domingo, 9 de fevereiro de 2014

Sobre O rio que não passa

Marco Albertim *

Vinte e sete poetas, nem todos improvisadores ou violeiros; mas versejadores, sonetistas. Cada um com o seu traço. Há os de espinhaço duro, como o veterano Dedé Monteiro, militante do verso e mecenas de novatos. Com o olho atento na aridez do sertão, tasca:


             (...)

             só sairá desse rolo

             se o povo que não é tolo

             botar a mão no tijolo

             da construção do país


Mariana Teles não tem espinhaço duro, é viçosa. O pai, Valdir Teles, já deitou o costado poético na França, Bélgica, Itália e Suíça, junto com o não menos tarimbado Ivanildo Vila Nova.

Inda que não enxergue a controvérsia que cerca a opção do útero pelo aborto, pinta-o, fria, com os caracteres do ato:

              Um riacho de dores desaguando

              de um útero de mãe que ceifa vida

              vira o ventre uma carne poluída

              quando o sangue da morte está jorrando,

              sangria da alma despejando o remorso

              na cruz da hipocrisia, uma vida que vinha

              e nem sabia, que o caráter da mãe vivia morto,

             na cascata das dores do aborto,

             jorra o sangue que cheira a covardia

O rio que não passa é livro que tem doze autores, entre pesquisadores, coordenação, transcrição e revisão de texto, fotografia e tratamento de imagens. Redação e edição são do jornalista Inácio França; carece dizer que a redação ainda patina entre a ingenuidade e o modo piegas, por certo resultantes da fascinação acrítica do autor. Tuca Siqueira, fotógrafa, outra vez se mostra documentarista de olho na minúcia plástica.

Os poetas não patinam, têm o juízo prenhe de sentimentos, na mira do leito baldio do Rio Pajeú. No livro, os nomes não se seguem conforme a grandeza de cada um; surgem conforme a espontaneidade de seus versos. Daqui, no entanto, é forçoso se deixar cegar pela cintilação de cada frase; pela prosa doce e nada piegas de Marluce Freire, de Carnaíba, cortada pelo leito seco do Rio Pajeú. Faz de conta que chove:

            Dona Maria não sai à porta,

            na rua, sem ela,

            as novidades envelhecem,

            ela corre com as bacias às biqueiras

            (...)

            A roseira, na chuva,

           perde as pétalas, caídas ao chão,

           a terra bebe água perfumada

Ao todo, vinte linhas livres, passos inconfessos na trilha de João Cabral de Melo Neto. Dá-se conta, Marluce, de que nela pulsa a dialética do olhar sem rebuços? Quem escreve, como ela, que -

           A janela

          E o coração,

          Melhor mantê-los abertos...

        - não desperdiça energia na escolha por um sentimento mesquinho.



"(...) Difícil é botar miolo - quando a casca não ajuda." A dedução é de Zé Adalberto Ferreira, de Itapetim, e serve para o sertão da jurema seca, e para os homens no choque inevitável do dia a dia. Há quem o compare a Dedé Monteiro. Não se arrisca a tanto, inda que não hesite em constatar que

          (...) A Poesia e o Rio

          Nasceram do mesmo parto

         (...) Comeu da mesma iguaria

          Bebeu da mesma cabaça

          Por onde o Pajeú passa

          Dissemina a poesia

No Sítio Riachão, vive Anita Catota. Septuagenária, doente, enxerga a São José do Egito ali perto, e repete assuntando o ermo de seu sítio:

        (...) vim aparar o sereno

         que o escuro derrama

        (...)


Ela, junto com Mocinha da Passira, romperam a hegemonia dos homens no ofício de improvisar.

"Um poeta fincou uma viola dentro do rio e, como bebiam dessa água do rio, todo mundo se tornou poeta." Quem diz é Arlindo Lopes, de São José do Egito. Poeta de verso farto, não o deixam competir em concursos, visto que é ele sempre o primeiro ganhador; admitem-no como jurado. Comparam-no a Augusto dos Anjos, ele evita, dizendo: "Eu simplesmente sou o mais ínfimo possível, o menor." Mas...

         "Quem tiver o seu medo de morrer

          Ou ainda sofrer claustrofobia

           É melhor convencer-se que algum dia

          Sua vida vai ter que não viver

          Fique atento pra ver como vai ser

          Se será igualmente como digo

          Sinta o frio gelar o seu umbigo

           Feche os olhos e abrace esse momento

          Vá além, muito além do pensamento

           E descanse na paz do novo abrigo"
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* Menção honrosa dos Prêmios Literários da Cidade do Recife, com o livro Um presente para o papa e outros contos. Integra as antologias de contos Recife conta o Natal e Panorâmica do conto em PE.
Fonte: http://www.vermelho.org.br/coluna.php?id_coluna_texto=5712&id_coluna=86

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