José Tolentino Mendonça*
Tenho tido nestes anos, como padre, a gratíssima
alegria de casar dezenas de amigos. Sei por eles, e da forma mais pura,
a verdade daquele verso de Dante que diz: «o amor move o sol e as
outras estrelas». Ao olhar para o interior das suas vidas, para dentro
dos seus sonhos e até dos seus temores é esse incomparável mistério que
se deteta: o modo como o amor, como a frágil força do amor é capaz de
mover, de transfigurar e de unir, até ao fim, cada fragmento do corpo e
cada filamento da alma.
Um outro autor italiano escreveu: «Somos anjos de uma
asa apenas. Só permanecendo abraçados podemos voar». O casamento é a
serena e criativa conjugação destes dois sentimentos que, fora dele,
pareciam destinados a existir unicamente em contraste: a solidão e a
comunhão. O amor agudiza a consciência de sermos um; descobre, aos
nossos próprios olhos, a irresolúvel incompletude que individualmente
nos caracteriza, a nossa insuperável carência; e ensina-nos o sabor de
uma, até aí desconhecida, solidão: aquela que se sente por estar
privados do ser amado.
No bíblico livro de Rute isso vem assim explicitado:
«a vida tratar-me-á com duros rigores se outra coisa, a não ser a
morte, me impedir de olhar diariamente o teu rosto» (Rt 1,17). A
solidão incandescente com que o amor fere os que se amam é, porém, o
que faz dele uma prática de desejo e de caminho, um exercício de
mendicância (na verdade, o amor é sempre uma conversa entre mendigos) e
de busca, uma forma de entrega e de súplica. Por alguma razão a
experiência religiosa da mística recorre a uma linguagem próxima desta
amorosa. Os enamorados percebem o estado dos grandes orantes e
vice-versa, creio.
Mas o amor é sobretudo milagre da comunhão. Uma
comunhão construída também com esforço, é claro, conquistada
continuamente ao território muito defendido do egoísmo, traduzida em
decisões quotidianas e vigilantes. Porém, não é propriamente de uma
conquista que se trata, mas do arrebatamento comum pelo dom, do espanto
inesgotável, de uma hospitalidade radical. «Se me tapares os olhos:
ainda poderei ver-te. Se me tapares os ouvidos: ainda poderei ouvir-te.
E mesmo sem pés poderei ir para ti. E mesmo sem boca poderei
invocar-te». O fundamental é vislumbrado e servido em completa dádiva,
acontece sem porquês, no âmbito de uma gratuidade infatigável, numa
geografia sem condições nem reservas. O amor não se explica: implica-se.
É uma voluntária hipoteca, um sigilo de sangue, entrelaçamento vital.
Os enamorados conspiram com o milagre e, por isso, tornam-se, de forma
tão íntima, cúmplices de Deus.
Compreendo o aviso meio irónico que Auden faz contra
as festas de casamento. Ele diz que os noivos deviam ser humildes e não
fazer logo no primeiro do seu casamento uma festa colossal, quando, no
fundo, está ainda tudo por construir. Mas também acho impossível não
celebrar a alegria do casamento, e fazê-lo com uma simbólica desmesura.
Poucos momentos dão a ver assim a vida na sua transparência.
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* Teólogo. Escritor. Poeta.
In Diário de Notícias da Madeira
14.09.11 | Atualizado em 13.02.14
14.09.11 | Atualizado em 13.02.14
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