FERNANDO SALLA*
Ronaldo Bernardi/Agência RBS
Há 30 anos, organizações civis já apontavam os horrores dos presídios
Líderes do crime estavam isolados, havia vagas no RDD, rebeliões tinham acabado... E veio a crise
O Brasil é mesmo um país surpreendente! Em 2006, quando a
cidade de São Paulo foi terrivelmente abalada por atentados de variada
natureza e um confronto entre criminosos e autoridades se desencadeou,
acreditávamos que tínhamos passado pela pior crise da história da
segurança pública do País. Naquele momento, um dos centros das atenções
foi o sistema prisional paulista, de onde teriam partido as ordens para
os ataques dos criminosos.
Mas eis que chegamos em 2012 e estamos no meio de mais uma crise na
segurança pública em São Paulo que, não há a menor dúvida, é muito mais
grave que a de 2006, a começar pela duração e amplitude. Ano eleitoral,
julgamento do "mensalão", declaração do ministro da Justiça sobre as
prisões brasileiras - só criaram um ambiente ainda mais efervescente em
torno dessa grave crise.
Os componentes da atual crise parecem ter maior complexidade:
disparam os números dos homicídios na cidade de São Paulo e região
metropolitana e descem pelo ralo os exercícios explicativos com as
variáveis estatísticas, com os indicadores socioeconômicos, com os
indicadores das políticas de segurança como fatores decisivos para
compreender o comportamento das taxas de homicídio; emergem como focos
relevantes de análise para a compreensão da atual crise as dinâmicas do
mundo do crime e as formas de repressão sobre ele.
Mas falar das dinâmicas da criminalidade no Brasil, e particularmente
em São Paulo, significa falar também das prisões, pois ali os grupos
criminosos nasceram e se fortaleceram e continuam a manter porosamente
suas relações ilícitas para além dos muros. Talvez pouca atenção tenha
se dado a esse grave aspecto que diz respeito às falhas das autoridades
em conduzir adequadamente os espaços prisionais ao longo de décadas.
Lógico que as coisas se tornaram mais graves num país que entre 2000 e
2010 dobrou a sua população carcerária (estamos atualmente com cerca de
500 mil presos).
O fato é que as prisões, nesta crise de 2012 em São Paulo, não eram o
foco do debate, pois segundo as autoridades tudo estava sob controle:
as lideranças dos grupos criminosos estão isoladas em presídios de
segurança máxima, a penitenciária de Presidente Bernardes onde funciona o
Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) está com vagas disponíveis e não
existem rebeliões no sistema, apesar da superlotação e das condições
subumanas em dezenas de centros de detenção provisória e em
penitenciárias.
Pois bem, de uma hora para outra, nos termos da cooperação entre o
governo do Estado e o governo federal, surgem essas propostas de
transferência de presos de São Paulo para presídios federais. Mas as
lideranças das facções não estão já isoladas? Por que não mandá-las
então para o RDD de Presidente Bernardes? O que está acontecendo com os
esquemas de contenção dos grupos criminosos no sistema penitenciário
paulista?
Parece que a proposta de transferência de alguns presos é uma
satisfação para a opinião pública de que algo está sendo feito. Porém,
na certeza de que tal intervenção deve ter pouca influência sobre o que é
central na atual crise: a dinâmica do mundo do crime e como o sistema
repressivo tem atuado sobre ele. Temos aqui o ponto crucial que não é
enfrentado de forma robusta pelas autoridades desde que o País saiu do
regime militar e tenta construir uma sociedade democrática. Nossas
instituições voltadas para o controle social continuam a ser
autoritárias, sem transparência, sem accountability. Reproduzem um
padrão de punição largamente aceito na sociedade brasileira que se
expressa tanto na indiferença em relação a cidadãos executados (quando
pobres, moradores da periferia) quanto em relação ao destino dos
milhares de presos provisórios e definitivos que abarrotam as prisões.
Policiais e agentes penitenciários têm sido vítimas diretas da
criminalidade em São Paulo. Mas também indiretamente dos efeitos de
décadas de autoridades omissas ou coniventes com a atuação daqueles
agentes públicos que nem sempre está amparada pelos moldes legais.
Desmandos, corrupção, arbitrariedades, truculência desencadeiam
"relações perigosas" com o mundo do crime e comprometem a capacidade de
todos aqueles dispostos a conduzir corretamente as suas tarefas, o seu
trabalho no policiamento ou no interior das prisões.
Quando organizações da sociedade civil, como a Comissão Teotônio
Vilela, começaram a visitar prisões e manicômios em 1983 - 30 anos
atrás! - e traziam a público os horrores que ali encontravam; quando
chamavam, desde aquela época, a atenção da sociedade para a necessidade
de colocar as agências de controle social sob os trilhos rigorosos da
legalidade que a redemocratização cultivava, lançavam alguns dos
principais desafios políticos e institucionais para a área da segurança
pública que o País não conseguiu, até agora, equacionar.
Se não é ocioso, é pelo menos cansativo ouvirmos autoridades
despejando seus argumentos umas contra as outras. Para todos os que
perderam amigos ou familiares assassinados, para todos os que são
vítimas de uma criminalidade que se amplia e para aqueles que têm que
pagar suas dívidas com a sociedade em nossas prisões, tais argumentos
têm sido irrelevantes.
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* FERNANDO SALLA É PESQUISADOR SÊNIOR DO NÚCLEO DE ESTUDOS DA VIOLÊNCIA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/18/11/2012
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