Eberth Vêncio*
Eu e boa parte dos cinéfilos no mundo inteiro ficamos estarrecidos
com a morte do excelente ator norte-americano Philip Seymour Hoffman,
supostamente por overdose de heroína (foi o que afirmou a polícia
nova-iorquina, tão acostumada às celebridades, suas ventas polvilhadas e
as veias espetadas com seringas). Assim que eu soube da notícia num
telejornal lembrei-me do surpreendente filme “Antes que o Diabo Saiba
que Você Está Morto” (2007), do também falecido diretor Sidney Lumet, no
qual Philip interpretou um homem perturbado, assolado pela bancarrota
financeira e pelo vício em drogas pesadas.
A combinação bombástica de fracassos profissionais e traumas
familiares profundos conduz o personagem de Philip a tramar um assalto
contra a loja dos próprios pais, com os quais mantinha um relacionamento
tenso e distante. O ataque dá em merda e o criminoso de aluguel
contratado para fazer o “serviço” acaba atirando e matando alguém. Ossos
do ofício, não fosse esse alguém a mãe do próprio contratante.
Recomendo que assistam ao filme de Lumet antes que o diabo saiba que
vocês preferem os besteiróis americanos e tupiniquins. E há tanto
esmegma escorrendo pelas telas de cinema ultimamente. Tá uma lástima.
Aturdido com a má notícia da morte precoce de Philip Seymour, eu
desandei a derrubar umas botijas de cerveja com amendoim salgado para
dentro do meu vazio estômago existencial. Por que, afinal de contas, o
ser humano usa drogas, sejam elas lícitas ou ilícitas, ao ponto de
conseguir um certo alívio, um grau, um pileque, um barato, uma
dependência químico-psicológica severa ao ponto do coração explodir?
Foi assim com o laureado ator americano. Foi assim com uma caravana
de outras estrelas do cinema, da música, do show business, enfim. É
assim com a legião de viciados incógnitos, pessoas comuns com hábitos e
dependências tão comuns que os têm conduzido a uma miséria para lá de
comum: a ruína da dignidade, o esfacelamento dos relacionamentos, o
isolamento, a associação ao crime, a autodestruição por overdose. Mudam
os atores, mas o roteiro do dramalhão permanece o mesmo.
De acordo com relatos de vozes interiores que falam aos meus ouvidos
nesta noite, mesmo antes de Jesus Cristo transformar água em vinho para
assegurar diversão e entretenimento aos convidados da sua mãe Maria, o
homem já usava drogas. Foi assim na pré-história — garantem tais vozes,
uma vez que, em priscas eras, ainda não havia observadores
internacionais da ONU, muito menos o jornalismo investigativo e a
literatura fantástica — quando os nossos ancestrais peludos mastigavam
propositadamente certas folhas da relva e começavam a enxergar
mastodontes de asas fosforescentes dentro das cavernas.
Por
que, ao longo da história (e da pré-história, eu já vos disse), o homem
insiste em buscar nos subterfúgios químicos injetáveis, aspiráveis e
deglutíveis as válvulas de escape ideais para sublimar, desligar-se da
dureza do cotidiano? De esconderijos e labirintos da mente humana,
entendo quase nada. Mesmo assim, após esforço enorme para vencer a
melancolia e a suave embriaguez do happy-hour, anotei — com a particular
tristeza dos pensadores — supostas justificativas plausíveis para se
embotar um cérebro.
Usei a parte de trás de uma caixa de rivotril vazia da minha avó (a
velhota não somente torna-se insuportável, como não consegue pegar no
sono, sem o adjutório milagreiro daquelas pilulazinhas) e fui listando
as prováveis causas, como quem fizesse uma lista de compras para o
supermercado: o prazer (a desenfreada saga humana em prol da profusão
das endorfinas), a dor (os traumas da infância, a violência doméstica, a
educação repressora, a tortura física dos pais ou de seus
irresponsáveis legais, a morte de entes queridos, e por aí segue o
enorme rol de adversidades), a revolta (os rebeldes com causa e sem
causa que fazem das moléculas verdadeiras palmatórias contra tudo e
contra todos, especialmente, contra esse mundo-de-meu-deus), o acaso
(gente que, do nada, por pura bobeira, resolve experimentar e acaba
tomando gosto pela coisa, ao ponto de virar experimento de pesquisa para
psicólogos, psiquiatras e cientistas imbuídos em decifrar por que é que
a gente é assim).
Como não coubessem mais palavras naquele minguado pedaço de papel
cartonado, encerrei ali mesmo as minhas anotações. Levantei-me:
vertigem! De certa forma cambaleante, liguei o aparelho de som da sala e
achei apropriado para o momento escutar “People are strange”, na voz
suave de Jim Morrisom, vocalista do The Doors, mais um na lista de
artistas que imergiram na loucura das sinapses bioquímicas artificiais e
acabou morto.
Ao ouvir a canção eu senti, finalmente, uma certa catarse, aquela
mesma que sempre me acompanha quando ouço alguma música que gosto muito.
Então os meus pensamentos fluíram até o jardim (felizmente, moro numa
casa com quintal, cachorro, bosta de cachorro na grama e muito ar
fresco), mesclaram-se ao odor gostoso, adocicado, e quase nauseabundo da
dama-da-noite. Em matéria de prazer, vocês sabem, uma coisa puxa outra:
logo, aproveitei que minha esposa saíra para fazer compras, e
mentalizei uma bela e perfumosa mulher num vestido branco dançando numa
praia em noite de lua cheia (Não se apoquente, querida. Tudo é
fantasia…). Não. Eu não estava bêbado. O que me fez flutuar daquele
jeito foi a música.
Concluí então que, se ensinassem esse tipo de coisa pra gente nas
escolas e dentro de casa, essa coisa de dar vazão à sensibilidade, de se
contentar com o mínimo possível, de se completar com as dádivas da
natureza, seria plenamente aceitável, concebível, preferível sublimar as
dores do mundo usando apenas os cinco sentidos.
Testar o simples, bastar-se com o óbvio, eis o que interessaria de
fato: ouvir boa música, mirar do alto a Baía da Guanabara num dia de
sol, comer pudim de leite condensado como sobremesa, inspirar a
fragrância gostosa da dama-da-noite, sentir o toque da sua pele enquanto
dançássemos de rostos colados. Uau! Será que exagerei na dose de poesia
e de acordes dissonantes?
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* Escritor e médico
Ilustração: pintura de Richard Schreiner
Fonte: http://www.revistabula.com/2083-por-que-e-mesmo-que-gente-usa-drogas/
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