domingo, 9 de fevereiro de 2014

Historiador Chris Carlsson quer mudar o mundo que conhecemos

Historiador Chris Carlsson quer mudar o mundo que conhecemos Pamela Palma/Divulgação
O historiador americano divide o tempo entre vários projetos comunitários
 e viagens para divulgar a cultura da bicicleta 
 Foto: Pamela Palma / Divulgação

Um dos fundadores da Massa Crítica, americano estará em Porto Alegre neste fim de semana para o lançamento do livro "Nowtopia – Iniciativas que Estão Construindo o Futuro Hoje"

Prestes a completar 57 anos, o americano Chris Carlsson é conhecido e admirado por ciclistas e ativistas do mundo inteiro. Duas décadas atrás, ajudou a criar na cidade onde mora, San Francisco, um movimento que se expandiu para mais de 400 cidades em cinco continentes, inclusive Porto Alegre: a Massa Crítica, que reúne um grupo de centenas de ciclistas todas as últimas sextas-feiras do mês para uma pedalada. Fenômeno, aliás, que muita gente ainda tenta compreender tanto tempo depois. 

Carlsson viaja pelo mundo com certa frequência para falar sobre a cultura da bike. Em 2012, esteve na capital gaúcha durante o 1º Fórum Mundial da Bicicleta, criado pela comunidade ciclística do Estado para lembrar o atropelamento de integrantes da própria Massa Crítica, um ano antes, no bairro Cidade Baixa. 

A bicicleta é apenas uma parte da filosofia de vida do americano. Historiador, designer e escritor de livros e artigos, professor universitário, criador e diretor de um projeto de arquivo histórico (Shaping San Francisco) e, algumas vezes por ano, guia de roteiros ciclísticos pela cidade californiana, Carlsson tem um currículo de invejar (e de intrigar, também).

Apesar de tantos trabalhos, o americano fala, com orgulho, que ganha apenas o suficiente para sobreviver. O porquê da vida simples e minimalista ele explica em detalhes no livro Nowtopia — Iniciativas que Estão Construindo o Futuro Hoje (320 páginas, R$ 39). A obra, que apresenta uma alternativa ao mundo capitalista, acaba de receber uma versão em português, pela porto-alegrense Tomo Editorial.

Neste fim de semana, Carlsson volta a Porto Alegre para divulgar o livro. Antes de embarcar, conversou com Zero Hora por telefone, na quinta-feira passada, durante 50 minutos, sobre a Massa Crítica e sobre como as pessoas podem ser mais felizes vivendo com menos.

Qual foi o contexto em que a Massa Crítica surgiu?
No início dos anos 1990, na região em que eu morava em San Francisco, não havia muita gente andando de bicicleta. Mas havia alguns de nós, e nos reuníamos socialmente, para beber cerveja, fumar maconha e conversar sobre coisas como política e ciclismo. Depois de cerca de um ano, uma ideia apareceu nesses bate-papos, de que deveríamos fazer algo novo. E essa nova ideia foi de que deveríamos nos reunir em um determinado local e pedalar para casa. Enchendo a rua de bicicletas, não deixaríamos lugar para os carros. A ideia era de que nos tornaríamos o trânsito, e que o ritmo seria determinado por nós. A primeira vez foi em setembro de 1992, quando apareceram umas 50 pessoas. Um mês depois, foram 75 pessoas, e um mês depois, cento e poucas pessoas, e não parou de crescer, até que, um ano depois, éramos mil pessoas. Agora, já se passaram 21 anos, e as pessoas ainda participam. Geralmente, centenas – às vezes, milhares. 


Integrantes da Massa Crítica em 1992Foto: arquivo pessoal

Havia um propósito além desse?
Nunca realmente teve um propósito além de identificar outros ciclistas e nos encontrar em um lugar público. Não há uma organização – chamamos de “coincidência organizada” –, e não há estrutura formal, é só aparecer em uma bicicleta que você é um membro igual a todos os demais. Era muito empolgante fazer parte disso, então as pessoas começaram a fazer o mesmo em outros lugares. Era uma amostra de uma nova vida que poderia existir na cidade.
O que mudou nos 21 anos de Massa Crítica? Ela ficou mais politizada?
Teve bastante política no começo, mas muitas das pessoas que apareciam não se importavam com isso. Nos Estados Unidos, as pessoas acham que política é algo que acontece a cada quatro anos. Fora isso, acham que nada é político. Eu acho que política está em tudo que fazemos, qualquer conversação ou interação que se tenha com outro ser humano. Eu pus esses argumentos em panfletos que entregamos às pessoas na Massa Crítica. Pela primeira vez em anos, tivemos muitas discussões e debates sobre política, filosofia, então uma cultura muito intensa surgiu. Acho que por isso ela teve tanto poder para ir além de San Francisco. Na Itália, por exemplo, o evento é muito político, assim como em outras partes do mundo. A Massa é basicamente uma incubadora, um espaço em que as coisas começam a acontecer. 


Integrantes da Massa Crítica em 1996Foto: arquivo pessoal

A população de Porto Alegre, em geral, conheceu a Massa Crítica há três anos, quando um motorista atropelou ciclistas que participavam do evento. E, de fato, há muita gente que acredita que a Massa é composta de ciclistas que apenas querem atrapalhar a vida das outras pessoas. O que o senhor acha disso?
A mídia distorceu completamente o que acontecia. No passado, diziam que a Massa Crítica tratava-se, basicamente, de bloquear o trânsito, de confrontar, um movimento raivoso, anarquista e violento. Se você for pensar, há 20 anos tem ocorrido essa pedalada em massa em centenas de cidades do mundo. Com a exceção de Porto Alegre, quase não houve incidentes com violência. O primeiro pressuposto na sociedade é de que quem dirige um carro tem o direito da rua, e que todos os demais deveriam sair do caminho, porque o motorista do carro é o dono da rua. Isso não é verdade, mas é a presunção feita na nossa sociedade baseada no automóvel. E a Massa Crítica é uma resposta política a isso. Não, a rua é um espaço público, que todos podem usar. Aliás, provavelmente não deveríamos usá-la para transporte todo o tempo. 

Como dá para mudar isso?
Já está mudando. Há pessoas que estão trabalhando muito para mudar políticas em nível municipal e que realmente têm ideias sobre como organizar o espaço urbano. Há encontros de pessoas em espaços públicos para debater suas vidas como cidadãos em uma democracia, em vez de serem meramente consumidores passivos na sociedade que os circunda. É esse tipo de mudanças lentas, passo a passo, que vai mudar o mundo. Leva um longo tempo. Mas as pessoas são impacientes, querem que as coisas aconteçam hoje, amanhã. 

O mercado abraçou a cultura da bicicleta. É possível ver bikes em anúncios de todo tipo de produto, de roupas a empreendimentos imobiliários. É uma oportunidade para a causa ou apenas uma distração?
Ambos. Mas, principalmente, é devido ao funcionamento normal da sociedade capitalista, que sempre tem sido pegar qualquer fenômeno humano interessante e reduzi-lo a commodities, para venda, tirando o seu significado. O fato de que a bicicleta se tornou uma tendência, para mostrar que você é jovem, elegante e inteligente, não é surpreendente. O mesmo ocorre na moda, na música.

A Massa Crítica em San Francisco
Foto: arquivo pessoal
Que país ou cidade é mais avançado em políticas pró-bicicleta?
Gosto muito de Copenhague (capital da Dinamarca), onde minha mãe nasceu. Já fui lá muitas vezes, e sempre me surpreendo positivamente com o fato de a bicicleta ser o principal meio de transporte, como os carros cedem lugar às bikes. Creio que uma em três viagens em Copenhague seja feita de bike, mesmo na neve. Minha avó pedalou lá até os 90 anos. Espero fazer o mesmo.

Em Porto Alegre, os ônibus estão em greve há mais de 10 dias. Como são basicamente o único meio de transporte coletivo, a população está sofrendo muito. O que isso nos diz sobre planejamento urbano?
Minha reação normal a uma greve de transporte é de que ela seria mais eficiente se os grevistas continuassem a trabalhar, mas não cobrassem as passagens. Assim, teriam toda a população ao lado deles, e o serviço continuaria sendo prestado. Do ponto de vista de políticas públicas, deveria aumentar a oferta de serviços compartilhados, fora da lógica do mercado e do dinheiro. Isso não virá do governo, tem de vir de baixo. Sempre espero coisas novas das pessoas comuns, não do governo.

Desde o atropelamento da Massa Crítica, três anos atrás, e com os protestos do ano passado, fomos confrontados por movimentos horizontais, sem líderes. Como entender e lidar com esse tipo de movimento?
A vantagem do horizontalismo é que todos podem participar e que você consegue criatividade máxima vindo de baixo. Nem sempre funciona bem, às vezes pode ser terrivelmente ineficiente, não é a melhor resposta para tudo o tempo inteiro. Mas, em geral, deveríamos ir nessa direção o máximo que pudermos. Movimentos horizontais também oferecem muita flexibilidade: podem mudar de forma e comportamento muito rapidamente. Os governos geralmente não podem fazer isso, porque são sistemas hierárquicos antiquados e obsoletos, e eles não podem encarar isso sem ser com força bruta. Mas o horizontalismo produz também muito caos para todos, inclusive para quem participa. Mas é um período de aprendizado, e fenômenos horizontais devem acontecer mais e mais. 

A cultura da bike originou fanzines, oficinas comunitárias e a Massa Crítica. Esses são exemplos do que o senhor chama de Nowtopia (a utopia do agora, em tradução livre). Qual é a ideia por trás desse conceito?
A maior parte do trabalho que as pessoas fazem é uma perda de tempo. Elas deveriam parar. Bancos, seguros, mercado imobiliário, publicidade, produção de armas militares e de produtos que estragam a cada seis meses. Mas as pessoas continuam tendo de ganhar dinheiro para pagar as contas. Então, temos a vida dividida entre o trabalho que precisamos fazer para sobreviver na sociedade capitalista e o trabalho que realmente queremos fazer, o que define quem somos. Eu trabalhava em um banco quando era mais jovem. Olhava ao meu redor e via pessoas muito semelhantes, mas que tinham ideias diferentes sobre quem cada um era. Não éramos bancários, apenas estávamos trabalhando em um banco por algum tempo para ganhar dinheiro. Percebemos que as pessoas, quando não estão em seus empregos, estão trabalhando muito em outra coisa, geralmente criativa. 

Quais são outros exemplos?
Outro exemplo são as hortas urbanas. Pessoas começaram a cultivar alimentos orgânicos perto de casa em áreas desocupadas. Isso muda tudo: a relação delas com o ecossistema em que vivem, o entendimento da ciência do solo, da luz do sol e da água, de uma forma que não poderiam entender se lessem uma revista ou um livro. Outro exemplo é o mundo do software. Muitas das coisas que mais gostamos na vida moderna dos computadores são de graça e foram feitas por pessoas que estavam mexendo com softwares fora da lógica de seus empregos. Basicamente, o conceito da Nowtopia é de as pessoas tirarem seu tempo e seu conhecimento do mercado. Assim, estão construindo a fundação para a vida pós-capitalismo, o que é uma necessidade urgente.

Todo mundo tem esse potencial? Vemos muitas pessoas que não fazem esse tipo de atividade extra.
É uma minoria na sociedade, mas uma minoria importante – estão em cada vez mais partes do mundo. A melhor forma para entender é com um slogan antigo: “É a semente do novo mundo crescendo na cápsula do velho mundo”. É uma visão utópica, que nunca aconteceu em lugar algum. Se poderá acontecer? Acho que pode, creio que essas são ações de pessoas indo nessa direção. Mas há forças poderosas que farão tudo para minar esses esforços. Temos um longo caminho pela frente, precisamos do que chamo de “paciência radical”.

O senhor diz que o conceito de classe média é um mito. Por quê?
Estou interessado no significado mais profundo de classe, que foi descrito por (Karl) Marx em O Capital, em que há essencialmente duas classes: a dominante e a dominada. Por isso, a classe média é um mito. E é um mito importante, porque faz com que as pessoas não pensem sobre o seu trabalho. A classe média, em sua maioria, está mais interessada no que pode comprar ou possuir. O problema real é que não temos democracia na economia. É sobre isso que falamos em relação à classe média: é uma sociedade em que as pessoas abdicaram da responsabilidade de participar das escolhas sociais, políticas e democráticas sobre o que produzimos e como produzimos. Você pode se identificar como quiser, mas o fato é que precisa se vender ao seu emprego, mesmo se for bem pago. A maioria das pessoas de “classe média” que conheço são apenas proletários com uma boa renda.

Milhões de brasileiros foram às ruas para protestar contra “tudo que está aí”. O que o senhor acha que os protestos indicam?
Fiquei muito feliz com o que aconteceu no Brasil e na Turquia, em fenômenos muito similares. Toda a estrutura da sociedade estava em xeque. Há uma certa transferência de energia para um movimento de oposição social que explode de repente em diferentes lugares de forma que nunca vimos antes. E é apenas o começo. As pessoas aprenderam muito naqueles dias na rua, sobre como se organizar, que tipos de problemas aparecem e como enfrentá-los. Não resolveram todos os problemas e não terminaram a revolução, ela ainda está dormente. Mas isso mostra que ela pode acordar em um período curto de tempo. Eu realmente acho que isso está relacionado com a Nowtopia e ao entendimento de que a vida pode ser muito boa – não apenas para os ricos, mas para todos. 

O senhor não acha que, sem a busca pelo dinheiro, não haveria avanços tecnológicos? Ou isso não importa?
Temos mais tecnologia do que precisamos. E muitas vezes trata-se de usar menos tecnologia, e não mais. Precisamos melhorar nosso trabalho em reciclar o que já produzimos, e não criar esses lixões por todos os lados. E haveria avanços tecnológicos em um mundo sem dinheiro, claro. Porque ainda haveria paixão pela ciência, pela inovação. É um prazer pessoal, competitivo, de tentar criar algo novo, legal, que facilitaria a vida. Também há o reconhecimento social que vem disso. 

Carlsson em um de seus roteiros de bike
Foto: arquivo pessoal
O senhor é autônomo há muitas décadas e participa de vários projetos comunitários. De onde vem a sua renda? Como o senhor disse, ainda precisamos pagar as contas...
É verdade. Eu ganho um pouco de dinheiro de várias fontes. Uma pequena parte da minha renda vem de trabalhos com design e layout de livros. Ganho um pouco de dinheiro no meu projeto histórico, Shaping San Francisco. Ganho também para dar aulas – estou lecionando em uma universidade local, San Francisco Art Institute. Também ganho um pouco de dinheiro (bem pouco) escrevendo artigos. Entre todas essas coisas, ganho apenas o suficiente para sobreviver. 

Quando o senhor resolveu viver assim?
Nunca vivi de outra forma. Tive empregos em bancos e outros trabalhos temporários nos anos 1980. Depois disso, nunca mais tive um emprego, sempre tive meus pequenos negócios. Mas muitos dos meus trabalhos fiz de graça. Sempre ganhei apenas o suficiente. Minha meta sempre foi ter um custo de vida muito baixo. Consigo isso com um aluguel barato e por não ter um carro. Carros consomem grandes quantias de dinheiro. 

Que conselhos o senhor dá a quem quer se libertar da vida que vive?
É fácil. Não acontecerá tudo ao mesmo tempo, mas você deve dar passos na direção certa. Faça o que você ama, mas não por dinheiro. Tente minimizar o tempo que você gasta fazendo dinheiro e maximize o tanto da sua vida que é de graça. Você estará fazendo coisas com as quais realmente se importa. Saiba que a verdadeira riqueza não é dinheiro, são relacionamentos. São pessoas que estão na sua vida e cuidam de você, e das quais você toma conta. Porque o dinheiro some em minutos. Se você começar a mudar a sua maneira de compreender a riqueza e a vida, descobrirá que é mais rico do que pensava, e que poderá ter muito mais se perseguir essa lógica.
Foto: divulgação

O LIVRO
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Reportagem por  Priscila De Martini
Fonte: ZH online, 08/02/2014

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