HUMOR SEM CONCESSÃO
Adão Iturrusgarai no restaurante Ateliê de Massas, no centro de Porto Alegre:
30 anos de um humor ousado e sem meias-palavras
O desenho na capa retrata o artista sentado em um gigantesco saco escrotal, pilotando, em dois cursores fálicos, uma nave formada por um par de seios e uma bunda. É assim que Adão Iturrusgarai ilustra a metafórica viagem ao passado que empreende no álbum A Máquina do Tempo, que será lançado nesta segunda-feira em Porto Alegre. Mas, ao contrário do que se poderia imaginar, quem desembarca desta escatológica nave para uma entrevista no centro da Capital é um tranquilo pai de dois filhos, que vive em uma pacata cidade do interior da Argentina e tira férias em Arroio Teixeira porque “lá é um sossego”.
Adão, que completa 49 anos neste mês, reúne no livro trabalhos de três décadas de carreira. O desenho simples da juventude contrasta com artes mais elaboradas, para depois retomar o traço simples usado até hoje. São histórias já publicadas, uma narrativa inédita e alguns desenhos do amigo Laerte.
Natural de Cachoeira do Sul, Adão morava em Porto Alegre no início dos anos 1990, quando editou com Gilmar Rodrigues a polêmica revista DunDum. Depois, passou cerca de um ano na França, retornou ao Estado e se estabeleceu em São Paulo.
Foi lá que seu trabalho amplificou sua popularidade e foi criada Aline, sua mais conhecida personagem – a adolescente que tem dois namorados virou série com duas temporadas na TV Globo, em 2011. Além de presente na imprensa, em publicações como Folha de S.Paulo e a revista argentina Fierro, há duas dezenas de títulos de autor circulando no mercado editorial.
Adão contará mais sobre sua trajetória no lançamento desta segunda-feira, no Ocidente, a partir das 20h30min. O autor irá conversar com os escritores Reinaldo Moraes e Claudia Tajes. O encontro é a primeira atividade do ano da FestiPoa Literária, em seu aquecimento para o festival literário, que será realizado em maio. Para marcar a data, e acompanhar esta entrevista, ZH pediu a outros cartunistas que apresentassem comentários e ilustrações sobre Adão e seu trabalho. Confira!
Zero Hora – O que marca estes 30 anos de carreira?
Adão Iturrusgarai – Comecei a publicar em torno de 1984, na faculdade, no Jornal do Povo, em Cachoeira do Sul, mas 30 anos é meio... é muito tempo. Eu lembro que, quando morava em São Paulo, encontrava muito o Angeli, ali por 1994 ou 1995. Quando ele falava em 25 anos de carreira, eu pensava “Mas como ele está velho”. Agora, chegou minha vez (risos)...
ZH – E, naqueles primeiros anos, o que o inspirou a desenhar?
Adão – Não lembro quando foi isso, mas tinha um álbum de tiras da Rê Bordosa, acho que foi a primeira coisa publicada pelo Angeli, antes da revista Chiclete com Banana. Lembro que comprei numa revistaria de Porto Alegre, e aquilo me impactou de maneira brutal. Eu estava acostumado a ver aquelas coisas de cartum político, saindo da ditadura, e o Angeli vinha com quadrinhos de rock ‘n’ roll, drogas, Rolling Stones... Aí eu olhava para aquilo e, ao mesmo tempo que achava incrível e ficava admirado com o cara, também batia uma coisa ruim, do tipo: “É exatamente isso que eu queria fazer, mas ele já está fazendo”. É claro que, depois, a gente se dá conta de que nunca vai ser como outra pessoa, você vai ser sempre você.
Capa do livro
ZH – A literatura também o inspirava?
Adão – Também foi importante. Hoje mesmo um blog me pediu uma entrevista, já que o livro sobre Rocky & Hudson foi lançado na Itália. Pediram-me uma dica para jovens desenhistas. Falei: “Desenha, copia seus ídolos, quem você acha legal, bons desenhistas, mas não esqueça de ler coisas também, não adianta ter um traço muito legal e não ter nada para contar”. Na verdade, eu era fissurado em desenhar e uma vez vi o Henfil falar que não era só desenhar, era preciso ler muito. Então, virei um leitor voraz, lia absolutamente tudo. Toda tarde eu não fazia nada, minha vida se resumia a voltar da faculdade, me masturbar e ler (risos). Lia autores argentinos, norte-americanos, poesia francesa... Os beats estavam meio na moda também. Eu tinha a impressão de que lia tudo e não entendia nada, mas talvez algo tenha se guardado no meu “HD”. Lia, mas não desfrutava muito. Era uma certa obrigação, eu tinha saído do Interior e queria acompanhar o clima e a velocidade de Porto Alegre. E cinema também foi para mim uma grande influência. Eu via todos os ciclos, tinha o Cine Bristol e outros grandes cinemas em Porto Alegre. Acho que era uma das grandes capitais brasileiras em termos de cinema. Até os filmes do Glauber Rocha eu conseguia aguentar. Dormia na metade dos filmes, só anos depois eu me dei conta de que é legal, antes de comprar um livro, abrir e ler os primeiros parágrafos. Eu saía lendo e olhando tudo (risos).
ZH – E como foi começar a publicar, sentir que podia mostrar o desenho para um público mais amplo?
Adão – A primeira história minha saiu no Jornal do Povo. Eu tinha 17 anos na época, era um cartum bem idiota, mas, quando saiu, fiquei impressionado com aquilo, de ver o desenho ali impresso. Foi incrível. Naquela época tinha que ir recortando tudo e fazendo arquivo. Lembro que o segundo desenho que publiquei foi num fanzine do DCE da PUCRS, que o crítico musical Michel Place editava. E depois, passei pelo Jornal do Comércio com uma carreira desgraçadamente horrorosa, fazendo charges do Sarney, mas foi muito rápido.
ZH – Mas, com esse tipo de desenho, que não tende a ser naturalista, não é difícil saber quando está apto a ser mostrado. Isso nunca foi uma questão para você?
Adão – Vindo para esta entrevista, estava olhando este livro (abre uma edição de A Máquina do Tempo), que eu tenho há um mês, mas acabo não olhando muito. Tem uma parte que me envergonha muito, de quando eu quis fazer um desenho direitinho, na época de Folha, Aline e tal. E tem este desenho (mostra a última página do livro), que é o meu primeiro, de 1983, que tem o traço do (Georges) Wolinski. O Wolinski é um desenhista francês. Quando vi o traço dele, que é supersolto, eu disse: “Putz, que legal, posso desenhar”. Mas eu não sabia que ele desenha muito bem, e é por isso que consegue esse traço. Na verdade, anos depois, voltei ao desenho que eu tinha antes. E me sinto muito satisfeito com isso e com o momento de hoje em termos de resultado. Também estou pintando com aquarela. Em alguns momentos, odiava meu desenho. Quando você tenta fazer aquilo que não é natural, não dá certo.
ZH – Você participou da revista DunDum, que teve repercussão, mas também foi alvo de um processo. Como foi isso?
Adão – A DunDum foi em 1990, quando eu trabalhava na prefeitura de Porto Alegre. Depois que saí da faculdade, me convidaram para trabalhar no PT, do Olívio, fazendo a parte da publicidade. Era cargo de comissão, mas eles me contrataram sabendo que eu não era do partido. Na época, por eu trabalhar na prefeitura, e por conta do papel da revista ter saído da Secretaria Municipal de Cultura, rolou todo o processo. Era um processo político, para desestabilizar a administração do PT. Para isso, acusaram a prefeitura de estar editando uma revista pornográfica. Foi incrível, porque fizemos uma tiragem de 3 mil exemplares, e eles acabaram em três semanas, depois fizemos mais 3 mil... Os donos de banca vinham na nossa casa buscar as revistas: “Hoje eu quero cem”. Saiu uma página na Ilustrada, da Folha de S. Paulo. Na época, para a gente, isso era algo assim... A gente virou celebridade durante um tempo. Acho que foi um grande acontecimento em Porto Alegre, eu me sinto feliz por fazer parte disso.
ZH – Por que mudou para São Paulo?
Adão – Quando fui morar em São Paulo, fui porque o Angeli me convidou para ser assistente de uma revista chamada Matador. Mas nunca aconteceu. Foi em São Paulo que houve um grande salto no meu trabalho. No momento em que fui, comecei a trabalhar para a Globo, convidado para fazer roteiro na TV Colosso, programa infantil da época, em que o Laerte, o Angeli, o Glauco e muitos outros escreviam. Cheguei lá e recebi um telefonema 10 dias depois: “Olha, vamos nos reunir hoje à tarde e o Laerte te indicou”. O Laerte sempre foi um cara muito legal. Agora, é uma mulher muito legal. Imagina, na época, trabalhar na Globo, receber um salário todo o mês... Aluguei um sobrado, trabalhava duas ou três vezes por semana, e tinha o tempo livre para fazer outras coisas. Aí, o Laerte me liga: “Você não quer entrar no Los Três Amigos?”. Então, de repente, estou lá naquele sobrado e vejo entrando pela minha garagem Glauco, Laerte e Angeli. Eles iam trabalhar na minha casa. Fiquei olhando da minha janela. Aquilo, para mim, era algo inacreditável. Naquele momento, eu queria que o mundo inteiro estivesse ali assistindo àquilo (risos).
ZH – Fale um pouco sobre o processo de criação de seus personagens mais conhecidos. Como surgiu a Aline?
Adão – Na época em que conhecia o Angeli, em 1991, ele não estava mais ativo na noite, já tinha feito tudo e estava cansado. Porém, às vezes, eu conseguia arrastá-lo para sair. A gente fazia Los Três Amigos, mas eu não tinha um trabalho solo na Folha. Aí, em uma dessas saídas com o Angeli, ele me olhou e disse: “Por que você não faz uma tira só sua, meu?”. Ele me colocou contra a parede. E eu não sou muito prático, dou voltas para coisas que deveriam ser muito simples. Então, um dia eu saí à noite, voltei para casa muito bêbado. No dia seguinte, acordei de ressaca, e me lembrei do filme francês Jules e Jim (1962), que tem uma menina apaixonada por dois caras. Pensei: “Vou fazer uma versão disso, só que com tiras de humor”. Fiz toda a historinha de uma menina que mora com um rapaz, eles estão sem grana para pagar o aluguel e resolvem aceitar uma pessoa para dividir o apartamento. Aí chega o Pedro, que é o terceiro, e se forma o triângulo amoroso. Lembro que comecei a produzir muito, desenhava alucinado, fazia 30 desenhos por dia, estava muito empolgado. Eu ia para o Angeli e mostrava, e mostrava para o Laerte também. O Laerte não gostou. Eu fazia uns olhos diferentes, achava que poderiam dar mais expressividade, e o Laerte olhava e dizia: “Que merda esses olhos”. Ele é muito sincero. Lembro que criei 90 tiras, mas não tinha onde publicar. Isso ficou engavetado por três anos, foi um horror. Aí, quando a Folha deu o aval, sabe o que eu fiz? Redesenhei todas as cabecinhas dos personagens em todas as tiras, cortei e colei, voltando ao meu traço mais jovem. Eles gostaram e, logo depois, eu estava publicando, ainda em 1996.
Zero Hora – E a dupla de cowboys gays Rocky & Hudson?
Adão – Rocky & Hudson chegou antes, ainda na década de 1980, foi na revista Megazine, da editora Tchê. Lembro que eu queria criar uns personagens para a revista. Pensei em uns gaúchos gays, para sacanear o gaúcho. Mas, como eu estava com um pé mais no centro do país, o fato de criar dois gaúchos gays iria ficar muito regional. Então, criei dois cowboys gays, que não é uma ideia tão original, já ouvi falar de alguém que tenha feito isso. Mas foi bem antes de O Segredo de Brokeback Mountain (2005). E tinha acabado de morrer o ator Rock Hudson, que, na verdade, era uma mocinha. Eu sempre achei estranho esses filmes de faroeste que só tinham homens. Aí chamei de Rock e Hudson. Um dia, um amigo meu, que sabia inglês, disse: “coloca um Y no Rock, fica mais bonitinho”. Aí nasceu. Fez um relativo sucesso na revista Megazine, e são personagens que eu consigo manter. A Aline eu não desenho mais. Estou pensando em uma coisa nova, uma personagem mulher, de 40 anos...
ZH – E por que você não tem mais desenhado a Aline?
Adão – Acho que tem um momento em que você desenha e a aquilo sai muito fácil. Quando não sai mais desse jeito, a coisa começa a virar, como se fosse a repetição de uma fórmula. É como uma banda que faz um grande disco, com um baita tesão. Como Pink Floyd, no Dark Side of the Moon (1973). Depois, a coisa começa a ficar burocrática. Já ouvi cientistas dizendo que o máximo de criatividade que você tem é até os 30 anos. São coisas de neurônio, rapidez... Eu não acredito muito nisso, tem coisas minhas de que eu gosto mais do que antes. Não sei se faço coisa melhor do que já fiz, mas tem gente que gosta, que me diz que o trabalho está ótimo. Também não sei se um dia eu começar a fazer coisas ruins eu vou notar. Este é um grande dilema dos artistas.
POR ALEXANDRE LUCCHESE ESPECIAL ZH
A Máquina do Tempo |
De Adão Iturrusgarai |
Zarabatana Books, |
64 páginas, R$ 42 |
Lançamento: nesta segunda-feira, às 20h30min, no bar Ocidente (Rua João Telles, esquina com Osvaldo Aranha). Autógrafos e talk show com o autor, Claudia Tajes e Reinaldo Morais. Entrada franca – o livro será comercializado no local. |
ADÃO POROTTO GUERRA |
“Eu e Adão, em 1990. Naquela época, era praxe os homens pagarem a conta, por isso namorávamos a mesma guria ao mesmo tempo, para economizar. Daí surgiu Aline e Seus Dois Maridos. Otto e Pedro, ele manteve meu nome! Obrigado, Adãozinho!” |
ADÃO POR FABIO ZIMBRES |
“O que pode ser dito sobre o Adão que já não tenha sido dito antes? Dizer que ele desenha mal e suas piadas não têm graça não vai ser novidade. Dizer que seu desenho é o mais engraçado que você pode encontrar por aí e que ele tem o dom de achar a graça que está escondida em qualquer coisa também são lugares-comuns. Concordo com esses, mas repetir isso é cansativo. O que eu posso dizer sem qualquer preocupação de ser redundante, já que é uma verdade tão óbvia que dizer mais uma vez não faz mal, é que a maior e mais invejável obra do Adão é ele mesmo e sua vida atribulada.” |
ALINE POR CHIQUINHA |
“Posso afirmar sem qualquer comedimento: o Adão é sim uma das minhas maiores influências cartunísticas. Quando adolescente, me caiu nas mãos uma revista DunDum. Mal saberia – a jovem eu, pueril e romântica – que ali estava o ponto de partida para a perdição. Por volta de 1998, comprei meu primeiro livro do Adão, o hoje clássico Aline e seus Dois Namorados (edição quadradinha da L&PM Editores). Que menina maluca! E emancipada! E engraçada! E que trabalha numa loja de discos! E que come miojo! E... que... tem dois namorados!!! Foi paixão completa. E depois, ainda descobri o Wolinski. Gênio e inspiração nata do Adão que também mudou a minha vida. E depois veio Rocky & Hudson – O Filme, que até hoje tem lugar cativo no coração. Enfim, Adão Iturrusgarai, você tem parte nisso, parte da culpa por aquela singela mocinha porto-alegrense ser hoje sua colega de profissão.” |
ADÃO POR LAERTE |
“O Adão faz parte de uma geração um pouco mais jovem do que a minha, mas nossas raízes não são muito distantes. Ele curte muito o cartum europeu, teve a experiência de morar na França, são muito visíveis no seu trabalho as influências como Wolinski e (Jean-Marc) Reiser. Fora isso, ele tinha também muita afinidade com o trabalho do Glauco, esse humor mais desvinculado de agendas e pautas políticas e, ao mesmo tempo, não alienado. Isso é uma coisa muito saudável e típica da geração dele. O Adão participou um pouco menos das parcerias do Los Três Amigos, comigo, Angeli e Glauco. Ele entrou quando a gente já estava em estado adiantado de putrefação (risos). Foi uma época muito gostosa. Esta charge (acima) é de fevereiro de 1999, quando o Angeli foi operar a hérnia e nós fomos visitá-lo no hospital.” |
“O Adão tem uma qualidade rara: diferentemente da maior parte da humanidade, que evita abrir a caixa preta da psique, onde ficam os monstros obscuros que fazem parte da receita pessoal de todos nós, ele não só deixa a porta destrancada como convida as aberrações para virem povoar seus desenhos. Isso não é propriamente inédito, vários artistas já agiram assim. Mas quase sempre à custa de visível sofrimento como (mal comparando) Van Gogh, Kafka etc. O que é novo no Caso Adão é a desfaçatez e a alegria com que ele expõe suas taras, seus medos e fobias. Definitivamente, trata-se de um caso de... saúde mental plena!” |
Edgar Vasques |
“O Adão é basco. Eles são terríveis, os bascos, explodem com tudo. É preciso ter muito cuidado com eles, principalmente, quando têm o enorme talento que tem esse Adão aí.” |
Ziraldo |
“Gostei muito e admiro o trabalho do Adão. Ele tem o traço muito solto, criativo. Dos cartunistas brasileiros, talvez seja um dos mais universais, pois trata de temas que vão além do contexto local, falando sobre amor e sexo.” |
Luis Fernando Verissimo |
Fonte: ZH online, 08/02/2014
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