"O que o esporte empresta à alma humana é o amor à luta, ao batalhar, mas nunca as qualidades intelectuais que são precisas a um general, já não direi grande, mas razoável. (...) O mal do esporte está mesmo nisto, como mostrou Spencer; e é por isso que eu o combato, de todos os modos e feitios. Não posso admitir nem conceber que o fim da civilização seja a guerra. Se assim fosse, ela não teria significação. O fim da civilização é a paz, a concórdia, a harmonia entre os homens; e é para isso que os grandes corações de sábios, de santos, de artistas têm trabalhado."
O severo (e ranzinza) julgamento acima foi escrito em 1921 por um de
nossos principais escritores, Afonso Henriques de Lima Barreto
(1881-1922). Autor de um romance-chave para a discussão da identidade
nacional, "Triste Fim de Policarpo Quaresma", sátira protagonizada por
um patriota que defendia a adoção do tupi como idioma oficial, Lima
Barreto retrucava, no artigo do qual foi retirado esse trecho,
argumentos defendidos pelo filósofo inglês Herbert Spencer (1820-1903),
para quem a atividade esportiva era considerada "útil e indispensável
como cultivo intelectual" e "uma preparação para a guerra".
Onde se menciona atividade esportiva, no texto de Barreto, leia-se
futebol - ou, como ainda se grafava e se dizia naquela época,
"football". Ele começava a se enraizar na sociedade brasileira. Temos
ali um dos primeiros exemplos da relação - às vezes tensa, como se
percebe, às vezes mais amistosa e triunfalista - entre a literatura
brasileira e o esporte que se consagraria não apenas como o mais popular
no país, mas também como um dos elementos definidores da identidade
nacional. A intensa divisão de opiniões - que ainda se mantém aquecida, a
poucos meses do evento - em relação à Copa do Mundo no Brasil sugere
que essa tensão persistirá, tal como alguns escritores brasileiros se
empenharam em representá-la.
O que Lima Barreto pensava, nesse aspecto, continua tremendamente
atual. "Ele considerava que o futebol consumia verbas estatais que
deveriam ser utilizadas para outras coisas", observa Andrea Hossne,
professora do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de
São Paulo e autora da tese de doutorado "A Angústia da Forma e o
Bovarismo: Lima Barreto, Romancista". "Diabo! Uma alimentação sadia, uma
habitação higiênica, um bom clima agem tão eficazmente sobre o nosso
organismo como umas marradas ou uns pontapés dominicais, debaixo de um
sol ardente - não acham?", dizia ele em uma crônica. Em outro artigo, o
alvo são as autoridades e todos os que pensam como elas em relação ao
apoio estatal: "Para gente desse calibre, a grandeza de um país não se
mede pelo desenvolvimento das artes, da ciência e das letras. O padrão
do seu progresso é o grosseiro 'football' e o xadrez de ociosos ricos ou
profissionais".
"Questões fundamentais para Lima Barreto permeiam sua visão acerca do
esporte e do futebol, tais como sua crítica à política no Brasil, às
divisões que levam a antagonismos e privilégios tanto de classe quanto
raciais, sua preocupação com violência e conflito", diz Andrea. "Ele
cita Spencer, mas é digno de nota que tenha lido e encontre afinidades
mais com as ideias de [Peter] Kropotkin do que de [Charles] Darwin.
Enquanto este falava da seleção natural baseada na competição, na maior
ou menor aptidão para a sobrevivência, aquele tratava da solidariedade
entre indivíduos e espécies como estratégia para a sobrevivência, em
especial na obra 'Mutual Aid', lida em francês por Lima Barreto, que se
desdobra também numa visão política, afinada com o anarquismo."
É compreensível, portanto, que tenham chamado a atenção do escritor
"muito mais os aspectos de dissenso e conflito (quando não delito)
presentes no futebol no Brasil dentro e fora do campo - aspectos
inegáveis, e que se perpetuam quando não se exponenciam, a ponto de se
necessitar a intervenção policial e se proceder à contagem de mortos e
feridos após partidas, com banimento de torcidas organizadas, fenômenos
como os "hooligans" etc. - do que os aspectos positivos do esporte". Em
parte, resume Andrea, "sua crítica ao futebol é também sua visão crítica
e ácida do país e da nossa vida em sociedade". "Penso que talvez ele
tenha identificado uma visão de classe, nos primórdios do futebol no
Brasil, que em tudo se opunha à sua visão, de quem se situava à margem, e
ao seu projeto ético-estético."
Ela vê "proximidades" entre algumas críticas de Lima Barreto, "o
interessantíssimo trabalho de Nelson de Oliveira e Livia Garcia-Roza em
seus contos" (respectivamente, "Gol" e "O Espelhinho") e a "linguagem
algo preciosista e heroicizante de muitos locutores e comentaristas
esportivos, sobretudo de futebol". Algo que tem a ver com o esporte,
analisa Andrea, como espécie de "sucedâneo possível na experiência
passional e cotidiana do ânimo épico, de grandes conquistas e feitos, em
disputas que exigem habilidades específicas, não raro algum tipo de
excepcionalidade, com inimigos muito bem demarcados, diferentemente do
que o dia a dia nos apresenta". Mas, por outro lado, algo que talvez
"transcenda o esporte em si como atividade, alcançando uma dimensão da
expressão, tanto no gesto como na linguagem".
O escritor Luiz Ruffato, que organizou a recém-publicada coletânea
"Entre as Quatro Linhas - Contos sobre Futebol", atribui a demora com
que o futebol entrou no "horizonte de interesse" dos escritores
brasileiros à ideia equivocada de que ele seria "pouco literalizável".
"Não é verdade. Ele tem todos os componentes dramáticos. Com raras
exceções, os escritores é que não gostavam de futebol. Não viam como
algo que pudessse ser transformado em literatura. O aumento recente na
produção, segundo Ruffato, estaria associado ao fato de que "há uma nova
geração de escritores que convive com estratos sociais que gostam de
futebol", bem como a uma presença mais forte desse esporte na classe
média.
"Entre as Quatro Linhas" foi publicado na Alemanha e lançado durante a
homenagem ao Brasil realizada na Feira de Frankfurt, em 2013. "Foi um
interesse pragmático", explica Ruffato, lembrando também a proximidade
da Copa do Mundo. "Queria um livro só com inéditos." Os convites
respeitaram dois pontos que, para ele, eram fundamentais: o equilíbrio
entre homens e mulheres, "para quebrar com o imaginário machista" de que
o futebol atrai apenas os primeiros, e a reunião de autores de diversas
regiões do país, "para quebrar o paradigma do eixo Rio-São Paulo". Dos
15 autores, 9 são homens, entre eles Fernando Bonassi e Cristovão Tezza.
Eliane Brum e Adriana Lisboa estão no elenco feminino.
Para o jornalista Juca Kfouri, o que se manifesta até o fim dos anos
1960 é "uma maneira preconceituosa de a nossa 'intelligentsia' olhar
para o futebol" e, em razão disso, uma bibliografia "paupérrima, seja na
ficção ou na não ficção". Entre os pouquíssimos trabalhos que ele
destaca nas décadas que se estendem até o tricampeonato mundial do
Brasil, incluem-se "O Negro no Futebol Brasileiro", de Mário Filho;
"Negro, Macumba e Futebol", de Anatol Rosenfeld; e "O Sol e o Verde", de
Sergio Ortiz Porto, "um médico gaúcho que escreveu uma história,
leitura da minha juventude, sobre um garoto pobre que faz carreira no
futebol". "Pouquíssima coisa", resume.
A partir dos anos 1970, contudo, Kfouri vê "a entrada do futebol na
universidade", por meio de disciplinas de sociologia do esporte e da
crescente produção de dissertações e teses. Com isso, teria vindo uma
transformação no status que o futebol passou a desfrutar no cenário da
cultura. "Não há clube que não tenha um bom livro. 'Estrela Solitária'
[de Ruy Castro, sobre Garrincha] abriu caminho para as biografias. Mais
recentemente, há uma trilogia notável: 'Veneno Remédio' (José Miguel
Wisnik], 'A Dança dos Deuses' [Hilário Franco Júnior] e 'O Futebol como
Linguagem - Da Mitologia à Psicanálise', de um psiquiatra de Ribeirão
Preto [David Azoubel Neto] que foi professor do Sócrates [ex-jogador do
Corinthians e da seleção brasileira] e viveu com os índios, uma figura
interessantíssima."
Um observador estrangeiro - autor do livro que Kfouri considera um
dos mais importantes para a compreensão do fenômeno do futebol no Brasil
- talvez possa emprestar um olhar mais isento para o debate que se
traduz, em parte, na produção literária. "Para mim, existe uma tensão na
psique brasileira entre sentimentos de superioridade, na linha do
'temos as melhores mulheres, o melhor futebol, música, natureza etc. do
mundo', e sentimentos de inferioridade, por causa da história da
colonização e da posição geográfica", afirma o inglês Alex Bellos, autor
de "Futebol - O Brasil em Campo" (2002), premiado no Reino Unido, com o
prestigiado National Book Award de melhor livro sobre esportes do ano.
"A 'alma brasileira' é uma disputa entre esses dois extremos", acredita
ele (leia entrevista na página 11).
Para o escritor Sérgio Rodrigues, autor do romance "O Drible", que
trata de uma relação conflituosa entre pai (um jornalista esportivo do
Rio) e filho a partir de inúmeras referências a jogadores, partidas e
equipes, "o melhor que nossa literatura fez por nosso futebol ainda está
na não ficção, na fronteira do jornalismo com a arte, nas crônicas de
Nelson Rodrigues e Paulo Mendes Campos e em livros como 'O Negro no
Futebol Brasileiro', de Mário Filho, e 'Anatomia de uma Derrota', de
Paulo Perdigão". Na criação ficcional, diz, "o quadro está mudando, mas
por muito tempo o futebol, aquilo que ele tem de melhor e mais
apaixonante, parece ter tido um efeito paradoxal sobre os escritores: o
de tornar mais tímida a fantasia, a fabulação".
Uma saída clássica diante disso, na análise de Rodrigues, foi a de
"encenar num cenário futebolístico um drama social ou político em que a
bola era secundária". Ele lembra o caso do romance "Água-Mãe", de José
Lins do Rego, e da peça teatral "Chapetuba Futebol Clube", de Oduvaldo
Vianna Filho. "Outra estratégia foi fechar o foco no drama pessoal de um
jogador ou aspirante, retratando a promessa de glória do futebol como
engodo, pelo lado do fracasso." Os exemplos seriam alguns "contos
excelentes" como "Abril, no Rio, em 1970", de Rubem Fonseca, e "No
Último Minuto", de Sérgio Sant'Anna (autor também da novela "Páginas sem
Glória"). "Talvez seja essa dificuldade ou recusa em encarar o jogo na
sua grandeza e não apenas na sua miséria que tenha levado à ideia tão
difundida, mas a meu ver errada, de que nossa literatura é perna de pau
quando trata de futebol."
Na gênese de "O Drible", o futebol veio antes do conflito entre pai e
filho. "A primeira semente do romance foi um conto que escrevi há 18
anos e na última hora decidi deixar fora do meu primeiro livro, 'O Homem
Que Matou o Escritor' [2000], por achar que poderia desenvolvê-lo
melhor. Àquela altura eu imaginava que a coisa talvez rendesse um conto
longo, no máximo uma novela, não um romance." Chamava-se "Peralvo" e
contava a história de um jogador do Vasco da Gama nos anos 60.
Dizia-se que Peralvo "tinha poderes sobrenaturais e poderia ter sido
maior que Pelé se não tivesse a carreira abortada em circunstâncias
trágicas, justamente na partida em que enfrentou pela primeira vez o
craque do Santos". Rodrigues observa que, curiosamente, o conto - que
tinha cerca de dez páginas - está inteiro dentro de "O Drible",
praticamente sem alterações. "Mas o drama de família em que essa
história se insere e também a moldura futebolística mais ampla, meio
histórica e meio mítica, vieram bem depois, aos poucos, e deram um
trabalho danado." Resumindo, segundo ele: "Peralvo" foi inspiração e o
resto, transpiração.
"A despeito de o futebol ser um tema central da cultura brasileira a
partir do início do século XX, sua relação com a literatura se dá aos
soluços, de modo muito intermitente", observa José Carlos Marques,
professor do Departamento de Ciências Humanas da Faculdade de
Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista
(Unesp/Bauru). "Temos aqui algo contrário do que ocorre, por exemplo, no
casamento entre o futebol e a música brasileira. Não há grandes
romances, de autores consagrados ou reconhecidos do grande público, que
tenham incluído o futebol como tema central ou secundário em sua trama
narrativa. Aliás, no gênero narrativo, o futebol compareceu de modo mais
significativo em contos e novelas."
Marques acredita que foi na poesia e, sobretudo, na crônica
jornalística que o futebol ganhou "linhas e páginas à altura da
importância que essa modalidade esportiva adquiriu em nosso país". Autor
do livro "O Futebol em Nelson Rodrigues" e líder do Grupo de Estudos em
Comunicação Esportiva e Futebol da Unesp, ele considera que nas páginas
dos jornais se construiu "uma tradição muito brasileira de se comentar e
de se reconstruir o futebol de maneira subjetiva e, por vezes,
ficcional". O campo é vasto, frisa, mas "é preciso citar os seminais
Mário Filho e Nelson Rodrigues, o ultrarromântico Armando Nogueira, o
pontual Paulo Mendes Campos e o provocador Sérgio Porto, por meio de seu
'personagem' Stanislaw Ponte Preta".
Hoje, Marques destaca o trabalho de José Roberto Torero e Xico Sá,
"que vêm dando vitalidade à crônica esportiva por meio da construção
literária de seus textos - seja pelo caráter ficcional, seja pela
riqueza da composição linguística". Na poesia, João Cabral de Melo Neto e
Carlos Drummond de Andrade, que "escreveram poemas antológicos sobre o
futebol". O próprio Drummond, em suas crônicas, "incluiu inúmeras vezes o
futebol como tema de discussão e quase sempre de maneira brilhante".
Por último, ele faz questão de citar "a obra despretensiosa de Luiz
Schwarcz, o conto infantil 'Minha Vida de Goleiro'", que serviu de
inspiração para o filme "O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias", de
Cao Hamburger.
De maio a julho, cobrindo todo o período de realização da Copa, o
Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, promoverá a exposição "O
Futebol na Ponta da Língua". Obras de Nelson Rodrigues, Luis Fernando
Verissimo e Oswald de Andrade serão presenças já garantidas no elenco,
de acordo com o diretor do museu, Antonio Carlos Sartini. "Estamos
desenvolvendo o projeto, mas esses três escritores estarão certamente
entre os representantes da literatura que fala de futebol."
Sob curadoria de Clara Azevedo, que foi diretora do Museu do Futebol,
a exposição ocupará diversos espaços do Museu da Língua, não apenas a
sala das mostras temporárias. "Queremos que ela mantenha um diálogo com a
nossa exposição permanente, que inclui, por exemplo, um filme rodado
especialmente para o museu e narrado por Pelé, sobre o futebol e a
língua como elos da nossa identidade cultural", afirma Sartini.
Estão previstas parcerias com o Museu do Futebol e com o Salão de
Humor de Piracicaba para cessão de material de seus respectivos acervos.
Entre os "diversos aspectos dessa brincadeira" (as relações entre a
língua e o futebol) que o museu planeja reunir, Sartini destaca "termos
usados comumente hoje que nasceram no futebol", muitas vezes criados por
radialistas e locutores de TV. Trechos de transmissões brasileiras vão
mostrar as diferenças regionais no uso do português. "Por meio de uma
parceria com a RTP [Rádio e Televisão de Portugal], queremos trazer
também narrações de partidas feitas em Portugal, Angola e Moçambique",
diz.
-------------
REPORTAGEM POR Sérgio Rizzo | Para o Valor, de São Paulo
Fonte: Valor Econômico online, 07/02/2014
-------------
REPORTAGEM POR Sérgio Rizzo | Para o Valor, de São Paulo
Fonte: Valor Econômico online, 07/02/2014
Nenhum comentário:
Postar um comentário