A fórmula de
Wittgenstein “os limites do meu mundo são os limites da minha
linguagem”, se levada a sério, nos permite entender a razão pela qual
temos uma enorme dificuldade de olhar para o mundo segundo uma ótica de
Richard Rorty ou de Peter Sloterdijk, filósofos não substancialistas e
não essencialistas.
Nosso mundo nos é dado por palavras que
estão em nossos dicionários que respeitam, às vezes sem o saber e de
modo excessivo, as descrições de mundo e de nós mesmos propostas por
Aristóteles. Aristóteles foi tratado como “o filósofo” pelos medievais
tardios, e ajudou em muito na construção do que se tornou depois, nas
línguas nacionais modernas, boa parte do conteúdo de nossos dicionários.
Nossa linguagem guarda palavras como “substância” e “essência” dentro
de um campo semântico que faz o seu serviço. Não imaginamos um mundo que
não formado por substâncias e por essências, garantindo estabilidades, e
tendo sua parte dinâmica feita de acidentes e contingências. Tudo que
achamos que existe, ou seja, toda nossa ontologia é exatamente assim: há
algo durável, que é importante e nuclear, e há algo dinâmico, menos
importante, que se agrega ao durável como uma espécie de periferia, cada
peça assim descrita povoa o mundo, compondo sua mobília.
Rorty vem de uma cosmologia de John
Dewey, uma tentativa de rebeldia ao mundo cartesiano e, por tabela, ao
platonismo e ao aristotelismo. Nessa cosmologia o mundo é um feixe de
relações. Todavia, ele próprio, Rorty, não insiste nisso. Porque Rorty
não gosta de ontologia, e, com sua formação analítica, não arrisca mesmo
falar em cosmologia em pleno final de século XX. Ele acredita que
ontologia é sempre algo que acaba nos traindo e empurrando goela abaixo a
terminologia aristotélica. Rorty não se deixa conquistar por Davidson
nisso. Este, por sua vez, admite claramente a ontologia como o que pode
ser uma descrição a mais do mundo, do que existe. Sloterdijk também. Mas
Sloterdijk não fala em feixe de relações, ele prefere falar em esferas.
Uma descrição do mundo a partir de
esferas busca criar uma linguagem que dê outros limites ao mundo. Há de
se fazer o mundo diferente se falamos dele com a linguagem da
esferologia.
Uma esfera não é uma noção
exclusivamente geométrica, é uma noção que admite também a fórmula de
“zona de influência”, “zona temática”. Falamos em “esfera artística” ou
“esfera política” etc. Uma esfera, assim usada, é um ambiente de
ressonância entre no mínimo dois polos. Ela se estabelece no firmamento
dessa ressonância. Esse ambiente é o que Sloterdijk chama de
subjetividade. A subjetividade não é um “eu” substancial, com uma
essência, mas um campo, uma esfera, um ambiente imunológico – um lugar
de ressonância.
Não se trata do modelo difundido pelo
habermasianismo, de intersubjetividade. Nem aquele interacionismo de
Piaget. A linguagem da esferologia não diz que há um sujeito em relação
com um outro. Diz que há polos de ressonância e que essa ressonância se
estabelece como a subjetividade. Mutatis mutandis é que Davidson
busca estabelecer quando fala de triangulação. Mas o modelo do triângulo
de Davidson ganha melhor defesa, na prevenção diante de uma queda no
modelo da intersubjetividade (o que no limite, no caso de Habermas, pode
dar margem a uma interação de substâncias, uma resposição do
aristotelismo) se a partir dele nos ajudarmos com o modelo das esferas. O
modelo das esferas, em certo sentido, está mais para a ideia de
subjetividade de Rorty, quando este lê Davidson, a célebre “rede de
crenças e desejos”. Bem, mas o modelo das esferas pode ser transmitido
segundo interpretações variadas. Há um campo aberto para a ficção
filosófica nesse âmbito. Ficaria espantado em ver Rorty ou Davidson
deixando de lado o linguajar analítico para se envolverem com uma
leitura do Gênesis, como é o caso de Sloterdijk. Nesse caso, Rorty e
Davidson me dão uma perna, mas só uma, para que eu estique a outra com
Sloterdijk e, assim, de certo modo, reencontre minha anterior formação
vinda da Escola de Frankfurt.
A leitura de Sloterdijk do Gênesis é uma das páginas mais belas que já li em filosofia.
Para Sloterdijk, quando Deus dota o
homem de espírito, de vida, pelo sopro que vai do nariz de Adão para o
seu interior, ele só poderia saber se este realmente havia adquirido
vida, espírito, recebendo de volta a respiração de Adão. Nesse momento
nasce não só Adão, mas também Deus. Aí está o elemento primordial, que
não é o homem ou Deus, mas a esfera, o ambiente aclimatado da respiração
mútua. Ocorre uma ressonância e a esfera é então formada.
Quando perguntado por um jovem o que
Deus fazia antes de criar o mundo e o homem, Lutero deu uma de Santo
Agostinho diante do jovem que o inquiriu. Sua resposta foi gentil: “ah,
meu querido, Deus vivia num bosque recolhendo varas”. E então o garoto
entrou no jogo fatal: “recolhendo varas, mestre? Mas para quê?”. E
Lutero: “ora, meu querido, para bater na bunda de garotos como você,
curiosos com o que não de pode perguntar”. O modelo da esfera responde a
isso: não há um antes, o que há é a esfera, e esta já pressupõe ser um
ambiente, gerada pela vida – o espiritual clima de intimidade feita ali
por Deus e o boneco oco de barro.
Não há que pensar Deus ou homem como
substâncias e como essências, nem como elementos individuais, mas há de
se ter uma linguagem que ponha a esfera na jogada e, assim, nos empurre
para criar limites do mundo que são outros. Não posso ver Deus e o
homem, um como imagem do outro, a partir de polos que se
substancializam, mas como polos que emergem juntos à medida que emerge o
clima respiratório, o sopro que recebe sopro e unifica um ambiente, o
campo de imunidade.
Uma ontologia assim faz vermos o mundo segundo novos limites.
Claro que nossa linguagem nos puxa
novamente para uma descrição do mundo aristotélica. Mas, com algum
esforço, a linguagem da esferologia pode se tornar hegemônica (por que
não?) e nos desconectar totalmente do antigo mundo.
Qual a vantagem disso? Penso que a nossa
característica, de desenvolvermos uma linguagem que nos faz reflexivos,
só faz sentido se imaginarmos que a subjetividade é isso mesmo, uma
esfera. Sloterdijk chega mesmo a dizer algo assim. Primeiro ele afirma
que “A história toda é a história de relações de animação”, e em
seguida, expõe:
“Em todos esses modelos [de relações de
animação com dois polos], ligações esféricas são geradas em recíprocas
animações, geradas elas mesmas através de ressonância radical; cada uma
delas demonstra que a real subjetividade consiste de duas ou mais
partes. Onde duas dessas são exclusivamente abertas uma para a outra em
uma divisão espacial íntima, um modo habitável de sujeiticidade se
desenvolve em cada parte; isso inicialmente é nem mais nem menos do que
uma participação em ressonância esférica.” (Sloterdijk, P. Bubbles. Spheres I. Los Angeles: Semiotext, 2011. P. 53).
O modelo de Deus-Adão por meio da
animação respiratória, ou seja, a inspiração mútua (eis a palavra
inspiração já em dupla performance!) diz bem aí que o ato original, a
base histórica de uma ontologia, expressa como mito em um dos textos
mais antigos do mundo, é alguma coisa que fornece base para essa
ontologia. Outros modelos são fornecidos por Sloterdijk. Mas este, o
Deus-Adão, tem um conteúdo poético inimaginável, renovável, e de uma
capacidade de nos jogar para uma ampliação dos limites de nossa
linguagem. Nosso mundo literalmente se expande ao enveredarmos pelo uso
desse novo vocabulário, o da esferologia.
Talvez devêssemos também assim, pela
visão da esfera, entender o casal que deverá ultrapassar essa vida,
mantendo-se como casal no Além, como o que Platão descreve no Fedro,
ao falar dos que filosofaram e amaram juntos. Talvez devêssemos também
pela visão da esfera entender melhor o “dois em um”, que chama a atenção
de Hanna Arendt na sua leitura do Hippias Maior. Talvez
possamos, por essa ontologia diferente, ir se aproximando também de uma
noção diferente de subjetividade. Afinal, por que não podemos ampliar os
limites do nosso mundo?
--------------------------* Filósofo
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/sloterdijk-novos-mundos-nova-nocao-de-subjetividade/
Imagem da Internet
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