHU On-Line – Em termos gerais, o senhor considera que a
esquerda em suas diferentes experiências (União Soviética, Leste
Europeu, América Latina, Europa e Brasil) compreendeu Marx de forma
equivocada? Por quê?
Michael Löwy – Na URSS, em seus primeiros anos,
existiu talvez uma compreensão equivocada do marxismo, uma leitura
autoritária de certos textos. Mas a partir do stalinismo, em meados dos
anos 1920, já não se trata de equívoco, mas de uma ideologia de Estado,
pretensamente marxista-leninista, visando justificar o poder totalitário
da burocracia e suas políticas oportunistas. Infelizmente, os partidos
comunistas da Europa, América Latina e Brasil seguiram,
durante muitos anos, a orientação stalinista. Mas já a partir de 1956
e, sobretudo, de 1968 (invasão da Tchecoslováquia), muitos comunistas
começaram a questionar esta ideologia. Na América Latina foi a Revolução Cubana que provocou uma profunda crise no movimento comunista.
IHU On-Line – A revolução permanente de Trotsky é uma categoria adequada para se pensar a esquerda hoje? Por quê?
Michael Löwy – A teoria da revolução permanente de Trotsky – que havia sido formulada por José Carlos Mariategui,
no contexto latino-americano, desde 1928 – é a única que dá conta da
dinâmica das revoluções do século XX: revoluções russa de 1917, chinesa,
iugoslava, vietnamita, cubana. Em todos estes países, uma revolução
democrática, agrária e/ou anticolonial se transforma num processo
ininterrupto – permanente – em revolução socialista. Infelizmente, em
todos estes processos – com a exceção parcial de Cuba –
acabou se dando uma degeneração burocrática. Isso não é uma fatalidade,
mas o produto de circunstâncias históricas. O que vale ainda hoje é a
visão estratégica: as revoluções na periferia do sistema serão
revoluções socialistas, democráticas, agrárias e anti-imperialistas ao
mesmo tempo; ou então serão “caricaturas de revolução”, como dizia Che Guevara. Dito isso, não se pode considerar a teoria de Trotsky
como um dogma infalível: ele previa, nestas revoluções, um papel
dirigente da classe operária, que só se deu no caso russo de 1917.
IHU On-Line – Como concilia a militância socialista e
surrealista? Como essas vertentes se complementam e confluem para o
trotskismo?
Michael Löwy – O surrealismo é um movimento
romântico revolucionário, de reencantamento do mundo, que tem uma
vocação eminentemente subversiva: é, portanto, perfeitamente compatível
com a militância socialista. Aliás, muitos surrealistas, como o poeta Benjamin Péret
– que esteve vários anos no Brasil – nunca deixou de militar, e
combateu em 1936-37, nas fileiras antifascistas na guerra civil
espanhola.
Em 1938, André Breton, o fundador do surrealismo, viajou ao México para encontrar Leon Trotsky, então exilado em Coyacan. Os dois redigiram juntos um manifesto, intitulado Por uma arte revolucionária independente, contra qualquer controle de partido ou Estado sobre atividade poética ou artística. Pouco depois, será fundada a Federação Internacional da Arte Revolucionária Independente – FIARI,
na qual participam surrealistas, trotskistas, e outros. Mas o
surrealismo não se relacionou somente com o trotskismo: teve também
vínculos com o anarquismo, em particular nos anos 1950, e chegou a se
aproximar de Cuba revolucionária nos anos 1960. Suas simpatias vão a
todo movimento autenticamente revolucionário.
IHU On-Line – Quais são os desafios da autoemancipação do
proletariado numa sociedade “enfeitiçada” pelo consumo e, por
conseguinte, por um trabalho que proporciona a alimentação dessa
maquinaria capitalista?
Michael Löwy – O feitiço do consumo e o fetichismo
da mercadoria exercem um poder considerável sobre a população, mas em
certos momentos decisivos o feitiço se rompe, a magia negra do
capitalismo deixa de funcionar e os proletários, a juventude, os
oprimidos, se levantam contra o sistema. A história da América Latina
das últimas décadas é uma ótima ilustração disso.
IHU On-Line – O filósofo como cabeça e o proletariado como
coração da revolução. Até que ponto essa ideia de Marx inspira a
esquerda do nosso tempo?
Michael Löwy – Essa ideia, de corte tipicamente neo-hegeliano, foi defendida por Marx no
começo de 1844. Mas pouco depois, impactado pelo levante dos tecedores
da Silésia (norte da Alemanha), de junho de 1844, ele descobre que o
proletariado alemão é “filosófico”, não precisa esperar pelos
neo-hegelianos para se sublevar. Ainda hoje, encontramos na esquerda
essa visão idealista, neo-hegeliana, que faz do filósofo, ou da
vanguarda, ou do partido, a “cabeça” da revolução. A revolução é um belo
monstro com mil cabeças.
IHU On-Line – Qual é o significado dos movimentos dos indignados e da primavera árabe? Seriam sopros de uma nova política?
Michael Löwy – A Primavera Árabe foi
um magnífico levante da juventude árabe contra ditaduras sanguinárias e
anacrônicas. Infelizmente, a vitória dos revolucionários foi confiscada
– provisoriamente, esperamos – por forças islamistas conservadoras.
No caso do Movimento dos Indignados, trata-se de
outro contexto: a crise do capitalismo na Europa e Estados Unidos, com
consequências dramáticas para a população: desemprego, arrocho salarial,
redução das pensões, perda de domicílios, etc. Tendo à sua cabeça a
juventude, este movimento traz reivindicações antineoliberais,
democráticas, igualitárias, muitas vezes anticapitalistas. Seu
denominador comum é a indignação, um sentimento essencial, ponto de
partida necessário de toda luta e toda transformação social. Sem
indignação não se faz nada de grande e de radical.
IHU On-Line – Quais são os principais limites do pensamento
marxista? O que explica que o marxismo seja visto por muitos setores da
academia como retrógrado?
Michael Löwy – O marxismo é um pensamento em movimento, que trata de superar os limites que estão presentes na própria obra de Marx e Engels:
por exemplo, um tratamento muito insuficiente da questão ecológica.
Alguns setores da academia confundem o marxismo com sua caricatura
retrógrada, a ideologia do assim chamado “socialismo real”. Outros,
identificados com a ideologia dominante, pretendem que o desenvolvimento
capitalista represente o “progresso”, sendo o marxismo “arcaico”, por
se opor à expansão do mercado e à acumulação do capital.
Penso que tinha razão Jean Paul-Sartre ao dizer que o
marxismo é o horizonte intelectual de nossa época; as tentativas de
“superá-lo” – pós-modernidade, pós-marxismo, etc. – acabam sendo
regressões políticas e culturais. Como já diziam Rosa Luxemburgo, Lukács e Gramsci, quando a humanidade suprimir o capitalismo, o marxismo poderá ser substituído por novas formas de pensamento...
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Fonte: IHU on line, 18/11/2012
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