sábado, 22 de fevereiro de 2014

Roubar livros

ROSANA COELHO*
 
O filme A Menina que Roubava Livros revisita o Holocausto, período tenebroso da história mundial. Guiados por um narrador sui generis a Morte , adentramos o mundo de Liesel, cujo primeiro livro roubado é guardado como um tesouro secreto e inacessível, pois ela não sabe ler. Auxiliada pelo pai adotivo, inicia uma íntima relação com as palavras. Em tempos difíceis também para a literatura, a menina vai a um comício e observa inquieta o fogo consumir preciosas letras. Mais tarde, retorna e resgata um chamuscado livro. Nesse momento, é observada por uma mulher, dona de uma biblioteca onde a menina tem a oportunidade de ler alguns livros, até ser proibida de fazê-lo. O livro roubado no dia do comício sela a bonita amizade com Max, um jovem judeu escondido em sua casa. Max está muito doente e a menina busca, na leitura em voz alta ao seu lado, oferecer-lhe um sopro de vida. Terminada a leitura desse livro, Liesel retornará à biblioteca proibida, roubará e lerá outros livros até que o amigo volte a viver.

Aqui, o ato de roubar toma a dimensão de um ato político de primeira grandeza. Em meio à experiência totalitária, sustenta-se em uma ética que valoriza a vida do outro, faz da literatura o esteio de uma política que permite ao sujeito “ler o mundo” com suas palavras, como na bela cena em que Max, confinado no frio e impenetrável sótão, pede a Liesel que descreva, com suas palavras, como está o dia do lado de fora. A literatura, lembra Ana Maria Portugal, tem por característica “deformar” a linguagem: ela intensifica, condensa, reduz, amplia, inverte, em um processo de estranhamento e desautomação, no qual o cotidiano se torna “não-familiar”. O desejo de (re)inventar formas de vida que escapassem a um cotidiano em que predominava a fabricação de mortes aparece em uma das cenas finais. Nela, Liesel conta para um grupo de homens, mulheres e crianças, amontoados em um abrigo subterrâneo durante um bombardeio, uma história cujo fio condutor é a solidariedade e o desejo de viver. “As palavras são fonte de vida”, diz Max, ao presentear a menina com um livro em branco, no qual Liesel escreverá sua história.

Neste momento, em que o mundo convulsa sob fortes embates políticos, o reencontro com a experiência do Holocausto não nos deixa esquecer que a luta que travamos no terreno político é, sobretudo, a luta para desconformarmos linguagens petrificadas por poderes que impõem formas hegemônicas, insistem em perpetuar uma ética que desconhece a “incômoda” diferença que a presença do outro suscita. Em vários momentos do filme, o sinistro narrador nos diz que ninguém vive para sempre. Mas, diante do perene embate entre o desejo de democracia e a intolerância que se presentifica na eliminação do outro, nada mais oportuno que lembrar a potência da palavra como fonte de vida. Nada mais oportuno do que roubar livros.
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*Psicanalista
Fonte: ZH online, 22/02/2014
Imagem da Internet

Um comentário:

  1. Olá, eu estava procurando o link do artigo para publicá-lo no twitter e encontrei-o publicado em seu blog. Obrigado! Ficou bonita a formatação com cenas do filme. Parabéns pela iniciativa e manutenção do blog. Abraços. Rosana Coelho.

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