Mario Osava*
Piquiá
de Baixo, Brasil, 10 de fevereiro de 2014 (Terramérica).- “Meu sobrinho
tinha oito anos quando pisou na ‘munha’ (carvão pulverizado) e queimou
as pernas até os joelhos”, conta Angelita Alves de Oliveira neste pedaço
da Amazônia brasileira transformado em armadilha mortal para seus
habitantes. O tratamento em hospitais distantes não conseguiu salvar a
criança, porque “seu sangue ficou intoxicado, segundo o médico. Minha
irmã jamais voltou a ser a mesma mulher. Perdeu seu filho mais novo”,
disse a professora Oliveira. Seu marido também foi vítima dessas
queimaduras, como comprovam as cicatrizes em suas pernas.
A munha ou “moinha”, segundo o dicionário siderúrgico português, é o
pó de carvão vegetal resultante da produção de ferro gusa, material
intermediário na obtenção de aço, que fez de Piquiá de Baixo, na faixa
oriental da Amazônia brasileira, um caso trágico de contaminação
industrial. Trata-se de um bairro da zona rural de Açailândia, município
do Maranhão, que nasceu com os acampamentos de operários que se
instalaram em 1958 para construir a rodovia Belém-Brasília, um eixo
centro-norte de desenvolvimento e integração do Brasil, que gerou muitos
desastres ambientais e sociais.
A ferrovia inaugurada em 1985 para transportar minério de ferro da
gigantesca mina na Serra de Carajás, selou o destino de Açailância como
entroncamento e polo siderúrgico. Piquiá de Baixo ficou cercado por
cinco unidades produtoras de ferro gusa, pelos trilhos e por grandes
armazéns de minérios. Enquanto isso, o carvão vegetal para alimentar as
caldeiras siderúrgicas se somava à pecuária para fazer de Açailância um
foco de desmatamento e trabalho escravo.
Essas chagas diminuíram diante da repressão estatal e diferentes
pressões. Mas a contaminação em Piquiá se agravou, segundo testemunhos
colhidos para esta reportagem. O resíduo pulverizado de carvão continua
ameaçador. A secura o torna inflamável a um ligeiro toque. Isso custou a
vida do sobrinho de Angelita em 1993, quando poucos conheciam o quanto é
letal esse pó negro. As pessoas ficaram cautelosas e os acidentes menos
frequentes, mas não acabaram. Outra criança, de sete anos, se queimou
até a cintura em 1999 e agonizou durante três semanas.
“Vi gado incinerado”, disse Florêncio de Souza Bezerra, que foi
camponês e agora é membro ativo da Associação Comunitária de Moradores
de Piquiá, onde vive há dez anos com nove filhos e dois netos, em uma
casa grande de madeira e amplo quintal. Os montículos de munha podem ser
vistos nas ruas por onde passam os caminhões das siderúrgicas e em pelo
menos um depósito a céu aberto no qual este repórter entrou sem
encontrar nenhum controle.
Porém, a queixa mais frequente dos moradores é contra o ar
envenenado. “Há pouco mais de um ano morreu uma menina com pó de ferro
nos pulmões e câncer, depois de 15 dias na terapia intensiva”, recordou
Florêncio. Na pequena praça do bairro, o ativista vai apontando as casas
cujos moradores morreram de doenças respiratórias. Angelita contou que
um “exame mostrou manchas em meus pulmões há um ano, e o médico me
acusou de fumar quando jovem, mas nunca coloquei um cigarro na boca”.
Ela deseja dar “uma esperança de vida” às suas netas, que vivem aqui
“ingerindo contaminação 24 horas por dia”. “Já vivi bastante, mas minhas
netas não”, afirmou, aos 61 anos de idade, mais de 30 dedicados ao
ensino. Sua casa fica ao lado da Gusa Nordeste, uma das cinco unidades
produtoras de ferro gusa. A situação se agravou “há dois anos”, quando a
empresa começou a produzir cimento, segundo ela, lançando um pó negro
que suja tudo em segundos e, em algumas madrugadas, torna impossível ver
sua casa da estrada, a apenas 30 metros de distância.
Para a empresa foi um avanço, porque se trata de aproveitar a escória
do alto forno como matéria-prima, evitando uma volumosa quantidade de
dejeto e abastecendo o mercado local da construção com um produto que
antes era preciso trazer de longe. A Gusa Nordeste destaca sua
responsabilidade ambiental porque emprega a munha como combustível,
economizando carvão granulado, e o gás derivado da produção de ferro
gusa é usado para gerar toda a energia elétrica que a empresa precisa.
Porém, a realidade reconhecida pela justiça, por várias autoridades e
inclusive pela indústria, é que a contaminação do ar, da água e da
terra torna inviável manter Piquiá de Baixo no local onde nasceu, há
mais de 40 anos. Já há uma proposta aprovada pela justiça e pela câmara
municipal para reassentar as 312 famílias que restam em Piquiá de Baixo,
em um terreno de 38 hectares a seis quilômetros da atual.
Em dezembro, a justiça ordenou a expropriação da área e fixou seu
valor no equivalente a US$ 450 mil, mas o dono exige quatro vezes essa
quantia, e assim se prolonga a agonia para os moradores de Piquiá. A
própria comunidade elaborou um projeto urbanístico, que inclui casas,
escola, praça, lojas e igrejas, explicou Antonio Soffientini, membro da
Justiça Nos Trilhos, uma rede de dezenas de organizações que apoiam a
população afetada pelo “sistema Carajás”.
Na Serra de Carajás, a empresa Vale, que foi privatizada em 1997,
extrai cerca de 110 milhões de toneladas anuais de minério de ferro, que
percorrem 892 quilômetros em trem até o porto Ponta da Madeira, em São
Luis, capital maranhense, para ser exportado. Uma pequena parte fica em
Açailância. Como provedora da indústria local de ferro gusa, a Vale tem
responsabilidade direta na contaminação, acusa a organização Justiça Nos
Trilhos.
“Poderia suspender a entrega do minério até a indústria instalar
filtros e pôr fim ao drama de Piquiá”, opinou Antonio, missionário
italiano do movimento católico comboniano. Isso geraria uma crise de
desemprego em Açailância, advertiu Zenaldo Oliveira, diretor global de
Operações Logísticas da Vale. Este polo siderúrgico já vive uma queda de
atividades desde 2008.
Os seis mil empregos que oferecia nessa época caíram para atuais
3.500 atuais, segundo Jarles Adelino, presidente do Sindicato dos
Metalúrgicos de Açailândia. Ele se queixa dos altos preços que a Vale
impõe à matéria-prima, que representam metade dos custos do ferro gusa.
No entanto, isso não se reflete na cidade, que exibe hotéis e sinais de
prosperidade. É que várias obras próximas oferecem trabalho temporário,
explicou Jarles, e cada emprego em uma produtora de ferro gusa gera dez
postos indiretos.
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* O autor é correspondente da IPS.
Fonte: http://www.nossofuturoroubado.com.br/
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