O paulistano Löwy, que fez doutorado na França e lá vive
Michael Löwy, diretor emérito do Centre National de La Recherche Scientifique de Paris, que está publicando novo livro e relançando outro, fala da herança judaico-alemã, marxismo e crise europeia
A vasta obra de Michael Löwy, diretor emérito de pesquisas do Centre
National de la Recherche Scientifique de Paris, caracteriza-se pelo
interesse pelo pensamento libertário, e pela amplitude de seus
direcionamentos, que vão de Marx ao Surrealismo, passando pela filosofia
de pensadores como Hannah Arendt, Walter Benjamin e Gershom Scholem.
Nascido em São Paulo em 1938, filho de imigrantes judeus de Viena, Löwy
formou-se pela USP e concluiu seu doutorado em Paris, com uma tese sobre
o jovem Marx, orientado por Lucien Goldmann. Posteriormente tornou-se
assistente de Nicos Poulantzas, na Universidade de Paris VIII. Em São
Paulo, onde esteve recentemente para ministrar um curso na USP, ele
lançou Judeus Heterodoxos: Messianismo, Romantismo, Utopia, em
que aborda, sob o prisma das influências mútuas, o pensamento libertário
judaico-alemão do século 20. Ao mesmo tempo, chegou às livrarias a nova
edição do seu A Teoria da Revolução no Jovem Marx. Em entrevista ao Sabático, Löwy falou sobre as duas obras e suas ideias. Acompanhe.
Seu novo livro mapeia a confluência entre cultura
alemã e tradição judaica, que formou uma das vertentes mais
interessantes do humanismo europeu do século 20. Para onde vai esta
vertente?
Não faço aqui um mapeamento - isto tentei fazer em meu livro anterior, Redenção e Utopia.
Trata-se, agora, de uma espécie de “canteiro de obras’’ em que reuni
ensaios sobre autores desta configuração cujas obras analiso a partir do
ponto de vista da comparação e das influências mútuas. Martin Buber,
Gershom Scholem, Walter Benjamin, Hannah Arendt, Ernst Bloch e outros
constituem esse universo do judaísmo de cultura alemã do começo do
século 20, brutalmente interrompido pelo nazismo e hoje um continente
desaparecido. Essa vertente específica, messiânica e romântica da
cultura judaico-alemã é heterodoxa, distante dos cânones da ortodoxia -
da ortodoxia religiosa, obviamente, mas também da ortodoxia liberal
burguesa, que era uma outra ortodoxia judaico-alemã. Há hoje interesse
pela cultura judaico-alemã, e não só no mundo acadêmico: é uma forma de
se revisitar esta tradição. E meu trabalho é isto, uma revisita.
Alguns desses pensadores têm hoje influência mundial,
como Walter Benjamin, que via a história como um pesadelo. No que
consiste o pesadelo da história?
Walter Benjamin via o curso da história como uma sucessão de
catástrofes porque a enxergava do ponto de vista das vítimas dos
processos históricos - os camponeses, os escravos, os proletários, etc.
Essa sucessão de catástrofes vai fazendo uma pilha de escombros. Ele
escreve isto em 1940, em suas Teses Sobre o Conceito de História,
e o faz de maneira profética, quando estão prestes a acrescentar-se a
esses escombros os de Auschwitz e Hiroshima. Mas há também os sonhos:
utopias emancipatórias, que ajudam as pessoas a despertarem do pesadelo.
E para que haja este despertar, é preciso que as pessoas se libertem de
uma espécie de ópio do povo que, para Benjamin, é a ideologia do
progresso, segundo a qual basta deixar o rio correr para que tudo se
encaminhe em direção a um amanhecer glorioso da humanidade.
Seu livro A Teoria da Revolução no Jovem Marx, que acaba de ser reeditado, reflete sobre a crise das ideologias hoje?
A ideologia do neoliberalismo vai muito bem; é um discurso
dominante, com uma influência tremenda, planetária. Quanto ao pensamento
marxista, eu não classifico como ideologia e sim como utopia, no
sentido do conceito sociológico de utopia em Karl Mannheim: conjunto de
representações que tem uma função subversiva em relação à realidade
social. A utopia marxista passou a sofrer questionamentos crescentes a
partir da queda do Muro de Berlim. Mas quando isso aconteceu, já havia
bastante gente no campo do marxismo que não aceitava a identificação
entre o socialismo real e as ideias de Marx. Havia um consenso entre os
adversários do marxismo, que apontavam para a União Soviética e diziam:
“Isto é a aplicação do marxismo”. E que, com a crise do bloco soviético,
proclamaram: “Agora acabou o socialismo, e agora acabou o marxismo”. A
opinião dissidente, que dissociava o marxismo do socialismo soviético,
minoritária até 1989, fortaleceu-se, pois via o chamado socialismo real
como uma ideologia, isto é, uma construção doutrinária a serviço da
manutenção de uma ordem. Há, portanto, um retorno no interesse por Marx,
mas é claro que não se trata de uma repetição ritual daquilo que ele
escreveu e sim de uma reflexão nova.
Qual é o papel da utopia e da nostalgia românticas na crítica marxista ao neoliberalismo?
O pensamento de Marx articula os dois momentos. A nostalgia
romântica, isto é, a crítica ao presente tomando por base valores do
passado, se manifesta quando ele afirma, por exemplo, que, no
capitalismo, a dignidade humana se tornou uma mercadoria, e
implicitamente reconhece que houve épocas em que isso era diferente. Em
seu aspecto utópico, faz uma crítica do presente em nome de um futuro
possível, em que o presente aparece como política, social e moralmente
inaceitável. Acho que esses dois elementos estão presentes, em
proporções diversas, em qualquer movimento de contestação da ordem
estabelecida. Se tomarmos um movimento que hoje me parece importante, o
movimento chamado altermundialismo, no qual estão presentes várias
vertentes da esquerda, veremos o aspecto da nostalgia nas questões
ecológicas e indígenas, na ideia de que temos algo a aprender com os que
têm valores que não o da mercadoria e do lucro, e que têm a capacidade
de viver em harmonia com a natureza.
Como você explica que a humanidade pareça cruzar os braços diante da aproximação da catástrofe ecológica?
O sistema funciona com sua lógica própria, independentemente
das decisões boas ou ruins das pessoas: há uma regra de ferro, ou
melhor, de aço, para usar a fórmula de Max Weber, que se impõe sobre as
vidas dos membros de todas as classes sociais. O sistema é impessoal,
move-se de maneira autônoma, desencadeia crises, desemprego e desastres
ecológicos que não são fruto de decisões, mas resultado de um movimento
que nutre a si mesmo, que ninguém controla. E a crise presente é uma
ilustração dessa impossibilidade de controle. A tradição judaica tem
esta metáfora do Golem, um monstro que foi criado por um rabino para
proteger a comunidade de Praga, que acaba ganhando vida própria,
escapando do controle e se voltando contra os seus criadores. Acho uma
metáfora muito pertinente para a catástrofe ecológica que se aproxima.
Além da crise econômica, a Europa vive uma crise cultural profunda. Seus parâmetros civilizatórios estão outra vez em xeque?
O que mais me preocupa na Europa é o desenvolvimento
exponencial de correntes xenofóbicas, fundadas no ódio ao outro, e de
movimentos racistas, em alguns casos diretamente inspirados pelo
nazi-fascismo. Na França, temos a Frente Nacional, que representa quase
8% do eleitorado. O mesmo se passa na Bélgica. Na Áustria, é pior ainda.
O objeto dessas tendências racistas eram, tradicionalmente, os judeus.
Hoje são, por exemplo, os ciganos e os africanos. Temos também o exemplo
da Grécia, onde um partido que se declara abertamente neonazista, e faz
do antissemitismo uma de suas principais bandeiras, está triunfando. De
outro lado, há um questionamento interessante que reflete sobre o
projeto europeu de civilização, tomando como ponto de partida a crise
ecológica. É uma tendência que avalia que o simples crescimento não será
solução para a crise contemporânea, pois só agrava os problemas
ambientais e não os resolve. Assim, é preciso pensar no decrescimento ou
no ecossocialismo. Já está em busca de novos paradigmas.
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JUDEUS HETERODOXOS: MESSIANISMO,ROMANTISMO, UTOPIA
Autor: Michael Löwy
Tradução: Marcio Honorio de Godoy
Editora: Perspectiva (200 págs., R$ 50)
A TEORIA DA REVOLUÇÃO NO JOVEM MARX
Autor: Michael Löwy
Tradução: Anderson Gonçalves
Editora: Boitempo
(224 págs., R$ 35)
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Reportagem por Luis S. Krausz ( É PROFESSOR DE LITERATURA JUDAICA E HEBRAICA DA USP ) - O Estado de S.Paulo
Foto de Marcio Fernandes/Estadão
Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,clarao-sobre-os-pesadelos-da-historia,958171,0.htm
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