sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

NOVO TIME EM CAMPO

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 Carlos Alberto Torres, capitão da seleção de 1970, a do Brasil tricampeão, ergue a Taça Jules Rimet: 
só depois de ganhar essa Copa o futebol entrou na universidade, nota Juca Kfouri

"O que o esporte empresta à alma humana é o amor à luta, ao batalhar, mas nunca as qualidades intelectuais que são precisas a um general, já não direi grande, mas razoável. (...) O mal do esporte está mesmo nisto, como mostrou Spencer; e é por isso que eu o combato, de todos os modos e feitios. Não posso admitir nem conceber que o fim da civilização seja a guerra. Se assim fosse, ela não teria significação. O fim da civilização é a paz, a concórdia, a harmonia entre os homens; e é para isso que os grandes corações de sábios, de santos, de artistas têm trabalhado."

O severo (e ranzinza) julgamento acima foi escrito em 1921 por um de nossos principais escritores, Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922). Autor de um romance-chave para a discussão da identidade nacional, "Triste Fim de Policarpo Quaresma", sátira protagonizada por um patriota que defendia a adoção do tupi como idioma oficial, Lima Barreto retrucava, no artigo do qual foi retirado esse trecho, argumentos defendidos pelo filósofo inglês Herbert Spencer (1820-1903), para quem a atividade esportiva era considerada "útil e indispensável como cultivo intelectual" e "uma preparação para a guerra".

Onde se menciona atividade esportiva, no texto de Barreto, leia-se futebol - ou, como ainda se grafava e se dizia naquela época, "football". Ele começava a se enraizar na sociedade brasileira. Temos ali um dos primeiros exemplos da relação - às vezes tensa, como se percebe, às vezes mais amistosa e triunfalista - entre a literatura brasileira e o esporte que se consagraria não apenas como o mais popular no país, mas também como um dos elementos definidores da identidade nacional. A intensa divisão de opiniões - que ainda se mantém aquecida, a poucos meses do evento - em relação à Copa do Mundo no Brasil sugere que essa tensão persistirá, tal como alguns escritores brasileiros se empenharam em representá-la.

O que Lima Barreto pensava, nesse aspecto, continua tremendamente atual. "Ele considerava que o futebol consumia verbas estatais que deveriam ser utilizadas para outras coisas", observa Andrea Hossne, professora do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e autora da tese de doutorado "A Angústia da Forma e o Bovarismo: Lima Barreto, Romancista". "Diabo! Uma alimentação sadia, uma habitação higiênica, um bom clima agem tão eficazmente sobre o nosso organismo como umas marradas ou uns pontapés dominicais, debaixo de um sol ardente - não acham?", dizia ele em uma crônica. Em outro artigo, o alvo são as autoridades e todos os que pensam como elas em relação ao apoio estatal: "Para gente desse calibre, a grandeza de um país não se mede pelo desenvolvimento das artes, da ciência e das letras. O padrão do seu progresso é o grosseiro 'football' e o xadrez de ociosos ricos ou profissionais".

"Questões fundamentais para Lima Barreto permeiam sua visão acerca do esporte e do futebol, tais como sua crítica à política no Brasil, às divisões que levam a antagonismos e privilégios tanto de classe quanto raciais, sua preocupação com violência e conflito", diz Andrea. "Ele cita Spencer, mas é digno de nota que tenha lido e encontre afinidades mais com as ideias de [Peter] Kropotkin do que de [Charles] Darwin. Enquanto este falava da seleção natural baseada na competição, na maior ou menor aptidão para a sobrevivência, aquele tratava da solidariedade entre indivíduos e espécies como estratégia para a sobrevivência, em especial na obra 'Mutual Aid', lida em francês por Lima Barreto, que se desdobra também numa visão política, afinada com o anarquismo."

É compreensível, portanto, que tenham chamado a atenção do escritor "muito mais os aspectos de dissenso e conflito (quando não delito) presentes no futebol no Brasil dentro e fora do campo - aspectos inegáveis, e que se perpetuam quando não se exponenciam, a ponto de se necessitar a intervenção policial e se proceder à contagem de mortos e feridos após partidas, com banimento de torcidas organizadas, fenômenos como os "hooligans" etc. - do que os aspectos positivos do esporte". Em parte, resume Andrea, "sua crítica ao futebol é também sua visão crítica e ácida do país e da nossa vida em sociedade". "Penso que talvez ele tenha identificado uma visão de classe, nos primórdios do futebol no Brasil, que em tudo se opunha à sua visão, de quem se situava à margem, e ao seu projeto ético-estético."

Ela vê "proximidades" entre algumas críticas de Lima Barreto, "o interessantíssimo trabalho de Nelson de Oliveira e Livia Garcia-Roza em seus contos" (respectivamente, "Gol" e "O Espelhinho") e a "linguagem algo preciosista e heroicizante de muitos locutores e comentaristas esportivos, sobretudo de futebol". Algo que tem a ver com o esporte, analisa Andrea, como espécie de "sucedâneo possível na experiência passional e cotidiana do ânimo épico, de grandes conquistas e feitos, em disputas que exigem habilidades específicas, não raro algum tipo de excepcionalidade, com inimigos muito bem demarcados, diferentemente do que o dia a dia nos apresenta". Mas, por outro lado, algo que talvez "transcenda o esporte em si como atividade, alcançando uma dimensão da expressão, tanto no gesto como na linguagem".

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Campeões em 1958, Pelé abraça Gylmar: "Qualquer jogador brasileiro, quando se desamarra de suas inibições
 e se põe em estado de graça, é algo de único em matéria de improvisação, de invenção", 
escreveu Nelson Rodrigues
O escritor Luiz Ruffato, que organizou a recém-publicada coletânea "Entre as Quatro Linhas - Contos sobre Futebol", atribui a demora com que o futebol entrou no "horizonte de interesse" dos escritores brasileiros à ideia equivocada de que ele seria "pouco literalizável". "Não é verdade. Ele tem todos os componentes dramáticos. Com raras exceções, os escritores é que não gostavam de futebol. Não viam como algo que pudessse ser transformado em literatura. O aumento recente na produção, segundo Ruffato, estaria associado ao fato de que "há uma nova geração de escritores que convive com estratos sociais que gostam de futebol", bem como a uma presença mais forte desse esporte na classe média.

"Entre as Quatro Linhas" foi publicado na Alemanha e lançado durante a homenagem ao Brasil realizada na Feira de Frankfurt, em 2013. "Foi um interesse pragmático", explica Ruffato, lembrando também a proximidade da Copa do Mundo. "Queria um livro só com inéditos." Os convites respeitaram dois pontos que, para ele, eram fundamentais: o equilíbrio entre homens e mulheres, "para quebrar com o imaginário machista" de que o futebol atrai apenas os primeiros, e a reunião de autores de diversas regiões do país, "para quebrar o paradigma do eixo Rio-São Paulo". Dos 15 autores, 9 são homens, entre eles Fernando Bonassi e Cristovão Tezza. Eliane Brum e Adriana Lisboa estão no elenco feminino.

Para o jornalista Juca Kfouri, o que se manifesta até o fim dos anos 1960 é "uma maneira preconceituosa de a nossa 'intelligentsia' olhar para o futebol" e, em razão disso, uma bibliografia "paupérrima, seja na ficção ou na não ficção". Entre os pouquíssimos trabalhos que ele destaca nas décadas que se estendem até o tricampeonato mundial do Brasil, incluem-se "O Negro no Futebol Brasileiro", de Mário Filho; "Negro, Macumba e Futebol", de Anatol Rosenfeld; e "O Sol e o Verde", de Sergio Ortiz Porto, "um médico gaúcho que escreveu uma história, leitura da minha juventude, sobre um garoto pobre que faz carreira no futebol". "Pouquíssima coisa", resume.

A partir dos anos 1970, contudo, Kfouri vê "a entrada do futebol na universidade", por meio de disciplinas de sociologia do esporte e da crescente produção de dissertações e teses. Com isso, teria vindo uma transformação no status que o futebol passou a desfrutar no cenário da cultura. "Não há clube que não tenha um bom livro. 'Estrela Solitária' [de Ruy Castro, sobre Garrincha] abriu caminho para as biografias. Mais recentemente, há uma trilogia notável: 'Veneno Remédio' (José Miguel Wisnik], 'A Dança dos Deuses' [Hilário Franco Júnior] e 'O Futebol como Linguagem - Da Mitologia à Psicanálise', de um psiquiatra de Ribeirão Preto [David Azoubel Neto] que foi professor do Sócrates [ex-jogador do Corinthians e da seleção brasileira] e viveu com os índios, uma figura interessantíssima."

Um observador estrangeiro - autor do livro que Kfouri considera um dos mais importantes para a compreensão do fenômeno do futebol no Brasil - talvez possa emprestar um olhar mais isento para o debate que se traduz, em parte, na produção literária. "Para mim, existe uma tensão na psique brasileira entre sentimentos de superioridade, na linha do 'temos as melhores mulheres, o melhor futebol, música, natureza etc. do mundo', e sentimentos de inferioridade, por causa da história da colonização e da posição geográfica", afirma o inglês Alex Bellos, autor de "Futebol - O Brasil em Campo" (2002), premiado no Reino Unido, com o prestigiado National Book Award de melhor livro sobre esportes do ano. "A 'alma brasileira' é uma disputa entre esses dois extremos", acredita ele (leia entrevista na página 11).

Para o escritor Sérgio Rodrigues, autor do romance "O Drible", que trata de uma relação conflituosa entre pai (um jornalista esportivo do Rio) e filho a partir de inúmeras referências a jogadores, partidas e equipes, "o melhor que nossa literatura fez por nosso futebol ainda está na não ficção, na fronteira do jornalismo com a arte, nas crônicas de Nelson Rodrigues e Paulo Mendes Campos e em livros como 'O Negro no Futebol Brasileiro', de Mário Filho, e 'Anatomia de uma Derrota', de Paulo Perdigão". Na criação ficcional, diz, "o quadro está mudando, mas por muito tempo o futebol, aquilo que ele tem de melhor e mais apaixonante, parece ter tido um efeito paradoxal sobre os escritores: o de tornar mais tímida a fantasia, a fabulação".

Uma saída clássica diante disso, na análise de Rodrigues, foi a de "encenar num cenário futebolístico um drama social ou político em que a bola era secundária". Ele lembra o caso do romance "Água-Mãe", de José Lins do Rego, e da peça teatral "Chapetuba Futebol Clube", de Oduvaldo Vianna Filho. "Outra estratégia foi fechar o foco no drama pessoal de um jogador ou aspirante, retratando a promessa de glória do futebol como engodo, pelo lado do fracasso." Os exemplos seriam alguns "contos excelentes" como "Abril, no Rio, em 1970", de Rubem Fonseca, e "No Último Minuto", de Sérgio Sant'Anna (autor também da novela "Páginas sem Glória"). "Talvez seja essa dificuldade ou recusa em encarar o jogo na sua grandeza e não apenas na sua miséria que tenha levado à ideia tão difundida, mas a meu ver errada, de que nossa literatura é perna de pau quando trata de futebol."
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Dunga e a taça do mundo em 1994: foi na poesia e, sobretudo, na crônica que o futebol ganhou 
"linhas e páginas à altura da importância 
que essa modalidade esportiva adquiriu em nosso país", 
diz professor da Unesp
Na gênese de "O Drible", o futebol veio antes do conflito entre pai e filho. "A primeira semente do romance foi um conto que escrevi há 18 anos e na última hora decidi deixar fora do meu primeiro livro, 'O Homem Que Matou o Escritor' [2000], por achar que poderia desenvolvê-lo melhor. Àquela altura eu imaginava que a coisa talvez rendesse um conto longo, no máximo uma novela, não um romance." Chamava-se "Peralvo" e contava a história de um jogador do Vasco da Gama nos anos 60.
Dizia-se que Peralvo "tinha poderes sobrenaturais e poderia ter sido maior que Pelé se não tivesse a carreira abortada em circunstâncias trágicas, justamente na partida em que enfrentou pela primeira vez o craque do Santos". Rodrigues observa que, curiosamente, o conto - que tinha cerca de dez páginas - está inteiro dentro de "O Drible", praticamente sem alterações. "Mas o drama de família em que essa história se insere e também a moldura futebolística mais ampla, meio histórica e meio mítica, vieram bem depois, aos poucos, e deram um trabalho danado." Resumindo, segundo ele: "Peralvo" foi inspiração e o resto, transpiração.

"A despeito de o futebol ser um tema central da cultura brasileira a partir do início do século XX, sua relação com a literatura se dá aos soluços, de modo muito intermitente", observa José Carlos Marques, professor do Departamento de Ciências Humanas da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista (Unesp/Bauru). "Temos aqui algo contrário do que ocorre, por exemplo, no casamento entre o futebol e a música brasileira. Não há grandes romances, de autores consagrados ou reconhecidos do grande público, que tenham incluído o futebol como tema central ou secundário em sua trama narrativa. Aliás, no gênero narrativo, o futebol compareceu de modo mais significativo em contos e novelas."

Marques acredita que foi na poesia e, sobretudo, na crônica jornalística que o futebol ganhou "linhas e páginas à altura da importância que essa modalidade esportiva adquiriu em nosso país". Autor do livro "O Futebol em Nelson Rodrigues" e líder do Grupo de Estudos em Comunicação Esportiva e Futebol da Unesp, ele considera que nas páginas dos jornais se construiu "uma tradição muito brasileira de se comentar e de se reconstruir o futebol de maneira subjetiva e, por vezes, ficcional". O campo é vasto, frisa, mas "é preciso citar os seminais Mário Filho e Nelson Rodrigues, o ultrarromântico Armando Nogueira, o pontual Paulo Mendes Campos e o provocador Sérgio Porto, por meio de seu 'personagem' Stanislaw Ponte Preta".

Hoje, Marques destaca o trabalho de José Roberto Torero e Xico Sá, "que vêm dando vitalidade à crônica esportiva por meio da construção literária de seus textos - seja pelo caráter ficcional, seja pela riqueza da composição linguística". Na poesia, João Cabral de Melo Neto e Carlos Drummond de Andrade, que "escreveram poemas antológicos sobre o futebol". O próprio Drummond, em suas crônicas, "incluiu inúmeras vezes o futebol como tema de discussão e quase sempre de maneira brilhante". Por último, ele faz questão de citar "a obra despretensiosa de Luiz Schwarcz, o conto infantil 'Minha Vida de Goleiro'", que serviu de inspiração para o filme "O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias", de Cao Hamburger.

De maio a julho, cobrindo todo o período de realização da Copa, o Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, promoverá a exposição "O Futebol na Ponta da Língua". Obras de Nelson Rodrigues, Luis Fernando Verissimo e Oswald de Andrade serão presenças já garantidas no elenco, de acordo com o diretor do museu, Antonio Carlos Sartini. "Estamos desenvolvendo o projeto, mas esses três escritores estarão certamente entre os representantes da literatura que fala de futebol."

Sob curadoria de Clara Azevedo, que foi diretora do Museu do Futebol, a exposição ocupará diversos espaços do Museu da Língua, não apenas a sala das mostras temporárias. "Queremos que ela mantenha um diálogo com a nossa exposição permanente, que inclui, por exemplo, um filme rodado especialmente para o museu e narrado por Pelé, sobre o futebol e a língua como elos da nossa identidade cultural", afirma Sartini.

Estão previstas parcerias com o Museu do Futebol e com o Salão de Humor de Piracicaba para cessão de material de seus respectivos acervos. Entre os "diversos aspectos dessa brincadeira" (as relações entre a língua e o futebol) que o museu planeja reunir, Sartini destaca "termos usados comumente hoje que nasceram no futebol", muitas vezes criados por radialistas e locutores de TV. Trechos de transmissões brasileiras vão mostrar as diferenças regionais no uso do português. "Por meio de uma parceria com a RTP [Rádio e Televisão de Portugal], queremos trazer também narrações de partidas feitas em Portugal, Angola e Moçambique", diz.
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REPORTAGEM POR  Sérgio Rizzo | Para o Valor, de São Paulo
Fonte: Valor Econômico online, 07/02/2014

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