P. José Tolentino Mendonça*
Sam Francis
As leituras do VII domingo do Tempo Comum contam muito
do que é a pretensão cristã e porque é que o cristianismo se afirmou
como uma alternativa, como novo modelo de vida.
Para pensarmos esta novidade, temos de perceber o que é
que o cristianismo faz com duas categorias absolutamente sagradas,
cada uma à sua maneira, quer do judaísmo, quer do mundo helenístico.
No universo greco-romano, o mais importante era a
sabedoria e a sua procura incansável. O que o homem ou a mulher podiam
aspirar de mais sagrado no mundo grego era encontrar a sophia, um caminho de sabedoria.
Quando visitamos a antiguidade clássica, o mais belo
monumento é a emergência do pensamento humano, a construção da
filosofia; pensemos, por exemplo, na escola de Atenas, Aristóteles,
Platão, Sócrates, os sofistas. Era uma grande procura, através do
conhecimento, a de encontrar sentido e significado para a vida.
Há uma enorme grandeza moral nestes ascetas, que
dedicam a sua existência à procura do conhecimento e da racionalidade,
tentando perceber qual será o caminho para realizar o coração do ser
humano, para justificar o sentido da nossa presença no mundo, o porquê e
para quê das nossas vidas.
Se há uma palavra sagrada no mundo helenístico do tempo
em que o cristianismo surge, é a palavra "sabedoria". É uma palavra
inalcançável, inspiradora, que todos procuravam, que todos queriam.
No mundo judaico, uma palavra igualmente fundamental
era "templo", o lugar sagrado. O templo era a certeza de que o Deus
transcendente era também o Deus histórico, o Deus que acompanha o seu
povo, o Deus cuja glória, a Shekinah, habita num lugar concreto, e nós vamos até ele.
Do templo dimana tudo: os sacrifícios, o dia do perdão,
o dia das expiações. E os judeus entregavam o dízimo para que a luz do
templo não se extinguisse. Morrer sem ter peregrinado a Jerusalém era a
maior das desgraças.
O templo era o lugar da evidência de Deus, a fonte de
sentido, aquilo que estruturava a nação judaica, mas também a condição
histórica, a cidadania judaica.
O cristianismo emerge assim num mundo em que o sagrado estava no conhecimento e no templo, a lei.
Em relação ao sagrado judaico, vamos ouvir S. Paulo, o
primeiro grande intérprete cristão de Jesus, dizer, na carta aos
Coríntios, que o templo é o corpo de cada um de nós. O templo somos
nós. O lugar sagrado é a nossa vida. Porque o Espírito de Deus habita
em cada um de nós.
Então já não estamos dependentes de um lugar, de uma
raça, de uma etnia, de uma nação, de uma lei, de um código externo; é
em nós que descobrimos Deus. Cada pessoa é o lugar onde Deus está.
Por isso temos de olhar para a nossa vida de outra
maneira. Somos sujeitos diferentes porque o que nos caracteriza não é
uma ligação a uma estrutura que está fora de nós, mas a descoberta de
que Deus nos habita, de que Deus está em nós. E essa descoberta
transforma a nossa vida.
Esta vida que por vezes nos custa abraçar, nos custa
aceitar, nos custa entender; esta vida que é exaltante e ao mesmo tempo é
lugar de fragilidade, é lugar de dor; esta vida tão misteriosa que
parece que nos escapa; esta vida é o santuário de Deus.
Esta vida que construímos dia a dia, esta vida que não
existe em abstrato mas em concreto, nos nossos gestos, na nossa
decisão, esta vida que não é apenas biológica mas é a vida ética, a
vida sensual, a vida de amor, a vida de procura que em cada um de nós
quotidianamente se efetua... Isto que nós somos, isto de inominável, de
indecifrável, isto é o lugar de Deus.
Esta é uma transformação imensa que o cristianismo operou.
Por isso tenho de olhar para a minha vida como um lugar
sagrado; tenho de olhar para a minha vida com outros olhos, com outra
esperança, porventura com outra veneração. Tenho de cair de joelhos
perante o espetáculo desabalado e divino que é a vida, por mais frágil
que seja. Tenho de olhar para a vida com um coração diferente, um
coração novo.
A nossa vida não é apenas um instrumento. Não estamos
escravizados a nada; vivemos plenamente a nossa liberdade porque Deus
está em nós. Por isso a nossa grande tarefa é descobrir o que somos, é
tornarmo-nos naquilo que somos.
Este debate animou o cristianismo desde os primeiros
séculos e levou um grande teólogo, Tertuliano, a dizer que o homem é
naturalmente cristão. Ele não disse isso no sentido de que o
cristianismo é um lugar automático, mas que é na nossa natureza, no
fundo daquilo que somos, que temos de descobrir o que é isto de sermos
filhos de Deus e de Deus habitar em nós.
Nenhuma vida é para deitar fora, nenhuma vida é para
excluir, nenhuma vida é descartável, nenhuma vida é para ser pisada. A
nossa vida tem esta dignidade de ser o templo, o lugar sagrado.
Em relação ao modelo da sabedoria, o cristianismo faz
um movimento que os exegetas denominam de "autoestigmatização".
Entendemos o alcance desta palavra nas palavras de S. Paulo: é preciso
tornar-se louco.
Num mundo em que é a sabedoria que confere estatuto, é
preciso tornar-se louco. Neste sentido, o cristão diz «eu vou por outro
caminho, vou fazer de maneira diferente, considero-me um outsider; no mundo de sábios, quero ser louco».
Vemos esta loucura explicada no Evangelho de Jesus [cf.
Artigos relacionados]: se alguém te bater na face direita, oferece-lhe
também a esquerda; isto é, não acreditar na força da violência, não
acreditar na força do mais forte, não acreditar no "olho por olho,
dente por dente".
Se alguém te quiser levar a tribunal, deixa-lhe tudo;
se te obrigarem a acompanhar durante uma milha, acompanha durante duas;
se te pedem emprestado, dá.
Estas palavras têm, ao mesmo tempo, um sentido literal e
um sentido metafórico. Um sentido literal porque a palavra de Cristo é
para levar a sério. Eu estou aqui a explicar, mas Deus me livre de
alterar uma vírgula. A palavra é esta, e nós temos de nos haver com
ela. A palavra de Cristo tem uma literalidade com a qual a nossa vida
se há de confrontar sempre, como se fosse a primeira vez; e essa
literalidade é que é o sentido definitivo.
Mas estas palavras de Jesus são também uma metáfora
para dizer: «sê louco»; «sim, mas eu tinha direito a...» - «faz
diferente, faz de outra forma». Isto é, foge às lógicas fechadas: «Ele
disse-me aquilo, mas eu respondi-lhe na mesma moeda»; «ele fez assim,
então vou agir em consonância».
Sermos capazes de romper os ciclos viciosos, os becos
sem saída, o afunilamento das nossas histórias, e tentarmos uma coisa
diferente. Em vez de odiar os inimigos, amá-los - isto é, ser capaz do
perdão, ser capaz da compaixão, ser capaz de aceitar as humilhações.
Santa Teresinha dizia que «muitas humilhações fazem a humildade»; e
quando este princípio é bem entendido, é importante para que nos
relativizemos, porque isto também nos purifica do ídolo que somos.
Amar aqueles que nos amam - claro; mas também amar
aqueles que não nos amam. Ser capaz de outra sabedoria, de uma
sabedoria que refunde a ordem das coisas, refunde a nossa história,
refunde o próprio mundo.
Se o cristianismo é apenas cultural, é muito pouco. Se
somos apenas pessoas sensatas, ponderadas, respeitadas, cumpridoras da
lei, que pagamos os impostos e somos bons cidadãos... isto é o mínimo.
Não é preciso ser cristão para fazermos essas coisas.
Que coisa é necessária para ser cristão? É preciso
fazer um gesto que na sua extravagância, na sua rutura, assinale a
diferença de Cristo, o salto qualitativo, o salto de amor que Cristo
representa. Há um momento na nossa vida em que só um gesto destes nos
pode salvar; há um momento na nossa vida em que só um gesto destes faz a
diferença.
O cristianismo nasceu sem nenhuma força. Não tinha a
seu lado a força de um pensamento, a força de uma cultura, a força do
dinheiro, a força da cidadania... não tinha nada. Tinha apenas a
certeza de que somos o lugar sagrado e este chamamento de Jesus a que
sejamos loucos, a que sejamos capazes de caminhar contracorrente.
Ou vivemos contracorrente, expressando na nossa vida o
que isso significa, numa lógica de amor e dádiva, ou então vivemos um
conformismo social e cultural que dilui o cristianismo e o torna um
folclore, e não um lugar de redenção e transformação das nossas vidas.
O cristianismo não se faz de massa mas das histórias
individuais. Quantos lugares sagrados, que são a vida de cada um de nós,
estão aqui?
Vamos pedir que o Espírito nos habite, nos fortaleça,
nos dê a certeza do amor de Deus, confirme em nós o amor de Deus, e nos
dê a capacidade de arriscar uma outra sabedoria, que muitas vezes é
loucura aos olhos do mundo, mas outra coisa não é do que abraçar até ao
fundo e até ao fim a cruz do Senhor.
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*Teólogo português. Escritor. Poeta.
Capela do Rato, 23.2.2014
Fonte: Redação: SNPC/rjm
© SNPC | 25.02.14
Capela do Rato, 23.2.2014
Fonte: Redação: SNPC/rjm
© SNPC | 25.02.14
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