quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

A nossa riqueza são os laços

Luigino Bruni*
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Florescem as comunidades quando são capazes de cooperação. Se não tivéssemos iniciado a cooperar (agir juntos) a vida em comum não teria sequer tido início; teríamos ficado evolutivamente bloqueados na fase pré-humana. Como com frequência acontece a grandes palavras do humano, também a cooperação é ao mesmo tempo una e múltipla, muitas vezes ambivalente; e as suas formas mais relevantes são as menos óbvias. Sempre que seres humanos atuam em conjunto e se coordenam para chegar a um resultado comum mutuamente vantajoso estamos perante a cooperação. 

Um exército, uma liturgia religiosa, uma aula na escola, uma empresa, a ação de governo, um sequestro de pessoa, são tudo formas de cooperação; mas referem-se a fenómenos humanos muito diversos entre si. Daqui deriva uma primeira consequência: nem todas as cooperações são coisa boa; existem cooperações que, aumentando embora as vantagens dos sujeitos nela envolvidos, fazem piorar o bem comum porque prejudicam alguém exterior àquela cooperação. Para distinguir a boa da má cooperação é necessário antes de mais observar os efeitos que tal cooperação intencionalmente produz sobre pessoas externas.

Ao longo da história, teorias políticas e económicas separaram-se em duas grandes famílias. As que partem da hipótese de que o ser humano não é naturalmente capaz de cooperar e as que, pelo contrário, reivindicam a natureza cooperativa da pessoa. O principal representante da segunda tradição foi Aristóteles: o homem é animal político, capaz de diálogo com os outros, capaz de amizade (philia) e de cooperação para o bem da polis. O expoente mais radical da primeira tradição, do animal insociável, foi Thomas Hobbes: “E’ verdade que alguns viventes, como as abelhas e as formigas, vivem juntas socialmente. Por isso há quem goste de saber porquê os homens não fazem o mesmo" (O Leviatã, 1651). No interior desta tradição antissocial move-se muita da filosofia política e social moderna; os antigos e os medievais (incluindo S. Tomás) eram geralmente do parecer de Aristóteles. Poderíamos dizer também que a principal questão da teoria política e económica modernas foi o tentar explicar como podem surgir êxitos cooperativos a partir de seres humanos que não são capazes de cooperação intencional, porque dominados por interesses egoistas.

Muitas teorias do "contrato social" (nem todas) foram a resposta da filosofia política da modernidade a essa questão: indivíduos egoístas, mas racionais, compreendem que é do seu interesse criar uma sociedade civil com um contrato social artificial. O homem natural é incivil e por isso a sociedade civil é artificial. A resposta da ciência económica moderna àquela questão são as várias teorias da "mão invisível", para as quais o bem comum ("a riqueza das nações") não nasce da ação cooperativa intencional e natural de animais sociais, mas sim do jogo de interesses privados de indivíduos egoístas separados entre si. Na base destas duas tradições encontramos a mesma hipótese antropológica: o ser humano é uma "tábua torta"; sem que seja preciso endireitá-la, produz boas "cidades" se for capaz de criar instituições artificiais (contrato social, mercado) que transformam as paixões autointeressadas em bem comum.  

É então que se desvela um mistério do mercado: também a sociedade de mercado tem uma sua forma de cooperação; para tal cooperação, porém, não se pede qualquer ação conjunta dos "cooperantes". Quando entramos numa loja para comprar pão, o encontro entre comprador e vendedor não é descrito nem vivido como ato de cooperação intencional: cada um procura o próprio interesse e realiza a contraprestação (dinheiro por pão; pão por dinheiro) apenas como meio para obter o próprio bem. E no entanto aquela troca melhora a condição de ambos, graças a uma forma de cooperação que não exige qualquer ação conjunta. O bem comum torna-se assim uma soma de interesses privados de indivíduos reciprocamente imunes que cooperam sem se encontrarem, tocarem, olharem.

É no interior da empresa que encontramos a cooperação intencional ou forte, já que a empresa é uma rede de ações conjuntas e cooperativas com vista a objetivos em máxima parte comuns. Deste modo, quando adquiro um bilhete Roma-Málaga, entre mim e a companhia aérea não existe nenhuma forma de cooperação intencional; apenas interesses separados paralelos (viagem e lucro); entre os membros da tripulação do vôo, porém, deve existir uma cooperação forte, explícita e intencional. Daqui deriva que, enquanto (quase) nenhum economista pensaria numa teoria de mercado baseada na ética de virtudes, no que se refere às teorias da empresa e das organizações são já muitas as "éticas dos negócios" fundadas na ética das virtudes de Aristóteles e Tomás.

A divisão do trabalho nos mercados e grandes sociedades é uma grande cooperação involuntária e implícita; a divisão do trabalho dentro da empresa, pelo contrário, é cooperação no sentido forte, ação voluntária conjunta. O capitalismo de matriz anglo-saxónica e protestante fez assim nascer um modelo dicotómico, como que uma reedição da "Doutrina dos dois reinos", luterana (e agostiniana). Nos mercados existe a cooperação implícita, "fraca" e não-intencional; na empresa e nas organizações em geral, pelo contrário, temos a cooperação explícita, forte e intencional. Duas cooperações, duas "cidades", profunda e naturalmente diversas entre si. 

No entanto, esta cooperação não é a única possível nos mercados. A versão europeia – de modo especial a latina – da cooperação nos mercados era diversa, porque a sua matriz cultural e religiosa não era individualista mas sim comunitária. Entre nós a distinção entre cooperação ad intra (na empresa) e cooperação ad extra (nos mercados) nunca se afirmou, pelo menos até tempos recentes. É a tradição da designada Economia civil, que leu a economia toda e a sociedade como um facto de cooperação e de reciprocidade. A empresa familiar (em Itália ainda 90% do setor privado), as cooperativas – segundo Adriano Olivetti – explicam-se tomando a sério a natureza cooperativa e comunitária da economia. Por isso o movimento cooperativo europeu foi a expressão mais típica da economia de mercado europeia. Tal como os distritos industriais (Prato para a fiação, Fermo para o calçado) o são (ou foram): inteiras comunidades tornaram-se economia sem deixar de ser comunidades. 

Assim, o capitalismo EUA tem como modelo o mercado anónimo e procura “mercantizar” (tornar mercado) até a empresa que cada vez mais é vista como um novelo de contratos, uma commodity (mercadoria), ou como um mercado com fornecedores e clientes "internos". Pelo contrário, o modelo europeu procurou "comunitarizar" (tornar comunidade) o mercado, tomando como modelo de boa economia a mutualista e comunitária,  exportando-o da empresa para a totalidade da vida civil (cooperação de crédito e de consumo); assumindo custos e benefícios desta operação: uma economia mais densa de humanidade e de alegria de viver mas mais densa também daquelas feridas que encontros humanos abertos em todas as direções não conseguem evitar.

O modelo EUA está hoje a colonizar até os últimos territórios de economia europeia, também porque a nossa tradição comunitária e cooperativa, no plano cultural e prático, nem sempre esteve à altura (do desafio); não se desenvolveu em todas as regiões (...).

A "grande crise" que estamos a viver, porém, diz-nos que a economia e a sociedade fundadas sobre a cooperação-sem-tocar-nos-outros pode produzir monstros e que o business (que é) apenas business no final torna-se antibusiness. O ethos do Ocidente é um misto de cooperações fortes e fracas; indivíduos que fogem dos laços das comunidades à procura de liberdade e pessoas que, para bem viverem, livremente se ligam. Numa fase da história em que o pêndulo do mercado global tende para o lado dos indivíduos-sem-laços, a Europa deve recordar, protegendo-a e vivendo-a, a natureza intrinsecamente civil e social da economia.
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* In Avvenire
Trad.: José Alberto Bacelar Ferreira, P. António Bacelar
Fonte: © SNPC | 25.02.14

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