«O facto de já existirem alguns casos especiais é
um precedente, mas não faz lei! É uma grande tentação nas questões
éticas generalizar as exceções: tomar um caso extraordinário e
legalizar a partir daí»,
considera o padre Vasco Pinto Magalhães.
Em entrevista publicada na edição mais recente do
semanário "Igreja Viva", da arquidiocese de Braga, o religioso critica o
projeto de lei sobre a coadoção e sustenta que «a moral não se faz
universalizando o caso excecional, emocional», pelo que se a legislação
for bem feita, então terá a «capacidade de ponderar os casos
particulares».
Nesta conversa, que transcrevemos integralmente,
o sacerdote jesuíta fala também das expectativas para o sínodo sobre a
família, marcado para outubro, e analisa os factos mais salientes dos
primeiros meses do pontificado do papa Francisco.
A Assembleia da República aprovou
recentemente uma proposta de resolução para um referendo sobre coadoção
e adoção de crianças por casais do mesmo sexo, depois da aprovação em
maio de um Projeto-Lei na generalidade. Que opinião nos pode dar sobre
este tema?
Sou contra o Projeto de Lei (da coadoção),
apresentado por um grupo de deputados ao Parlamento, por não me parecer
limpo, nem nos argumentos nem nos objetivos. Mas, sobretudo, porque o
superior interesse da criança e o amor por ela não o exigem.
O critério é a criança; o seu bem e não os
interesses dos adultos. Aliás, nos casais heterossexuais, embora exista
no Código Civil (art. 1975º) uma possibilidade legal de um “segundo
adotante”, ninguém anda a falar disso e nenhum verdadeiro padrasto ou
madrasta (que é o caso tipo!) deixará a criança, filha do outro, sem
afeto e cuidados.
Daí, me parece que aqui há mais uma
reivindicação do direito de adotar e a procura da satisfação do
estatuto de igualdade do que, realmente, um cuidado com a criança.
Ora, ninguém tem o direito de adotar, nem homo,
nem heterossexual... As crianças é que têm o direito a ter uma família
quanto possível equilibrada; direito a ser amadas e educadas. Por isso o
exame do adulto para adotar é exigente e não automático como este caso
parece pretender.
Por outro lado, é claro que uma vez que (a meu
ver muito errada e precipitadamente!) se quis igualar a relação
homossexual à hétero e se lhe deu a categoria e estatuto de casamento
(embora não formem, nem haja casal...), então a lei não tem por onde
fugir para não conferir as mesmas possibilidades e “direitos”. Esta é a
questão: o ponto de partida é que tem estado errado; como entender-se
numa base de desentendimento?
Contudo, é preciso repetir que adotar não é um
direito, mas mais um dever e uma capacidade reconhecida a alguns; nem
todos têm condições interiores e exteriores para proporcionar à criança
um caminho saudável de crescimento e identidade.
E também não é verdade, nem argumento, que todas
as crianças institucionalizadas estão mal e sem afeto, sendo,
portanto, automaticamente melhor entregá-las a uma pessoa
homossexual... juntando, por vezes, o argumento do “coitadinho/a”, não
pode ter filhos.
Aliás: 1º Há casais heterossexuais que querem e
podem, corretamente, adotar... 2º Não está nada provado que a falta da
figura masculina e feminina não seja importante e determinante. Este
Projeto de Lei argumenta que isso é cientificamente irrelevante. 3º
Isto não é um preconceito, como se acusa no tal Projeto. É um conceito
antropológico testado pela experiência: a homossexualidade é, no
mínimo, uma disfunção e uma desordem psicoafetiva. 4º Uma coisa é o
respeito pela pessoa homossexual e os seus direitos, outra é afirmar,
sem contradizer o que fica dito, que a legalização e
institucionalização do “casamento” homossexual é um retrocesso
civilizacional: aponta para um mundo sem futuro.
O papa Bento XVI alertou-nos para o
perigo da ditadura do relativismo e o impacto desta na democracia
ocidental, enquanto sistema político representativo, uma vez que um
grupo de deputados pode impor uma ética social na população que
representam. Aponta algumas iniciativas concretas para que a Igreja
ajude os seus fiéis a refletir, de um modo sustentado e segundo a ética
cristã, sobre este tema da coadoçao?
Aponto, sobretudo, a atitude de não baixar os
braços e refletirmos sobre estas questões de fundo, em que não basta
ter opiniões avulsas, mas também é preciso desmascarar as aparências e
perceber que aqui os direitos humanos vão no sentido da criança: a
criança tem direito a ter pai e mãe, de um modo equilibrado.
Ser católico não é ir no engodo de entrar na
batalha de opiniões de direita ou de esquerda, mas é, exatamente, ir ao
Evangelho e cultivar o pensamento crítico: algo que me parece estar a
faltar, por todo o lado… deixamo-nos envolver pelo “emotivismo” das
opiniões, pela regra da eficácia rápida, no subjetivismo do “eu cá acho
que…”, mas não se estuda as questões. É necessária uma atitude
pró-ativa e um pensamento crítico.
De resto, temos de estar atentos aos
acontecimentos e meditá-los, e formar uma consciência que leve à defesa
dos mais fracos e da família para que esta possa ser núcleo de uma
sociedade nova. O papa Francisco tem insistido nisso.
Em Igreja, oficialmente, a coadoção não sido tema presente até porque a questão estava pendente.
Todo este processo enferma de uma confusão
inicial: a da suposta igualdade do casamento heterossexual e da união
entre homossexuais. Este é que é o erro de base, ou pelo menos a
pretensão de base. Uma vez que isso foi legislado, e aconteceu neste
país, tudo ficou dependente dessa circunstância.
Aliás, no casamento (heterossexual) não se fala
de coadoção. Fala-se da possibilidade eventual de poder haver um
segundo adotante. Então parece que querem mais que um regime de
igualdade, um regime de exceção!
Com certeza que há problemas a resolver: mas a
coadoção, tal como entende o projeto de lei apresentado (que eu li e
considero ter uma estrutura muito ambígua e agressiva) não será o passo
para que se chegue já à adoção plena por “casais” homossexuais?
A verdade é que, se se admite o casamento dessas
pessoas, não há razão para impedir a adoção, nem há razão de fundo
para impedir a coadoção. Se é uma equivalência, o regime será igual.
A questão, para mim, é se essa união forma mesmo
uma Família. Ou brincamos com os conceitos! De qualquer modo a
preparação para a adoção deve ser exigente e criteriosa para dar à
criança o crescimento e a harmonia.
É preciso não esquecer que a maioria tem força,
mas não, necessariamente, a razão. Se for legalizado por uma votação
parlamentar impõe-se pelo peso da maioria; não quer dizer que tenha
razão.
Não creio que os partidos nos possam representar
em questões de consciência e ética pessoal. Percebo esta tentativa de
referendo – pode obedecer a manobras variadas – mas traz para a praça
pública uma questão que é mais que política e social.
Quem é a Assembleia para legislar sobre a vida
humana? Os direitos humanos não vão a votos. E os referendos têm o
perigo de fazer crer que o legal é, necessariamente, ético.
Contudo podem ter a vantagem de levar as
questões a toda a gente e lhes dar oportunidade de pensar. Neste âmbito
não posso alienar a consciência: os deputados que decidam por mim.
Quem ficou preocupado com a hipótese do referendo? Quem pretende, sem
mais, a igualdade plena de uniões, homo, hétero, etc? Onde estão as
crianças a sofrer por falta de coadoção?
Os direitos das minorias são para dar lugar às
minorias consideradas humanas, reconhecendo o bem que a sua diferença
traz. Não são para apadrinhar qualquer clube, nem para aplicar e impor
às maiorias. A minoria aqui são as crianças.
Um adulto nunca tem o direito a adotar: as
crianças é que podem ter o direito a ser adotadas. O adulto tem o dever
o adotar, se tiver condições para isso e se for bom para a criança.
Ninguém tem o direito a adotar!
A criança tem o direito a ter uma família. Já o
disse antes. Adotar não é um direito da maioria heterossexual que o
homossexual reivindique! O fragilizado, a criança “sem família” é que
tem o direito a que se lhe proporcione uma vida digna e enquadrada, e é
por isso que os exames para a adoção devem ser exigentes.
O facto de já existirem alguns casos especiais é
um precedente, mas não faz lei! É uma grande tentação nas questões
éticas generalizar as exceções: tomar um caso extraordinário e
legalizar a partir daí.
Por exemplo, o do aborto no caso, gravíssimo, de
uma menina de 14 anos que fica grávida do pai! Então, faz-se a “lei”:
as menores podem (devem) abortar! A moral não se faz universalizando o
caso excecional, emocional. Se as leis forem bem feitas terão a
capacidade de ponderar os casos particulares.
Mas a tentação emocional do “coitadinho” leva a
uma moral relativista, uma moral “de situação”. Não é lei, são casos!
Outra coisa é a moral “em situação”, capaz de reconhecer os casos
concretos e perceber que aí pode haver, não apenas uma exceção, mas
outra lei que cruza com a primeira e a redimensiona.
Os raciocínios éticos de Jesus estão cheios
disso: ele não vai contra a lei, introduz outras leis que relativizam
as primeiras. Introduz a lei do amor, introduz a lei da justiça...
Voltando à coadoção. É uma conversa muito
difícil porque o ponto de partida não é comum: estamos a querer chegar
ao consenso quando o ponto de partida é diferente; e por isso será
sempre uma conversa de surdos. É esta a dificuldade.
Quem lê o projeto de lei apresentado vê que há
ali coisas que são afirmações gratuitas e agressivas. Por exemplo: quem
não pensa assim é preconceituoso!
Afirma-se também que a ciência provou que não há
problema nenhum para as crianças terem dois pais ou duas mães... Ora,
se o ponto de partida dos preponentes é este – que está por provar! –, é
este que se deve discutir.
O problema é a paridade e a igualdade entre o
dito casamento entre dois homens ou duas mulheres e o casamento entre
um homem e uma mulher. Tanto faz?! É igualmente casamento? Eu digo
redondamente que não é, basta olhar!
Outra coisa é quererem ter o estatuto de união,
de quererem viver juntos, e que isso lhes seja respeitado – com
certeza! Agora, dar o nome errado às coisas, introduz a confusão. Ali
não há casal nem acasalamento. Tem de se lhe dar outro nome: união de
facto, direito a viver juntos, direito a comunhão de vida, etc. E como
esta questão não está resolvida nem se pode resolver porque já foi
legalizada, temos uma conversa quase impossível.
Por sinal, aproxima-se o Sínodo
extraordinário sobre a Família, convocado pelo papa Francisco. Que
poderemos esperar deste Sínodo?
Eu espero um arejamento! Um arejamento de
tensões, um descobrir novos horizontes, um pouco como este papa tem
feito, procurando que a Igreja se coloque nessa atitude. Faz-me lembrar
o papa João XXIII: quando lhe perguntaram o porquê de um Concílio, ele
abriu a janela e disse: precisamos de ar fresco.
Concretizando mais, acho que deste Sínodo poderá
vir uma maior integração das pessoas de boa vontade, que algumas vezes
se sentem marginalizadas e são pessoas de fé.
Pode haver um maior diálogo e “mais lugar” para
todos sem perder a exigência. Muitas vezes se confunde o diálogo e a
tolerância com permissividade. Temos de saber coordenar bem a exigência
com a tolerância. Tolerância não é permissividade. Perceber que a
Igreja não está no mundo para julgar, mas para salvar, como este papa
tem dito.
Haver um novo fôlego para as famílias, e uma
vontade nova de lutar para que a família possa sair deste medo: medo de
ter filhos, medo de não ter futuro... Que venha alguma coisa que ajude
a família a não ter medo de ser família: por razões de política, de
perseguição, por razões económicas... Uma sã teologia do sacramento e
uma sã participação em redes de famílias; umas a apoiar outras e a
partilhar.
Se não existem as famílias grandes, podem
existir comunidades com mais interação. A família sente-se muito
isolada, muito perdida. São complicados os problemas da educação, da
liberdade de escolha da escola; e a falta de apoio económico tira
futuro à família. A Igreja está aí para salvar, para mostrar caminhos,
para alimentar a esperança.
O problema das pessoas “recasadas” é importante e
tem muitas variantes. Há diferentes formas e graus de participação na
Eucaristia. Há diferentes responsabilidades, quer no chegar a essa
situação, quer nos deveres com os novos filhos. É preciso perdão,
esclarecimento e criatividade na integração. Os recasados não estão
excluídos. Todos nós temos os nossos limites e necessidade de
reconciliação!
Parece que a Igreja estava a viver a preto e
branco. Uma das coisas que eu espero que acabe é esse sentido de
exclusão, que vem de uma coisa perigosa da nossa pastoral: como se os
recasados tivessem um estatuto único – há recasados e recasados!
Há o recasado que, enfim, foi abandonado e que
fez um luto longo de vários anos, e há aquele recasado que foi ele o
culpado e que bateu com a porta, e até já tinha outra relação. Não
podem ser tratados os dois da mesma maneira.
Há o recasado que tem filhos para educar, e há o
recasado que não tem. Já nas considerações do papa Paulo VI, aquele
devia ter a possibilidade de acompanhar os seus filhos na catequese. É
muito diferente do recasado que até gosta de ir à missa mas que não tem
responsabilidades parentais diretas.
Não se pode considerar tudo o mesmo, há muitas
“espécies” de recasados. Os cristãos ortodoxos admitem, para certos
casos, um segundo casamento.
Espero ainda um reconhecimento mais ágil de
nulidade do sacramento, com o compromisso dos leigos preparados e em
número suficiente para que os tribunais eclesiásticos passem a
funcionar melhor.
Os casos de nulidade, que são muitos, impõem um
desgaste muito grande porque levam anos a fio a resolver-se, e são
caros – e não têm de o ser! Isso teria resolvido muitos casos de
pessoas que eu conheço, muito fiéis, e que têm pendentes casos de
nulidade que faz impressão como não recebem sequer uma resposta,
deixando a pessoa suspensa.
Que as respostas da Igreja sejam: há caminho! Há graus, há aproximações. O amor exige compreensão pessoal da gradualidade.
O que nos pode dizer sobre os nove meses de pontificado de Francisco, o primeiro “papa jesuíta”? Que mudanças viu na Igreja?
Estes nove meses são uma gestação, que espero
que deem grande fruto, que saia daqui muita vida. Estes nove meses são
mais que promissores; já têm também efeitos muito concretos: sobretudo
na maneira de estar em Igreja.
Revela uma maneira de estar para os tempos de
hoje: uma linguagem de proximidade e afeto, uma comunicação concreta,
não só reflexiva, mas impulsionadora. Parece que a tínhamos perdido.
Estávamos a falar para dentro, talvez com rigor, mas sem chegar às
pessoas comuns, aos jovens, aos de fora. Temos aqui a prova de que é
possível fazer-se entender, sair duma linguagem esotérica, clerical.
Além do mais acompanhada do exemplo: este papa não só fala como vai,
telefona, acolhe, comunica com as pessoas; não só diz que se deve
batizar, ele batiza!
Sobretudo, creio que pode nascer uma Igreja
muito mais marcada, por um lado pela alegria, por outro lado pela
denúncia: são dois temas muito importantes deste papa. Por um lado a
alegria: vivemos da esperança, não podemos estar acabrunhados com os
desaires deste mundo, que são imensos e terríveis! Os refugiados, as
guerras, as estruturas de pecado, etc.
Por outro lado, temos de olhar para o mundo com o
olhar de Cristo, sem deixar de denunciar e de pôr o dedo nessas
feridas todas. Não a denúncia para dizer mal, mas a denúncia que aponta
caminhos, a denúncia que abre os olhos à realidade e desmascara
interesses mesquinhos e perversos que estão muitas vezes por trás destas
situações e que as fazem prolongar indefinidamente. Tudo isto que o
papa tem dito a propósito da Síria: por exemplo, a sua experiência de
proximidade com os refugiados, é uma grande denúncia! Mas não são
apenas palavras, são atitudes.
Também tem havido grandes mudanças, não só na
estrutura interna do Vaticano, com uma maior liberdade na sua
organização interna, até à mudança de pessoas. Até nos processos de
canonização, outra liberdade, sem estar preso a esquemas pré-fabricados
que não são absolutos.
Tem havido sobretudo um entusiasmo para que o
clero seja mais apostólico e menos administrativo. Por vezes
perdemo-nos nas burocracias, que são necessárias, mas... o tempo que os
padres perdem a fazer contas! Trabalho que se calhar outra pessoa
poderia fazer. Pode envolver-se o resto da Igreja.
Outro desafio concreto deste papa está no de
assumir-se como bispo de Roma, tomando Roma como o seu campo apostólico
direto: as visitas a paróquias, a proximidade das pessoas, etc. Acho
que é uma grande recuperação genuína do que é ser bispo. As coisas são
históricas e têm de ser lidas na história, mas aqui há sinais de futuro,
que mostra que não estamos condenados à repetição, pois isso não é
fidelidade à tradição.
Da "Evangelii Gaudium" marcou-me isto: a capacidade de “descer” ao concreto sem perder, por outro lado, a visão de conjunto.
As páginas que eu gostei mais são aquelas que
falam do bem comum e tratam da concretização da Doutrina Social da
Igreja. Ali há grandes critérios de discernimento, para não fazer da
Igreja nem uma empresa nem um grupinho de amigos, mas uma instância de
comunidade universal, que sabe avaliar e ter critérios de decisão.
Os critérios que ali aparecem são realmente de grande atualidade e compreensão profunda da realidade. Marcaram-me muito.
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