Demétrio Magnoli*
Democracia é o regime no qual governantes não podem tudo --e aí está o problema do Brasil, na opinião dele
O Santo Graal dos comunistas foi a URSS e seu sistema de "repúblicas
populares". As insurreições na Hungria (1956), na Tchecoslováquia (1968)
e na Polônia (1980) secaram o poço do encantamento. A queda do Muro de
Berlim e a implosão da URSS quebraram o cálice sagrado. No último quarto
de século, desorientados, os filhos do "socialismo real" empreendem a
busca por um novo Graal. Como tantos outros, Tarso Genro encontrou-o na
China (em "Uma perspectiva de esquerda para o Quinto Lugar", artigo
escrito numa língua estranha, longinquamente aparentada com o
português). As suas elucubrações teóricas não têm interesse intelectual,
mas merecem um exame político.
O governador do Rio Grande do Sul enxerga na experiência recente da
China uma inspiração para a marcha do Brasil rumo ao estatuto de
potência mundial. O que a China tem de especial? Um "sujeito político
(Partido-Estado)" que "cria o mercado e suas relações", num processo em
que "estas relações novas recriam o sujeito (Partido-Estado), que será
permanentemente outro". É isso, explica-nos, que falta ao Brasil: um
ente de poder capaz de reinventar a sociedade e guiar o povo até o
futuro.
Décadas atrás, um tanto tristonhos, incontáveis socialistas deploravam o
poder totalitário do Partido Comunista da URSS, mas o justificavam como
um mal necessário pois, no fim das contas, aquele era o motor político
da economia socialista. Genro, pelo contrário, não apela ao socialismo
(uma "fantasia histórica") para justificar o poder absoluto do
Partido-Estado: basta-lhe um horizonte "chinês" de crescimento econômico
e progresso social. E a democracia? A China triunfa graças a um "regime
político não democrático para os nossos olhos", ensina o líder petista,
reproduzindo os argumentos oficiais do Partido Comunista Chinês, que
justifica a tirania pela invocação ritual da cultura e da tradição.
A democracia é o regime no qual os governantes não podem tudo --e aí
está o problema do Brasil, na opinião de Genro. Na sua descrição, o
"mercado" malvado sabota a redução dos juros, a abominável "grande
imprensa" bloqueia o aumento do IPTU e os demoníacos "cronistas no
neoliberalismo abrigados na grande mídia" manipulam a opinião pública. A
expressão política de opiniões conflitantes e interesses divergentes
que nos acostumamos a chamar de democracia representa, aos olhos de
Genro, uma intolerável balbúrdia. É preciso, para libertar a "utopia
concreta presa com âncoras pesadas no fundo real da sociedade
capitalista", instaurar uma ordem nova na qual o sujeito da História (o
"Partido-Estado") possa conduzir a nação até o futuro redentor.
O "levantar âncoras", propõe Genro, encontra-se na convocação de "uma
nova Assembleia Nacional Constituinte no bojo de um amplo movimento
político inspirado pelas jornadas de junho", mas "com partidos à
frente". Esqueça, por um momento, que as "jornadas de junho" não seriam
as "jornadas de junho" se tivessem "partidos à frente". Nosso pequeno,
mas esperançoso, pretendente a Duce sonha com uma "marcha sobre
Brasília" liderada pelo partido que exerce o poder.
"Penso que as esquerdas no país devem abordar programaticamente estas
novas exigências para o futuro, já neste processo eleitoral". Genro sabe
perfeitamente que sua "utopia concreta" terá impacto nulo sobre a
campanha de Dilma, que continuará focada em firmar alianças com o PMDB, o
PP e o PSD, renovar os compromissos com as altas finanças e reforçar a
parceria com os "movimentos sociais" estatizados. O vinho de seu cálice
sagrado destina-se, exclusivamente, ao consumo interno do PT e de sua
área de influência militante: é um antídoto ideológico contra as
imprecações lançadas por correntes esquerdistas inquietas com o "giro à
direita" do lulismo. Mas serve, ainda, para iluminar o lado escuro da
alma do partido que nos governa.
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* Jornalista. Escritor. Colunista da Folha
Fonte: Folha online, 01/02/2014
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