"Por
detrás do mundo em que vivemos, muito lá atrás, em último plano, existe
um outro mundo; a sua relação recíproca assemelha-se à que existe entre
as duas cenas que acontece vermos no teatro, uma por detrás da outra.
Através de uma leve cortina, distinguimos como que um mundo de gaze,
mais leve, mais etéreo, de uma outra qualidade que a do mundo real.
Muitos daqueles que deambulam em carne e osso pelo mundo real não
pertencem a este, mas sim ao outro. Perder-se assim a pouco e pouco,
sim, quase desaparecer da realidade, pode ser saudável ou mórbido. O
caso desse homem, tal como eu o conheci outrora sem o conhecer, era
mórbido. Ele não pertencia à realidade e, no entanto, tinha muito a ver
com ela. Passava sempre acima da realidade, e mesmo quando mais se lhe
entregava, estava longe dela. (...)
Ele
era, em extremo, intelectualmente determinado, para ser um sedutor
vulgar. O diário demonstra também que, por vezes, era algo de totalmente
arbitrário o que ele desejava, uma saudação por exemplo, e por
preço algum quereria obter mais, por ser a saudação aquilo que a pessoa
em questão possuía de mais belo. Com o auxílio dos seus dotes
espirituais, sabia tentar uma jovem, sabia atraí-la a si, sem se
preocupar com possuí-la, no sentido literal do termo... (...) tudo
rompia sem que, pelo seu lado, tivesse havido a menor constância, sem
que uma só palavra de amor houvesse sido pronunciada e, muito menos, uma
declaração de amor, uma promessa. No entanto, algo ficara impresso nela
[a jovem], como uma marca. (...)
A sua vida era demasiadamente intelectual para que ele pudesse ser um sedutor, no sentido vulgar do termo, embora
por vezes se revestisse de um corpo parastático e fosse então, todo
ele, sensualidade pura. (...) Para ele, os indivíduos nunca foram senão
estímulos, e lançava-os para longe de si do mesmo modo que as árvores
deixam tombar as folhas - ele rejuvenescia, enquanto morria a folhagem."
(KIERKEGAARD, Soren Aabye. O Diário de um Sedutor. Coleção Os Pensadores, volume XXXI, Editora Abril Cultural, São Paulo: 1974, páginas 147-148)
Fonte: uzecalor.blogspot.fr
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