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O tempo, esse grande escultor, escreveu uma vez Marguerite Yourcenar: fórmula lapidar que dá conta de como o seu passar nos forma e transforma dia-a-dia.
Somos em cada momento o que o tempo, ou a vida, como se preferir, faz de nós.
Eu não tinha este rosto de hoje, escreve Cecília Meireles (1901-1964) a abrir o seu poema Retrato,
e nele reflecte sobre a mudança em nós que o passar do tempo traz,
tantas vezes sem que nos apercebamos delas até que súbito o espelho da
verdade no-las impõe:
Eu não dei por esta mudança, / ... / — Em que espelho ficou perdida / a minha face?
Retrato
Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
— Em que espelho ficou perdida
a minha face?
Nas voltas da vida por vezes O tempo seca a beleza, belo verso com que Cecília Meireles abre o poema Canção do Amor-Perfeito. Ao lê-lo, na sua concisa e bela sinceridade fazemos o percurso do seu passar:
O tempo seca a saudade,/ ... / Deixa algum retrato, apenas,
O tempo seca o desejo / e suas velhas batalhas.
Canção do Amor-Perfeito
O tempo seca a beleza,
seca o amor, seca as palavras.
Deixa tudo solto, leve,
desunido para sempre
como as areias nas águas.
O tempo seca a saudade,
seca as lembranças e as lágrimas.
Deixa algum retrato, apenas,
vagando seco e vazio
como estas conchas das praias.
O tempo seca o desejo
e suas velhas batalhas.
Seca o frágil arabesco,
vestígio do musgo humano,
na densa turfa mortuária.
Esperarei pelo tempo
com suas conquistas áridas.
Esperarei que te seque,
não na terra, Amor-Perfeito,
num tempo depois das almas.
Retrato pertence ao livro Viagem de 1939, e livro da sua consagração como poeta. Canção do Amor-Perfeito íntegra o livro Retrato Natural publicado em 1949.
Transcrevi a partir da edição portuguesa da Antologia Poética, escolha de Cecília Meireles em 1963 e publicada pela primeira vez a seguir à morte da poetisa.
O retrato da rapariga que reflete depois da leitura foi pintado pelo alemão Johann Georg Meyer (1813-1880).
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Fonte: http://viciodapoesia.com/2014/02/20/o-tempo-seca-a-beleza-dois-poemas-de-cecilia-meireles/
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