O historiador americano divide o tempo entre vários projetos comunitários
e viagens para divulgar a cultura da bicicleta
Foto:
Pamela Palma / Divulgação
Um dos fundadores da Massa Crítica, americano estará em Porto Alegre neste fim de semana para o lançamento do livro "Nowtopia – Iniciativas que Estão Construindo o Futuro Hoje"
Prestes a completar 57 anos, o americano Chris Carlsson
é conhecido e admirado por ciclistas e ativistas do mundo inteiro. Duas
décadas atrás, ajudou a criar na cidade onde mora, San Francisco, um
movimento que se expandiu para mais de 400 cidades em cinco continentes,
inclusive Porto Alegre: a Massa Crítica, que reúne um
grupo de centenas de ciclistas todas as últimas sextas-feiras do mês
para uma pedalada. Fenômeno, aliás, que muita gente ainda tenta
compreender tanto tempo depois.
Carlsson viaja pelo mundo com certa frequência para falar sobre a cultura da bike.
Em 2012, esteve na capital gaúcha durante o 1º Fórum Mundial da
Bicicleta, criado pela comunidade ciclística do Estado para lembrar o atropelamento de integrantes da própria Massa Crítica, um ano antes, no bairro Cidade Baixa.
A bicicleta é apenas uma parte da filosofia de vida do americano.
Historiador, designer e escritor de livros e artigos, professor
universitário, criador e diretor de um projeto de arquivo histórico (Shaping San Francisco) e, algumas vezes por ano, guia de roteiros ciclísticos pela cidade californiana, Carlsson tem um currículo de invejar (e de intrigar, também).
Apesar de tantos trabalhos, o americano fala, com orgulho, que ganha
apenas o suficiente para sobreviver. O porquê da vida simples e
minimalista ele explica em detalhes no livro Nowtopia — Iniciativas que Estão Construindo o Futuro Hoje
(320 páginas, R$ 39). A obra, que apresenta uma alternativa ao mundo
capitalista, acaba de receber uma versão em português, pela
porto-alegrense Tomo Editorial.
Neste fim de semana, Carlsson volta a Porto Alegre para divulgar o
livro. Antes de embarcar, conversou com Zero Hora por telefone, na
quinta-feira passada, durante 50 minutos, sobre a Massa Crítica e sobre
como as pessoas podem ser mais felizes vivendo com menos.
Qual foi o contexto em que a Massa Crítica surgiu?
No início dos anos 1990, na região em que eu morava em San Francisco,
não havia muita gente andando de bicicleta. Mas havia alguns de nós, e
nos reuníamos socialmente, para beber cerveja, fumar maconha e conversar
sobre coisas como política e ciclismo. Depois de cerca de um ano, uma
ideia apareceu nesses bate-papos, de que deveríamos fazer algo novo. E
essa nova ideia foi de que deveríamos nos reunir em um determinado local
e pedalar para casa. Enchendo a rua de bicicletas, não deixaríamos
lugar para os carros. A ideia era de que nos tornaríamos o trânsito, e
que o ritmo seria determinado por nós. A primeira vez foi em setembro de
1992, quando apareceram umas 50 pessoas. Um mês depois, foram 75
pessoas, e um mês depois, cento e poucas pessoas, e não parou de
crescer, até que, um ano depois, éramos mil pessoas. Agora, já se
passaram 21 anos, e as pessoas ainda participam. Geralmente, centenas –
às vezes, milhares.
Integrantes da Massa Crítica em 1992Foto: arquivo pessoal
Havia um propósito além desse?
Nunca realmente teve um propósito além de identificar outros
ciclistas e nos encontrar em um lugar público. Não há uma organização –
chamamos de “coincidência organizada” –, e não há estrutura formal, é só
aparecer em uma bicicleta que você é um membro igual a todos os demais.
Era muito empolgante fazer parte disso, então as pessoas começaram a
fazer o mesmo em outros lugares. Era uma amostra de uma nova vida que
poderia existir na cidade.
O que mudou nos 21 anos de Massa Crítica? Ela ficou mais politizada?
Teve bastante política no começo, mas muitas das pessoas que
apareciam não se importavam com isso. Nos Estados Unidos, as pessoas
acham que política é algo que acontece a cada quatro anos. Fora isso,
acham que nada é político. Eu acho que política está em tudo que
fazemos, qualquer conversação ou interação que se tenha com outro ser
humano. Eu pus esses argumentos em panfletos que entregamos às pessoas
na Massa Crítica. Pela primeira vez em anos, tivemos muitas discussões e
debates sobre política, filosofia, então uma cultura muito intensa
surgiu. Acho que por isso ela teve tanto poder para ir além de San
Francisco. Na Itália, por exemplo, o evento é muito político, assim como
em outras partes do mundo. A Massa é basicamente uma incubadora, um
espaço em que as coisas começam a acontecer.
A população de Porto Alegre, em geral, conheceu a Massa
Crítica há três anos, quando um motorista atropelou ciclistas que
participavam do evento. E, de fato, há muita gente que acredita que a
Massa é composta de ciclistas que apenas querem atrapalhar a vida das
outras pessoas. O que o senhor acha disso?
A mídia distorceu completamente o que acontecia. No passado, diziam
que a Massa Crítica tratava-se, basicamente, de bloquear o trânsito, de
confrontar, um movimento raivoso, anarquista e violento. Se você for
pensar, há 20 anos tem ocorrido essa pedalada em massa em centenas de
cidades do mundo. Com a exceção de Porto Alegre, quase não houve
incidentes com violência. O primeiro pressuposto na sociedade é de que
quem dirige um carro tem o direito da rua, e que todos os demais
deveriam sair do caminho, porque o motorista do carro é o dono da rua.
Isso não é verdade, mas é a presunção feita na nossa sociedade baseada
no automóvel. E a Massa Crítica é uma resposta política a isso. Não, a
rua é um espaço público, que todos podem usar. Aliás, provavelmente não
deveríamos usá-la para transporte todo o tempo.
Como dá para mudar isso?
Já está mudando. Há pessoas que estão trabalhando muito para mudar
políticas em nível municipal e que realmente têm ideias sobre como
organizar o espaço urbano. Há encontros de pessoas em espaços públicos
para debater suas vidas como cidadãos em uma democracia, em vez de serem
meramente consumidores passivos na sociedade que os circunda. É esse
tipo de mudanças lentas, passo a passo, que vai mudar o mundo. Leva um
longo tempo. Mas as pessoas são impacientes, querem que as coisas
aconteçam hoje, amanhã.
O mercado abraçou a cultura da bicicleta. É possível ver
bikes em anúncios de todo tipo de produto, de roupas a empreendimentos
imobiliários. É uma oportunidade para a causa ou apenas uma distração?
Ambos. Mas, principalmente, é devido ao funcionamento normal da
sociedade capitalista, que sempre tem sido pegar qualquer fenômeno
humano interessante e reduzi-lo a commodities, para venda, tirando o seu
significado. O fato de que a bicicleta se tornou uma tendência, para
mostrar que você é jovem, elegante e inteligente, não é surpreendente. O
mesmo ocorre na moda, na música.
A Massa Crítica em San Francisco
Foto: arquivo pessoal
Foto: arquivo pessoal
Que país ou cidade é mais avançado em políticas pró-bicicleta?
Gosto muito de Copenhague (capital da Dinamarca), onde minha mãe
nasceu. Já fui lá muitas vezes, e sempre me surpreendo positivamente com
o fato de a bicicleta ser o principal meio de transporte, como os
carros cedem lugar às bikes. Creio que uma em três viagens em Copenhague
seja feita de bike, mesmo na neve. Minha avó pedalou lá até os 90 anos.
Espero fazer o mesmo.
Em Porto Alegre, os ônibus estão em greve há mais de 10 dias.
Como são basicamente o único meio de transporte coletivo, a população
está sofrendo muito. O que isso nos diz sobre planejamento urbano?
Minha reação normal a uma greve de transporte é de que ela seria mais
eficiente se os grevistas continuassem a trabalhar, mas não cobrassem
as passagens. Assim, teriam toda a população ao lado deles, e o serviço
continuaria sendo prestado. Do ponto de vista de políticas públicas,
deveria aumentar a oferta de serviços compartilhados, fora da lógica do
mercado e do dinheiro. Isso não virá do governo, tem de vir de baixo.
Sempre espero coisas novas das pessoas comuns, não do governo.
Desde o atropelamento da Massa Crítica, três anos atrás, e
com os protestos do ano passado, fomos confrontados por movimentos
horizontais, sem líderes. Como entender e lidar com esse tipo de
movimento?
A vantagem do horizontalismo é que todos podem participar e que você
consegue criatividade máxima vindo de baixo. Nem sempre funciona bem, às
vezes pode ser terrivelmente ineficiente, não é a melhor resposta para
tudo o tempo inteiro. Mas, em geral, deveríamos ir nessa direção o
máximo que pudermos. Movimentos horizontais também oferecem muita
flexibilidade: podem mudar de forma e comportamento muito rapidamente.
Os governos geralmente não podem fazer isso, porque são sistemas
hierárquicos antiquados e obsoletos, e eles não podem encarar isso sem
ser com força bruta. Mas o horizontalismo produz também muito caos para
todos, inclusive para quem participa. Mas é um período de aprendizado, e
fenômenos horizontais devem acontecer mais e mais.
A cultura da bike originou fanzines, oficinas comunitárias e a
Massa Crítica. Esses são exemplos do que o senhor chama de Nowtopia (a
utopia do agora, em tradução livre). Qual é a ideia por trás desse
conceito?
A maior parte do trabalho que as pessoas fazem é uma perda de tempo.
Elas deveriam parar. Bancos, seguros, mercado imobiliário, publicidade,
produção de armas militares e de produtos que estragam a cada seis
meses. Mas as pessoas continuam tendo de ganhar dinheiro para pagar as
contas. Então, temos a vida dividida entre o trabalho que precisamos
fazer para sobreviver na sociedade capitalista e o trabalho que
realmente queremos fazer, o que define quem somos. Eu trabalhava em um
banco quando era mais jovem. Olhava ao meu redor e via pessoas muito
semelhantes, mas que tinham ideias diferentes sobre quem cada um era.
Não éramos bancários, apenas estávamos trabalhando em um banco por algum
tempo para ganhar dinheiro. Percebemos que as pessoas, quando não estão
em seus empregos, estão trabalhando muito em outra coisa, geralmente
criativa.
Quais são outros exemplos?
Outro exemplo são as hortas urbanas. Pessoas começaram a cultivar
alimentos orgânicos perto de casa em áreas desocupadas. Isso muda tudo: a
relação delas com o ecossistema em que vivem, o entendimento da ciência
do solo, da luz do sol e da água, de uma forma que não poderiam
entender se lessem uma revista ou um livro. Outro exemplo é o mundo do
software. Muitas das coisas que mais gostamos na vida moderna dos
computadores são de graça e foram feitas por pessoas que estavam mexendo
com softwares fora da lógica de seus empregos. Basicamente, o conceito
da Nowtopia é de as pessoas tirarem seu tempo e seu conhecimento do
mercado. Assim, estão construindo a fundação para a vida
pós-capitalismo, o que é uma necessidade urgente.
Todo mundo tem esse potencial? Vemos muitas pessoas que não fazem esse tipo de atividade extra.
É uma minoria na sociedade, mas uma minoria importante – estão em
cada vez mais partes do mundo. A melhor forma para entender é com um
slogan antigo: “É a semente do novo mundo crescendo na cápsula do velho
mundo”. É uma visão utópica, que nunca aconteceu em lugar algum. Se
poderá acontecer? Acho que pode, creio que essas são ações de pessoas
indo nessa direção. Mas há forças poderosas que farão tudo para minar
esses esforços. Temos um longo caminho pela frente, precisamos do que
chamo de “paciência radical”.
O senhor diz que o conceito de classe média é um mito. Por quê?
Estou interessado no significado mais profundo de classe, que foi
descrito por (Karl) Marx em O Capital, em que há essencialmente duas
classes: a dominante e a dominada. Por isso, a classe média é um mito. E
é um mito importante, porque faz com que as pessoas não pensem sobre o
seu trabalho. A classe média, em sua maioria, está mais interessada no
que pode comprar ou possuir. O problema real é que não temos democracia
na economia. É sobre isso que falamos em relação à classe média: é uma
sociedade em que as pessoas abdicaram da responsabilidade de participar
das escolhas sociais, políticas e democráticas sobre o que produzimos e
como produzimos. Você pode se identificar como quiser, mas o fato é que
precisa se vender ao seu emprego, mesmo se for bem pago. A maioria das
pessoas de “classe média” que conheço são apenas proletários com uma boa
renda.
Milhões de brasileiros foram às ruas para protestar contra “tudo que está aí”. O que o senhor acha que os protestos indicam?
Fiquei muito feliz com o que aconteceu no Brasil e na Turquia, em
fenômenos muito similares. Toda a estrutura da sociedade estava em
xeque. Há uma certa transferência de energia para um movimento de
oposição social que explode de repente em diferentes lugares de forma
que nunca vimos antes. E é apenas o começo. As pessoas aprenderam muito
naqueles dias na rua, sobre como se organizar, que tipos de problemas
aparecem e como enfrentá-los. Não resolveram todos os problemas e não
terminaram a revolução, ela ainda está dormente. Mas isso mostra que ela
pode acordar em um período curto de tempo. Eu realmente acho que isso
está relacionado com a Nowtopia e ao entendimento de que a vida pode ser
muito boa – não apenas para os ricos, mas para todos.
O senhor não acha que, sem a busca pelo dinheiro, não haveria avanços tecnológicos? Ou isso não importa?
Temos mais tecnologia do que precisamos. E muitas vezes trata-se de
usar menos tecnologia, e não mais. Precisamos melhorar nosso trabalho em
reciclar o que já produzimos, e não criar esses lixões por todos os
lados. E haveria avanços tecnológicos em um mundo sem dinheiro, claro.
Porque ainda haveria paixão pela ciência, pela inovação. É um prazer
pessoal, competitivo, de tentar criar algo novo, legal, que facilitaria a
vida. Também há o reconhecimento social que vem disso.
Carlsson em um de seus roteiros de bike
Foto: arquivo pessoal
Foto: arquivo pessoal
O senhor é autônomo há muitas décadas e participa de vários
projetos comunitários. De onde vem a sua renda? Como o senhor disse,
ainda precisamos pagar as contas...
É verdade. Eu ganho um pouco de dinheiro de várias fontes. Uma
pequena parte da minha renda vem de trabalhos com design e layout de
livros. Ganho um pouco de dinheiro no meu projeto histórico, Shaping San
Francisco. Ganho também para dar aulas – estou lecionando em uma
universidade local, San Francisco Art Institute. Também ganho um pouco
de dinheiro (bem pouco) escrevendo artigos. Entre todas essas coisas,
ganho apenas o suficiente para sobreviver.
Quando o senhor resolveu viver assim?
Nunca vivi de outra forma. Tive empregos em bancos e outros trabalhos
temporários nos anos 1980. Depois disso, nunca mais tive um emprego,
sempre tive meus pequenos negócios. Mas muitos dos meus trabalhos fiz de
graça. Sempre ganhei apenas o suficiente. Minha meta sempre foi ter um
custo de vida muito baixo. Consigo isso com um aluguel barato e por não
ter um carro. Carros consomem grandes quantias de dinheiro.
Que conselhos o senhor dá a quem quer se libertar da vida que vive?
É fácil. Não acontecerá tudo ao mesmo tempo, mas você deve dar passos
na direção certa. Faça o que você ama, mas não por dinheiro. Tente
minimizar o tempo que você gasta fazendo dinheiro e maximize o tanto da
sua vida que é de graça. Você estará fazendo coisas com as quais
realmente se importa. Saiba que a verdadeira riqueza não é dinheiro, são
relacionamentos. São pessoas que estão na sua vida e cuidam de você, e
das quais você toma conta. Porque o dinheiro some em minutos. Se você
começar a mudar a sua maneira de compreender a riqueza e a vida,
descobrirá que é mais rico do que pensava, e que poderá ter muito mais
se perseguir essa lógica.
O LIVRO
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Reportagem por Priscila De Martini
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