sábado, 15 de fevereiro de 2014

A LARGURA DA VIDA

 J. J. Camargo*
 
"... viver é muito mais do que simplesmente durar. 
E que alongar a vida às custas da total supressão do prazer talvez não seja a escolha mais inteligente."

Estabelecido que a nossa chance de longevidade depende de como vivemos e, em muito, do que comemos, deparamos com uma ciranda de culpados num infindável revezamento. Assim, o pobre ovo já foi considerado o execrável fomentador do infarto, anos depois transferido para uma prisão albergue e, há pouco, completamente inocentado. Agora, a gema já pode escorrer outra vez entre os grãos de arroz sem sentimento de culpa.

Mas a controvérsia não termina por aí. As demonstrações, consideradas inequívocas do dano provocado pela carne vermelha, por exemplo, nunca explicaram por que a incidência de coronariopatias não é maior na Argentina, o país com o mais alto índice de consumo de churrasco por milhão de habitantes do planeta.

No colesterol, todo mundo bateu muito, e ele só não foi acusado de formação de quadrilha. Depois, houve certo constrangimento entre os médicos que impunham restrições e entre os pacientes que abdicavam de muitos prazeres da gula para manter o colesterol abaixo de 200 mg/dl, quando se descobriu que os esquimós, com dieta riquíssima em gordura animal, desfilam frajolas com um índice médio de 1.000 mg/dl. A propósito, ficou claro que colesterol alto, desacompanhado de estresse, é quase inofensivo. Como parecia impensável um esquimó estressado olhando a monotonia daquelas geleiras, tudo se explicava.

Nos anos 70, ainda se fumava nos hospitais, e o seu Osório, internado na velha enfermaria 29, piorava a cada dia. Apesar da insistente recomendação médica, não conseguia parar de fumar. O estagiário responsável por ele pediu socorro ao professor Rigatto, grande mestre, e ferrenho opositor ao fumo. O professor, do alto de sua sapiência, ensinou: “Convencer o paciente depende do nosso grau de convicção. Venha comigo!”.

Quando se acercaram do leito, o velho dava mais uma pitadinha. O professor foi enfático: “Seu Osório, será que o senhor não percebe que este maldito cigarro está reduzindo a extensão da sua vida?”. O pobre paciente, um pouco constrangido pelo fogo cerrado, argumentou: “Me desculpe, professor, mas nunca ouvi dizer que a vida tivesse extensão. Sempre achei que fosse só largura!”.

O Reinaldo tem 70 anos e é um italianão meio tosco, com a simplicidade de quem sempre viveu na colônia. Quando sentou para ouvir as recomendações do clínico que, lhe alertaram, era um grande especialista, nem imaginava o rosário de restrições: “Seu Reinaldo, sua saúde não está nada bem. Quatro coisas precisam ser modificadas. Primeiro, com o colesterol em 400, o senhor não pode mais comer queijo, salame. E copa, nem sonhar. Segundo, os exames do fígado impedem que o senhor tome vinho. Terceiro, com uma glicose de 390 mg/dl, o senhor está diabético e não poderá mais comer massa, pão, esses carboidratos. E quarto...”

O gringo saltou da cadeira e, em pé, encheu a sala de sotaque: “Pode parar. Não quero saber da quarta proibição. Com as três primeiras, já prefiro morrer”. E foi embora com alguma curiosidade pela última, que devia ser a mais terrível, senão não teria ficado para o fim. Pelo menos estava livre do quarto sentimento de culpa. Sozinho, riu desta sensação.

Na singeleza de suas almas puras, esses dois simplórios ensinaram, sem perceber, que viver é muito mais do que simplesmente durar. E que alongar a vida às custas da total supressão do prazer talvez não seja a escolha mais inteligente.
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* Médico.
Fonte: ZH online, 15/02/2014

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