segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Os media que nos aspiram para a morte

Joaquim Azevedo*
 Imagem
A dita “sociedade da informação” é também a sociedade do encobrimento, do enviesamento e da des-informação e corresponde a uma poderosa máquina, mais ou menos lucrativa, que coloca os cidadãos diante de um filme que pouquíssimo lhes diz acerca do que se passa e que (mais do que tudo) cria acriticidade e hábitos perversos no modo de pensarmos o que realmente se passa à nossa volta. E de tal modo essa máquina é poderosa que nos desenvolve uma faculdade fundamental para quem não se deve pensar a si e aos outros, nem pensar o mundo em que está inserido: é uma gigantesca máquina de divertimento e de propagação do medo, travestida de “comunicação”; aspira-nos para fora da nossa realidade e fomenta a nossa capacidade de esquecer o (pouco que sabemos acerca do) que se passa e de fugir da nossa própria realidade, por vezes demasiado imprópria.

A imediatez substitui qualquer mediação, diz M. Augé. Comunica-se tudo e a todo o tempo; a comunicação constante e imediata torna o ambiente opressivo, irrespirável; mas o que se comunica na comunicação? O desastroso, o sangrento, a morte, os milhares de pontos de vista desconexos, a incapacidade de nos entendermos, o imediato, o live depressivo. 

O modo de olhar o mundo quase só pela negativa (pela desgraça que acontece, pela facada e pelo sangue, pelo roubo espetacular e pelo assalto violento, pela bomba que explodiu), que todos os dias preenche os telejornais e alguns jornais, corrompe a visão do mundo e marca violentamente um modo sombrio de estar no mundo, descrente da vida e das pessoas (o síndrome do “mal do mundo” de que hoje se fala ou a “psicologia do túmulo” (A alegria do Evangelho, nº 83) que nos faz uns “desencantados com cara de vinagre” (nº 84)), como diz tão assertivamente o Papa Francisco. 

E isso inscreve realmente no nosso exíguo espaço público um olhar negativo profundamente criador de significados e sentidos que nada interessam à vida, à solidariedade e ao bem comum. 

O tempo real substitui o espaço real, diz P. Virilio, e o simbólico, tão decisivo na relação humana, foge do espaço social, que se estiola num espaço de fragilidade, de inquietação, sem laços. A realidade é expulsa da comunicação quotidiana (ainda que seja por excesso de realismo!) e com ela somos expulsos nós mesmos: há cada vez menos lugar para nós neste mundo. Somos uma gente demasiado humana, somos escandalosamente humanos, somos demasiado presente e sonho, incerteza e mistério. E será mesmo possível e “politicamente correto” continuarmos a desejar um mundo para nós humanos, na nossa incomensurável diversidade?

Os medos são agora explorados à exaustão pelos media e isso faz com que o real, os casos concretos e as pessoas concretas quase não existam, são irreais, uma ficção, fazem parte do “empilhamento arbitrário de casos concretos”, que impregna a realidade de “uma atmosfera realmente opressora” M. Augé). O real só regressa quando regressar a relação e o mistério. Aqui e agora.

Mais, a nossa mente desenvolve um modo de pensar o mundo e a vida focado sobre o que de pior nele ocorre (bad news, good news; good news, no news). E este convívio e até comprazimento com o ódio, o sofrimento, a violência e a morte dos outros, feitos espetáculo arbitrário quotidiano, não nos estarão a tornar cada vez mais insensíveis ao que de melhor tem este mundo e à própria vida humana? Que é que valem as coisas maravilhosas que todos os dias acontecem no mundo e em Portugal? E em nós mesmos?
 -----------------------------
* Professor da Universidade Católica Portuguesa (Porto)
© Fonte: SNPC | 16.02.14

Nenhum comentário:

Postar um comentário