Francisco Daudt*
Nossa espécie arrumou sofisticações para o impulso sexual, e a maior delas é o amor
Está bem que nosso primeiro e mais basal motor para viver é o impulso
sexual (o gene egoísta quer reprodução, por isso nos ilude com a isca
dos prazeres), como qualquer outro vivente sexuado. Mas a nossa espécie,
em sua complexidade, arrumou sofisticações para a coisa, e a maior
delas é o amor.
Os campeões de pensar o amor continuam sendo os gregos clássicos, de
2.400 anos atrás. Eles reconheciam três formas distintas de amor: Eros,
Filia e Ágape.
Eros fala do desejo se expressando nos sentidos, como excitação, e no
cérebro, como embriaguez. No coração e nos genitais, ambos pulsantes, na
pele que se arrepia, na visão que se turva, na face que enrubesce, no
equilíbrio que se perde, na voz que falta, na paixão que arrebata, no
animal que irrompe, no ímpeto de tomar, na lassidão de se entregar. A um
tempo telúrico e delicado, tectônico e sutil, a mais evidente força da
natureza em nós. Ainda estão para inventar prazer maior que o da
excitação romântica. Nada se compara à felicidade sexual que faz ver
passarinhos verdes, e que só acontece quando a chave e a fechadura
certas se encontram, coisa rara. Assim é Eros.
Filia é a amizade, o encontro das almas, o porto seguro, a confiança
aliada ao respeito. A consideração (que é ter o outro dentro de si), o
bem querer e querer o bem. O lugar da intimidade emprestada com gosto,
da compreensão, da compaixão (que é o sofrimento partilhado), do
acolhimento da alegria e da tristeza, da saúde e da doença, da riqueza e
da pobreza pelos tempos afora. Qualquer semelhança com os votos do
casamento é totalmente intencional, pois não há um que perdure sem que a
filia tenha crescido entre os dois.
Ágape é a camaradagem, a ligação dos companheiros, seja da boa mesa,
seja da torcida pelo esporte. É a liga entre correligionários, do
partido ou da religião mesmo, que às vezes se confundem. São os
contendores do frescobol, o esporte sem contenda, voltados que estão
para construir beleza em suas jogadas, um escada do outro. Os colegas de
turma, que almoçam nos aniversários redondos de formatura e se atiram
bolinhas de pão. Sócios do mesmo clube, os seguidores do mesmo Twitter,
do Facebook, parceiros do baralho na pracinha. Aqueles que se reúnem
para tirar um carro do atoleiro e depois não se encontram mais. Dão
passagem no trânsito, lugar para os mais velhos. Colegas de excursão.
Colegas.
Os vários tipos de amor se entrelaçam, ou, pelo menos, não são
categorias estanques, e é bom que seja assim. Eros surgindo na Filia,
Filia no Eros, Ágape passeando entre eles...
A pornografia é curiosa. Em sua origem significa "registro da
prostituição". É, como a outra, comercializável. E pode, como a outra,
ser ou não plena de Eros. Carlos Zéfiro da minha adolescência continha
Eros, sedução. Os filmes de hoje, que já começam na aeróbica, têm pouco
Eros. Ou o fetiche voyeurista é seu próprio Eros?
Mas meu interesse é perceber como a espécie trouxe complexidade ao
comando genético que leva à reprodução, e o leque de possibilidades que
nosso desejo contempla.
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* Médico. Psicanalista. Escritor.
www.franciscodaudt.com.brFonte: Folha on line, 27/11/2012
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