"O livro que Fausto leu não foi aquele que escrevi", diz o filósofo e colunista da Revista CULT
A seguir, o filósofo, professor livre docente da USP e colunista da
CULT Vladimir Safatle responde crítica do professor emérito da USP Ruy
Fausto sobre seu livro A Esquerda que não teme dizer seu nome ( Três Estrelas, 2012), recentemente publicada na revista eletrônica “Fevereiro” (leia aqui: http://revistafevereiro.com/pag.php?r=05&t=13).
Um mal-entendido
Este é um texto que gostaria de não ter escrito. Textos nos quais o
autor tenta se defender de críticas que lhe são endereçadas só se
justificam se tais críticas vierem de alguém que, a princípio, pode ser
convencido através de novo encadeamento de argumentos. Alguém que, mesmo
discordando de certas posições do autor, está disposto a rever
argumentos ou, ao menos, melhorar o foco de suas críticas. É triste
dizer isto, mas não creio que este seja o caso de Ruy Fausto e de sua
resenha sobre meu livro A esquerda que não teme dizer seu nome.
Escrevo este texto não visando abrir alguma forma de debate.
Escrevo-o para afirmar a impossibilidade de haver um verdadeiro debate
entre nós ou talvez para constatar que, no fundo, nunca houve entre nós
algo parecido a um debate. Só uma sucessão de mal-entendidos. É triste,
mas há de se conviver com isto na vida intelectual e passar a outra
coisa.
Depois de fazer sua resenha de meu livro, Fausto deplora que algo
como uma “incipiente filosofia crítica instalada em terras
sul-americanas” tenha sido perdida por pessoas como eu. Pessoas, a seu
ver, que estariam afogadas no “ambiente hiper-competitivo que reina em
certas universidades” e que teriam liquidado nossas possibilidades
críticas. De minha parte, não creio ser o caso de “defender-se” de
colocações desta natureza. Apenas creio que isto é o sintoma da
impossibilidade de Fausto realmente ouvir questões e elaborações
intelectuais que não são as suas.
Marcado por uma passagem pela extrema-esquerda trotskista, Fausto
percebeu o equivoco de perspectivas políticas que faziam uma negação
abstrata demasiado simplória da democracia parlamentar. Ele faz parte de
uma geração que se volta para o passado e se pergunta como pôde
acreditar em ideias como “centralismo democrático” e “ditadura do
proletariado”. No entanto, setores de tal geração tendem a ser
insensíveis a outra coordenada histórica, a saber, a dos que nunca
tiveram passagens por extremismos desta natureza, que cresceram em outro
momento, mas que percebem claramente os limites de atuação e
transformação no interior das estruturas político-partidárias da
democracia parlamentar.
Sendo assim, da experiência de auto-crítica dos engajamentos de
juventude restou para Fausto uma perspectiva esquemática que consiste em
dizer que todos os que vêem a democracia parlamentar atual como regime
submetido a processos de degradação normativa abrem necessariamente as
portas para figuras do totalitarismo. Tanto é assim que ele pode dizer
sobre meu livro, sem o menor constrangimento: “De uma forma ou de outra,
o livro contém uma pregação anti-democrática (contra a democracia
parlamentar, dirá Safatle, mas, em tempos modernos e contemporâneos, não
há como separar uma coisa da outra)”. Ou seja, qualquer um que fizer a
crítica da democracia parlamentar só pode, para Fausto, abraçar
pregações anti-democráticas.
Para mim, este é um pensamento dogmático e inaceitável. Primeiro,
porque ele peca pelo mesmo equivoco que Fausto me imputa. Em dado
momento de seu texto, ele diz, a respeito de minha defesa da importância
de compreender o que esteve em jogo nos projetos estéticos e políticos
vinculados à temática do “homem novo”, projetos que animaram a crítica
dos limites normativos de antropologias naturalizadas: “Falta a Safatle
como aos seus modelos um mínimo de consciência das tendências à
regressão histórica, que emergem frequentemente dos projetos
escatológicos de ‘salto’ no futuro”. Eu diria, de minha parte, que falta
a Fausto um mínimo de consciência das tendências à regressão histórica
que emergem dos projetos de defesa dos limites atuais de nossa
democracia parlamentar. Ou seja, há simplesmente uma incapacidade de
compreender como regressões podem ocorrer nas estruturas políticas
vinculadas a processos de racionalização social.
Por esta razão, Fausto precisa levar à caricatura toda inventividade
na constituição de mecanismos de democracia direta, mecanismos estes que
podem tomar a experiência democrática por outra via. Assim ele o faz
quando ridiculariza minha forma de insistir na institucionalização de
decisões que devem passar por plebiscito (como declarações de guerra,
políticas econômicas em época de crise, entre outros exemplos que
apresentei no livro). Vejam que, em momento algum, preguei alguma forma
de dissolução do Parlamento ou “liquidação da democracia parlamentar”.
Falei de transferência de funções do parlamento para mecanismos de
democracia direta, de direito de resistência e recuperação do conceito
de soberania popular, o que, para Fausto, já é uma pregação
anti-democrática. No entanto, se quiserem um bom exemplo do que tenho em
mente, basta lerem a nova constituição da Islândia, com sua lei que
permite à população exigir que decisões do Parlamento só tenham validade
caso ratificadas por plebiscito, desde que 10% dos seus 320.000
habitantes assim o exijam. Há realmente algo de pregação
anti-democrática nisto? No entanto, este era o horizonte de ações que
meu livro procurava estabelecer.
Ou seja, ao contrário do que pensa Fausto, não sou um “inimigo” da
democracia parlamentar. Este jargão amigo/inimigo parece-me, na verdade,
uma maneira infantil de tratar de temas desta natureza. Falei em
necessidade de “superação” da democracia parlamentar e ninguém melhor do
que Fausto sabe a diferença entre uma superação e uma negação simples,
entre uma superação e uma “recusa inegociável de toda democracia
parlamentar”. O problema é que Fausto acredita que estou às voltas com a
tentativa de defender o modelo de crítica da democracia parlamentar de
Badiou e Zizek. No entanto, nunca, em lugar algum, fiz a defesa acrítica
deste modelo. Em alguns textos, eu simplesmente o apresentei, mas nunca
o defendi de maneira absoluta. Ao contrário, já em 2001, quando poucos
eram os que, no Brasil, liam tais autores, publiquei um texto em que
pode se ler claramente minhas ressalvas à maneira de Badiou eleger a
democracia como significante inutilizável[1]. Por outro lado, publiquei,
já em 2005, um texto em que criticava a dificuldade de Zizek em pensar
de maneira adequada o problema da violência política[2].
A meu ver, tal mal-entendido produzido por Fausto se explica da
seguinte forma: para defender seu esquema a qualquer preço, ele precisa
projetar em meu livro, sistematicamente, proposições que simplesmente
nunca enunciei. Ou seja, para mim, sua resenha sobre meu livro A esquerda que não teme dizer seu nome
visa, muitas vezes, um inimigo que não está lá no meu texto; inimigo
representado por figuras como Zizek e Badiou. Fausto precisa reduzir
todo pensamento que lhe é estranho a uma matriz comum para, com isto,
justificar melhor seus temores de sempre.
No entanto, como não estou no negócio da esconjuração ou da cruzada
de denúncia contra pretensos farsantes, vejo-me na possibilidade de
reconhecer contribuições relevantes de certos autores sem precisar
assumir seus erros ou os pontos que, até para eles mesmos, ainda não
estão completamente definidos. Nestes casos, trata-se de praticar um
tipo de pensamento para o qual a proximidade não significa adesão.
Sobretudo, trata-se de recusar uma versão belicista da filosofia
contemporânea na qual pensar equivale a escolher certos autores como
inimigos intransponíveis a respeito dos quais nenhum reconhecimento de
relevância é possível. De fato, isto eu me recuso a fazer.
Da mesma forma, se trouxe a baila Claude Lefort em meu livro foi para
dizer que mesmo autores que estão dispostos a fazer a defesa da
democracia parlamentar reconhecem a necessidade de dissociar direito e
justiça, Estado democrático e Estado de Direito. Diga-se de passagem,
não disse que era possível passar da transgressão própria a uma greve ou
a uma manifestação ecológica à crítica do Estado democrático. Há má
vontade nesta afirmação, pois simplesmente afirmei a possibilidade de
passar de tais transgressões à crítica do Estado de direito como
horizonte geral de judicialização da política. Mas, para mim, é
sintomática a impossibilidade de Fausto aceitar distinções entre Estado
democrático e Estado de Direito atualmente constituído, entre democracia
e democracia parlamentar.
Mas de todas as críticas que Fausto endereça a mim aquela que é a
mais prenhe de má-vontade diz respeito a minha pretensa: “filosofia
mallarmeana-vulgar, que pensa a história como um jogo de dados”. Ele se
refere a minhas discussões a respeito dos fracassos históricos e dos
movimentos de efetivação política de idéias de refundação social. A este
respeito, julgo ser sinal de desrespeito acreditar que poderia imaginar
coisas tão toscas quanto “Stálin tentou, Mao tentou, Pol Pot tentou…
Não deu certo. Vamos tentar de novo…”. Se Fausto realmente acredita que
eu poderia pensar algo desta natureza, recomendo que ele deixe de me
tratar como idiota. O último que falou algo parecido a respeito de meu
livro foi um jornalista português de direita, José Pereira Coutinho. De
Fausto, eu esperava um pouco mais.
Deixo aos leitores um trecho de meu livro a respeito desta questão.
Avaliem por si mesmos se, de fato, trata-se de uma “concepção
mallarmeana-vulgar da história”: “a experiência histórica do século XX
deve nos servir para reconhecer que os fracassos de uma ideia não
implicam seu abandono, mas maior consciência de sua falibilidade [será
que tenho de colocar isto em negrito?]. Neste sentido, poderíamos
lembrar aqui de Adorno e afirmar que agir tendo em vista a consciência
de nossa falibilidade é a primeira condição para uma ação moral”.
Imaginar que isto legitima algo como “Não deu certo. Vamos tentar de
novo…” foge à minha capacidade de compreensão.
Formulações pouco claras
Das críticas que Fausto endereça a mim, reconheço que há uma que
indica formulações pouco claras de minha parte. Ela se refere à minha
defesa do universalismo. Fausto acusa-me de professar um “universalismo
estreito, fechado às diferenças”. Esta acusação já fora feita também por
Caetano Veloso, Idelber Avelar, entre outros. Lembro inicialmente que
não foram poucas as vezes que publiquei na grande imprensa textos
defendendo explicitamente o casamento homossexual, o direito das
mulheres ao aborto, o direito ao respeito às diferenças religiosas (como
o uso de véu entre garotas islâmicas), a relevância da política de
cotas, entre outros pontos. Ou seja, se eu fosse realmente alguém
fechado à importância das lutas que se consolidaram no interior da dita
“política das diferenças”, minha atitude seria completamente
esquizofrênica. Como prefiro acreditar que a esquizofrenia não é uma das
minhas patologias, parece-me que não encontrei formulações adequadas
para expressar o tipo de universalismo que creio defensável. Essas
críticas acreditam que procuro um universalismo pré-política das
diferenças. Na verdade, creio que é possível pensar um universalismo que
apareça como motor de uma “política pós-identitária”.
Parti da hipótese de que a política das diferenças, que animou as
lutas sociais a partir dos anos 1970 e que ainda tem importância
decisiva no processo de universalização de direitos para grupos
vulneráveis e com forte histórico de discriminação (negros,
homossexuais, minorias religiosas e linguísticas, etc.), não pode ser o
horizonte regulador de nossas lutas. É inegável que tais políticas
permitiram avanços sociais através da consolidação de sociedades
multiculturais. No entanto, elas correm o risco de provocar uma
atomização social por fornecer a imagem de uma sociedade fortemente
definida por padrões identitários.
Tal atomização faz com que indivíduos se vejam, inicialmente, como
portadores de identidades claramente determinadas que devem ser
defendidas e reconhecidas. Como resultado temos a compreensão de toda
noção de “universalismo” como potencialmente totalitária e a
transformação da cultura como campo fundamental do político, com a sua
exigência da afirmação e visibilidade das diferenças.
Esta estratégia, no entanto, mostrou nos últimos anos seus limites.
Não por outra razão, as sociedades multiculturais são assombradas,
atualmente, por fortes desejos de exclusão. Pois a política das
diferenças nos leva a colocar perguntas como: até que ponto consigo tolerar
uma diferença? Ou seja, o outro é visto por mim como potencialmente
diferente e intolerável. Não por outra razão, “tolerar” alguém tem o
sentido de suportar o mal que sua presença me faz. Quem “tolera” alguém
pensa, no fundo: – Melhor que ele não existisse, mas como ele está aí,
não há nada mais a fazer, tenho que tolerá-lo. No limite, as sociedades
multiculturais, estas animadas pela tolerância como afeto político,
precisam construir a imagem da diferença intolerável. As mulheres
muçulmanas de véu são um bom exemplo.
Por isto, defendi que a indiferença pode ser um afeto político
importante. Mas pode-se argumentar que não estaríamos melhor elevando a
indiferença a afeto político central. Não por outra razão, o termo traz
conotações negativas, como “não me importar com a sorte do outro”, “ser
insensível ao que o outro representa”. No entanto, podemos dizer que há
duas formas de insensibilidade. Posso ser insensível ao outro por tê-lo
expulsado do meu mundo, mas posso também ser insensível ao outro por não
vê-lo mais como outro, por estar em uma zona de indiferenciação entre
eu e outro. Neste sentido, minha insensibilidade é, na verdade, maneira
de dizer: – Sua diferença não me toca porque nenhuma diferença me é
estranha.
Do ponto de vista político, trata-se de aplicar uma liberalidade que
retira o cerne do conflito social da afirmação das diferenças culturais e
de costumes. Isto não significa voltar para trás, mas pensar um modelo
de institucionalização de zonas de indiferenciação.
Posso dar como exemplo o problema do casamento. Estamos atualmente
diante de discussões a respeito da autorização do casamento entre
homossexuais. Reivindicação legítima por excluir largas parcelas da
população do direito de reconhecimento jurídico de relações afetivas
entre sujeitos autônomos. Mas poderíamos aproveitar tal momento para se
perguntar se o Estado não deveria, pura e simplesmente, parar de
legislar sobre a forma da vida afetiva de seus cidadãos.
O contra–argumento clássico consiste em dizer que, ao deixar de
legislar sobre a forma do casamento, o Estado desguarnece aqueles que
são mais vulneráveis (no caso, as mulheres). Há ai, no entanto, um
problema maior. A despeito de legislar sobre questões de sua alçada
(como as relações econômicas no interior da família, o problema da posse
dos bens em caso de separação, direito de pensão etc.), o Estado
legisla sobre aquilo que não lhe compete (a forma das escolhas afetivas
dos sujeitos). O Estado legisla sobre questões de ordem econômica, não
sobre questões de ordem afetiva. Mas o casamento não é simplesmente um
contrato econômico. Ele é, antes de mais nada, o reconhecimento de um
vínculo afetivo.
Neste sentido, nada impede que o Estado legisle sobre as questões
estritamente econômicas no casamento, nas uniões estáveis, calando-se
sobre a forma destas uniões (se entre um homem e uma mulher, duas
mulheres, duas mulheres e um homem etc.). O mesmo acontece com as leis
europeias absurdas sobre uso de véu. A despeito de defender mulheres da
opressão, o Estado entra no guarda-roupa de seus cidadãos. Muito mais
correto seria criar leis gerais que simplesmente proibissem alguém de
usar vestimentas que não quer. Ou seja, nos dois casos, o Estado moderno
precisa aprender a lidar com zonas de indiferenciação: um marco
fundamental para políticas pós-identitárias. É isto o que entendo por
“indiferença ‘as diferenças”. O que é engraçado é que creio que nem
mesmo Fausto pense diferente.
Maus defuntos
Por fim, elenco algumas colocações que Fausto me imputa na tentativa
de demonstrar que, em meu livro, criei uma espécie de monstro conceitual
ao tentar aproximar as posições políticas de Badiou, Zizek, Agamben,
Derrida (todos pretensamente “pós-estruturalistas”) e de Adorno e Lefort
(representantes de uma tradição esquerdista democrática). Como se eu
fosse uma espécie de chapeleiro maluco da filosofia.
Bem, é interessante inicialmente lembrar que, em momento algum, fiz
referência a Adorno em meu livro. Tenho dificuldade em entender por que
seria cobrado por algo que simplesmente não fiz. O que há de mais
engraçado é que, no único momento em todos os meus livros em que, por
exemplo, articulei Adorno e Zizek foi nas paginas 202 a 204 de Grande Hotel Abismo ao
mostrar como Adorno pode nos auxiliar na criticar à teoria da violência
de Zizek. Ou seja, não tentei colocá-los juntos, mas separá-los.
Diga-se de passagem, Fausto se equivoca ao dizer que a “caricatura do
pós-estruturalismo” (ou seja, Badiou e Zizek) serve-se de Adorno. Na
verdade, os dois se distanciam explicitamente do frankfurtiano em mais
de uma ocasião[3].
Segundo, creio que Fausto é pouco preciso no seu uso do termo
“pós-estruturalista”. Em contexto algum Badiou e Zizek são
“pós-estruturalistas”, nem sequer caricaturas. Ao contrário, eles
representam uma tendência bastante crítica ao pensamento de Derrida,
Foucault, Deleuze e Lyotard, mesmo que seja uma crítica que aceita o
diálogo. Uma das premissas de Zizek sempre foi retirar o pensamento de
Lacan das leituras pós-estruturalistas. Badiou se vê como um platonista,
o que não me parece um bom cartão de visita pós-estrutural.
Mas Fausto afirma também que o pós-estruturalismo “sequestrou”
Adorno. Interessante esta transformação do diálogo possível entre duas
tradições intelectuais em sequestro. Não basta uma pletora de
comentadores (como Martin Jay, Axel Honneth, Peter Dews, Jay Bernstein e
mesmo Habermas) reconhecer a partilha comum de problemas e diagnósticos
a respeito da crítica da razão, da função da reflexão estética, dos
impasses da filosofia da consciência, da reificação da linguagem
ordinária enquanto espaço de reconhecimento intersubjetivo, dos limites
de uma racionalidade procedural para a compreensão da ação moral e do
caráter alienante de uma subjetividade centrada na figura do Eu . Para
Fausto, reconhecer a possibilidade de paralelismos entre Adorno e
experiências intelectuais da filosofia francesa contemporânea é, de
antemão, inaceitável porque Foucault e seus amigos seriam
“anti-humanistas”. Isto lhe economiza ir diretamente aos textos. Com
isto, Fausto parece ignorar que problemas como a emancipação estão
presentes em autores como Foucault (basta ler os últimos cursos no
Collège de France e suas reflexões sobre a noção de “cuidado de si”) e
Deleuze (basta levar a sério o horizonte de reconciliação entre vida
social e economia psíquica subjetiva pressuposto por O anti-Édipo).
Por sinal, este hábito de criticar os filósofos franceses
contemporâneos sem lê-los de maneira sistemática não começou hoje entre
nós.
Na verdade, nunca disse que Adorno era anti-humanista (para tanto, Fausto se apoia, em uma epígrafe que utilizei em capítulo de Grande hotel Abismo).
Mas se ele tivesse lido meu texto perceberia que simplesmente afirmei
que Adorno tinha uma crítica do humanismo e da figura moderna do
indivíduo. O que não poderia ser diferente para um leitor atento de
Freud. Disse também que, no interior das querelas sobre o anti-humanismo
francês, deveríamos estar atentos à importância da crítica ao que
Foucault um dia nomeou de “sono antropológico”, ou seja, à presença
insidiosa de uma antropologia profundamente normativa nunca claramente
tematizada a servir de horizonte de validação e legalidade dos critérios
intersubjetivos que procuram racionalizar nossa forma de vida. Afirmei,
por fim (conforme pág. 222 de Grande Hotel Abismo), que as estratégias de Adorno e do pensamento francês contemporâneo (a exceção de Lacan) não eram simétricas,
já que Adorno estava, mesmo assim, disposto a conservar a centralidade
da categoria de sujeito. Mas Fausto só consegue ver nestes debates um
convite perigoso ao niilismo moral, ao irracionalismo e à violência
política desenfreada, no que, ao menos neste ponto, sua leitura não se
distingue muito da crítica conservadora mais ferina.
Bem, eu poderia continuar indefinidamente tal
discussão, mas queria apenas mostrar que o livro que Fausto leu não foi
aquele que escrevi. Respeito as posições de Fausto, mesmo que não
concorde com elas. Continuarei respeitando, e admirando seus textos, mas
sem a crença de que, em algum momento, poderemos participar de um
debate. Para mim, depois desta resenha, ficou definitivamente claro que
tudo o que conseguiremos fazer é uma sucessão de mal-entendidos,
desencontros e equívocos. A filosofia está cheia de diálogos que, no
fundo, nunca ocorreram. Este é apenas mais um.
[1] Ver SAFATLE, Vladimir; “ Os novos sofistas”; IN: MEIRA, Milton (org.) Jornal de resenhhas – seis anos, vol. II, São Paulo : Discurso Editorial, 2001.pp. 1844-1846,
[2] Ver SAFATLE, Vladimir; “Lenin com Lacan”, In: Margem Esquerda, n. 6, 2005
[3] Basta ler BADIOU, Alain; “La dialectique negative d´Adorno” in Cinq leçons sur le cas Wagner, Paris: Nous, 2010 e o primeiro capítulo de ZIZEK, Slavoj; O mais sublime dos histéricos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991
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Fonte: http://revistacult.uol.com.br/home/2012/11/vladimir-safatle-rebate-critica-de-ruy-fausto/
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