Lee Siegel*
Nunca me senti tão feliz por estar errado.
Mesmo que Obama tenha assegurado seu segundo período na Casa Branca com
vitórias apertadas nos chamados battleground states, os Estados em que a
disputa é mais acirrada, pois o eleitorado oscila de eleição para
eleição entre candidatos progressistas e conservadores, e ainda que em
alguns desses Estados a vitória tenha sido obtida por margens
reduzidíssimas, o importante é que ele ganhou. Que alívio. E que
tragédia.
O alívio se deve ao fato de os EUA ficaram livres, por ora, de ser
transportados de volta para o século 19 por um Partido Republicano que
não tem peito para enfrentar os extremistas que o estão destruindo. E
tragédia porque o ódio a Obama, que foi a força motriz por trás do
surpreendente apoio angariado por um candidato amorfo como Romney, daqui
para a frente só vai aumentar.
Obama conquistou expressiva quantidade de votos no colégio eleitoral,
mas no eleitorado como um todo, sua vitória se deu por margem ainda
mais estreita do que a observada nos battleground states. É surreal: no
tocante a valores políticos e culturais fundamentais, os americanos
estão divididos ao meio. O país não experimentava um racha dessa
natureza desde a Guerra Civil.
Tal antagonismo tem inúmeras consequências, mas a que mais me
preocupa é seu efeito corrosivo para o espaço público. Sem um consenso
sobre o tipo de sociedade em que as pessoas desejam viver, esvai-se a
crença num espaço de convivência que acolha a todos. Nos próximos quatro
anos, aconteça o que acontecer na esfera política, o espaço público,
que já vinha encolhendo, vai se contrair ainda mais.
Faz anos que o espaço público vem desaparecendo nos EUA. As garantias
legais cada vez mais extensas para que as pessoas possam portar armas
às escondidas transforma os espaços públicos em lugares perigosos.
Quando as pessoas andam com revólveres ocultos sob o paletó ou atados ao
tornozelo, um bar, uma rua movimentada, uma partida de basquete
infantil assistida por pais extremamente competitivos, todos esses
lugares se tornam locais em potencial de carnificinas. Os massacres que
têm acontecido com frequência em escolas, locais de trabalho e cinemas
são como um golpe após o outro à esfera pública.
O assalto ao espaço público se deve, em parte, à paixão que os
republicanos têm por privatizações. Querem pôr tudo nas mãos de
empresários privados: escolas, hospitais públicos, correio,
universidades públicas, parques, zoológicos e até a arrecadação de
impostos. Para muitos republicanos, a ideia de que algumas coisas
existem para favorecer o bem-estar de todos, sem gerar lucros para
ninguém, é insuportável. É como se, para eles, não houvesse vida fora do
mercado. "Eu colonizaria as estrelas, se pudesse", disse certa vez o
britânico Cecil Rhodes, aquele arqui-imperialista. Já os republicanos,
se pudessem, poriam etiquetas de preço na estrelas, e depois as
negociariam em Wall Street.
Até a devoção reacionária a valores cristãos é impregnada pelo fervor
privatizante. Não há nada de cristão aí. A estranha obsessão dos
republicanos com a questão do estupro, que fez duas de suas candidaturas
ao Senado ir por água abaixo nesta eleição, é um reflexo disso. Para os
verdadeiros cristãos, Deus revela Seu amor quando as pessoas abdicam de
seus interesses e se preocupam com os outros. Para os republicanos,
Deus é um CEO que dá ordens diretas aos funcionários. Só se pode dizer,
como fez recentemente o coitado de um candidato republicano ao Senado,
que a gravidez resultante de um estupro é "algo que Deus queria que
acontecesse", quando se ignora por completo a existência de uma esfera
pública habitada por pessoas que não são Deus. Para quem vê as coisas
assim, as pessoas não levam vidas preciosas e únicas, depois morrem e
vão para o céu. A ênfase aqui é na dimensão gerencial, não no trabalho.
As pessoas não morrem: são demitidas da existência.
No entanto, o desejo que os republicanos têm de estruturar a vida
como se fosse uma transação é só um lado da questão. As forças
privatizantes parecem estar por toda parte, em todos os pontos do
espectro político e social. Nada contribui mais para a divisão radical
entre os americanos do que a chamada mídia "social", que na realidade é a
própria antítese do social. Com frequência, vemos grupos de amigos
pelas ruas, cada qual com seu dispositivo portátil. Para a esfera
pública, o insondável espaço privado de um iPod ou iPad representa uma
ameaça tão grande quanto uma pistola semiautomática. (Não preciso dizer
que não conseguiria viver sem o meu dispositivo portátil, mas vivo muito
bem sem uma pistola.)
Mas o fator que selará de vez a derrocada do espaço público será
mesmo o antagonismo rancoroso entre as duas metades do país. A divisão
continuará a fazer com que as pessoas desacreditem da política como uma
instância capaz de mudar suas vidas, o que, por sua vez, levará à
progressiva substituição da política por iniciativas privadas de mudança
social, algumas positivas, como fundações benemerentes e grupos de
caridade, outras profundamente negativas, como o incessante aparecimento
de bilionários que se dedicam a distorcer o processo político,
reduzindo-o à operação de máquinas de dinheiro rivais, cujo único
objetivo é se destruir reciprocamente.
E o antagonismo continuará a empurrar as pessoas cada vez mais em
direção ao ciberespaço, onde elas buscarão a afirmação mais estridente
de seus pontos de vista e serão consoladas por comunidades movidas pelo
rancor e pela paranoia. Esqueçam daquela história de um encontro
fortuito num parque público que acaba em história de amor. O ódio é o
instrumento mais ágil para criar intimidade.
Por fim, esse golfo intransponível entre "vermelhos" e "azuis" fará
com que cada lado comece a sonhar com um país em que o outro não tenha
lugar. Confesso que depois de passar quatro anos ouvindo os republicanos
falar em reduzir os impostos dos muito ricos, aumentar os impostos da
classe média, revogar a reforma do sistema de saúde aprovada pelo
governo Obama e fazer da vida um negócio, esgotei o meu estoque de
compreensão para com o outro lado. Se não compartilham da minha ideia de
espaço público, não quero compartilhar o meu espaço público com eles.
Torço para que Obama esteja se sentindo como eu.
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* Jornalista e escritor americano.
Fonte: Estadão on line, 11/11/2012
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