terça-feira, 31 de julho de 2018

Justiça, ideologia e narrativa

Juremir Machado da Silva*
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Lógica discursiva

      No mundo do direito, ou da filosofia do direito, duelam personagens que os mortais ignoram: Hans Kelsen X Carl Schmitt, Luigi Ferrajoli X Elizabeth Anscombe, constitucionalistas e supraconstitucionalistas, garantistas e consequencialistas, um universo de possibilidades e de argumentos. Não fuja, leitor. Esqueça o Google. Ou só o procure em caso de extrema necessidade. É tão excitante. Todos podem estar certos e errados ao mesmo tempo. Como vivem no relativismo, recorrem a autoridades absolutas por tradição.

O constitucionalista dá à corte suprema o papel de guardião da Constituição. O supraconstitucionalista acredita que um “príncipe” deve poder interpretá-la a seu bel-prazer ou em nome do espírito da nação. O garantista aplica a lei escrita e só a interpreta quando vê lacunas. O consequencialista interpreta lei conforme a consequência desejada. Os seus seguidores brigam sem parar. Pode acontecer assim:

– Algo está errado no funcionamento do judiciário…

– Você diz isso por ignorância.

– Entendi a sua estratégia. Todos os seus argumentos serão de autoridade. Acontece que cem juristas dizem o que estou dizendo.

– No caso deles é por ideologia.

– Entendi o raciocínio. Uns discordam por ignorância e outros por ideologia. Só o seu pensamento é verdadeiro e não ideológico.

O ministro Carlos Marun quer a criação de uma corte constitucional no Brasil para dirimir contendas entre o STF e a Constituição. Não seria mais fácil o STF ser corte constitucional e deixar quase tudo que vem fazendo excessivamente para o STJ? Nas brigas epistemológicas desse mundo estonteante acontecem coisas assim:

– Deve-se aplicar a lei interpretando-a.

– Que lei autoriza a interpretar legislando?

– A independência dos poderes.

– Em que lei está prevista a independência nesse nível?

– É uma questão de interpretação.

– Nem tudo pode ser interpretação.

– Isso é uma interpretação.

– Quem disse que não pode haver lei sem espaço para interpretação?

– A interpretação.

É claro como água da fonte. Wittgenstein dizia que os problemas filosóficos aparecem quando a linguagem sai de férias. É uma boa frase. Deliciosamente enigmática. No Brasil não faltará quem diga que os problemas jurídicos aparecem quando o juiz Sérgio Moro sai de férias. Cada qual com a sua referência. Olympia de Gouges, figura da Revolução Francesa, foi guilhotinada, honraria sem limitação de gênero. Eduardo Galeano destaca o seu discurso de despedida: “Se nós, mulheres, estamos capacitadas para subir até a guilhotina, por que não podemos subir até as tribunas públicas”. A resposta foi cortante. Não havia jurisprudência favorável a tal pleito nem interpretação da lei.

No Brasil, um dia, revoluto, José Bonifácio de Andrade e Silva escreveu: “Riquezas e mais riquezas gritam os nossos pseudoestadistas, os nossos compradores e vendedores de carne humana; os nossos sabujos eclesiásticos; os nossos magistrados, se é que se pode dar um tão honroso título a almas, pela maior parte, venais, que só empunham a vara da Justiça para oprimir desgraçados, que não podem satisfazer à cobiça, ou melhorar a sua sorte”.

A justiça então podia ser injusta.
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* Jornalista. Escritor. Prof. Universitário.
Fonte:  https://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2018/07/11046/justica-ideologia-e-narrativa/ 
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