sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

O ingênuo e o sentimental

Eliana Cardoso*  

Você já reparou que duas fotos de uma mesma cena raramente coincidem? O ponto de vista, o ângulo da lente, o foco, a resolução gráfica e outros que tais afetam os detalhes e modificam a composição. Por isso, quando contemplamos duas fotos do mesmo objeto, nossa reação estética e emocional é diferente, mesmo que ambas, em princípio, correspondam ao mesmo objeto físico. Se isso ocorre com cada um de nós em relação a duas fotografias de um mesmo objeto, como esperar que diferentes autores deixassem de expressar interpretações díspares sobre um mesmo texto do qual se aproximam com bagagens emocionais e perspectivas diversas?
O velho, original e famoso ensaio de Friedrich Schiller "Poesia Ingênua e Sentimental" gerou inúmeros comentários, entre eles duas análises fascinantes, mas distintas: uma de Isaiah Berlin (importante pensador inglês) e outra de Orhan Pamuk (Prêmio Nobel de Literatura). O texto de Isaiah Berlin se chama "A ingenuidade de Verdi" e está disponível em: www.osesp.art.br/portal/paginadinamica.aspx?pagina=aingenuidadedeverdi. O de Orhan Pamuk corresponde ao primeiro capítulo do livro que reúne as palestras do autor na universidade de Harvard: "O Romancista Ingênuo e o Sentimental" (tradução de Hildergard Feist, Companhia das Letras, 2010).
Com certeza, Berlin e Pamuk partem do mesmo texto e, portanto, da dicotomia estabelecida por Schiller, para quem existem dois tipos de poeta: aquele que não tem consciência de uma cisão interior ou entre ele e seu meio, e aquele que a tem. Para o poeta que pertence ao primeiro naipe, a arte é uma forma natural de expressão: ele vê o mundo de forma direta e procura dar forma literária ao seu objeto, não tendo um propósito ulterior, sublime ou não.
Nesse grupo estão Homero, Ésquilo, Shakespeare e Goethe. Enquanto poetas, não são conscientes de si mesmos. Ao contrário de Virgílio ou Ariosto, não se distanciam para contemplar suas criações e expressar os próprios sentimentos. Estão em paz consigo mesmos. A esses Schiller chamou "ingênuos".
Ao "ingênuo" Schiller contrapôs o "sentimental", poeta para o qual a unidade primordial se evaporou. A fusão entre sentimento e intelecto, que existia de fato para o "ingênuo", para o poeta sentimental desaparece como um fato da vida e transforma-se em ideal a perseguir. A intromissão das ideias (teorias ou ideologias) destrói a paz, a alegria e a harmonia. O artista torna-se consciente de si mesmo, de suas metas e da distância entre estas e sua natureza dividida. As ideias também separam o artista - agora consciente da cisão entre pensamento e ação, sentimento e expressão - da sociedade em que vive.
Ambos Berlin e Pamuk concordam que, segundo Schiller, os ingênuos estão não apenas irmanados com a natureza, mas são como a natureza - calma, cruel e sábia. Diz Pamuk: "O poeta 'ingênuo' não tem dúvidas de que seus enunciados, suas palavras, seus versos vão retratar a paisagem geral, vão representá-la, vão descrever e revelar, adequada e minuciosamente, o sentido do mundo".
Em contraposição ao ingênuo, o poeta sentimental (emocional, reflexivo) se inquieta, porque não sabe se suas palavras abarcam a realidade e se seus enunciados transmitem o sentido almejado. Consciente dos métodos e técnicas que utiliza e do artifício envolvido no seu ofício, questiona até os próprios sentidos e se preocupa com princípios políticos e éticos.
Isaiah Berlin lembra que a poesia característica do "sentimental" é a sátira ou a elegia: a sátira como ataque ao que se conhece como vida, mas na realidade é alienação dela, e a elegia como afirmação do mundo perdido ou do ideal inalcançável. Exemplifica: os autores da poesia épica, satírica, idílica ou dramática - Eurípides, Virgílio, Horácio e os poetas neoclássicos da Renascença são nostálgicos e autoconscientes, pertencendo à categoria que Schiller chamou "sentimentais". Ésquilo, Cervantes e Shakespeare são "ingênuos".
O artista "ingênuo" é feliz em seu casamento com sua musa. Toma por certas as regras e convenções, que adota com liberdade e harmonia. O resultado de sua arte é "tranquilo, puro e alegre", nas palavras de Schiller.
O artista "sentimental", ao contrário, nutre uma relação turbulenta com sua musa. As convenções o incomodam, embora em alguns momentos possa defendê-las apaixonadamente. Desse modo, o artista sentimental não produz alegria e paz. Produz tensão, conflito com a natureza (ou com a sociedade) e desejos insaciáveis. "Oferece não a paz, mas uma espada", diz Isaiah Berlin. As neuroses da modernidade, os espíritos inquietos, os fanáticos e rebeldes, os pregadores subversivos e os provocadores pertencem ao grupo dos "sentimentais", entre os quais estão Rousseau, Byron, Schopenhauer, Dostoiévski, Flaubert, Wagner e Nietzsche.
Ao se perguntar sobre a existência, nos tempos modernos, de artistas que, segundo o conceito de Schiller, seriam "ingênuos" - isto é, íntegros como homens e artistas, tranquilos, sólidos, livres da autoconsciência, recusando o uso da arte como arma numa guerra contra os filisteus ou traidores -, Berlin aponta Pushkin, Dickens e Tolstói, nos textos em que o russo se esquece de sua doutrina e sua culpa.
"Quanto à sua coleção de ensaios,
 Pamuk se defende de antemão dos críticos,
recitando Nietzsche: "Antes de falar de arte,
 é preciso tentar criar
uma obra de arte".


Berlin nos oferece uma análise cerebral do ensaio de Schiller, ao contrário do tom confessional de Pamuk, que, vendo o texto de Schiller como fonte de reflexão sobre a inter-relação da arte, literatura e vida, o lê pensando em si mesmo como romancista. Pamuk diz que, na juventude, oscilava entre o ingênuo e o sentimental e declara que, na maturidade, encontrou o equilíbrio entre o romancista ingênuo e o sentimental que existem dentro dele.
Escreve Pamuk na conclusão de seu livro: "Quando eu tinha vinte e poucos anos e li pela primeira vez o ensaio de Schiller que inspirou este livro, quis me tornar um escritor ingênuo. [...] Desde que pronunciei estas conferências em Harvard, tenho repetidamente ouvido a pergunta: 'Sr. Pamuk, o senhor é um romancista ingênuo ou sentimental?' Eu gostaria de enfatizar que, para mim, a condição ideal é aquela em que o romancista é ao mesmo tempo, ingênuo e sentimental."
Missão impossível, lhe diria Berlin. Entre os artistas geniais, Verdi talvez seja o último ingênuo do período moderno, "criador completo, autorrealizado e absorvido em sua arte; uno com ela; buscando usá-la sem propósito ulterior, a divindade totalmente incógnita por trás de suas obras; por inteiro e intransigentemente impessoal, secamente objetivo, uno e indivisível com sua música. Um homem que dissolveu tudo em sua arte sem deixar mais resíduos pessoais do que Shakespeare ou Tintoretto. No sentido proposto por Schiller, foi o último grande poeta ingênuo de nosso tempo".
Acho que Berlin tem razão. O livro de Pamuk é simpático, leve e bem pensado, mas fica longe do rigor intelectual do ensaio de Isaiah Berlin, que desfaz a ilusão de que o autor contemporâneo possa ser "ingênuo" no sentido de Schiller, pois está corrompido pelo mundo pós-moderno da metalinguagem, do filme dentro do filme, do livro dentro do livro, do fotógrafo que fotografa o outro fotógrafo em ação...
Mas Pamuk, com sua linguagem simples e accessível, com certeza alcança o primeiro de seus objetivos, que ele propõe como: "Falar sobre minha trajetória de romancista, as escalas que fiz no caminho, o que a arte e a forma do romance me ensinaram, os limites que me impuseram, minhas lutas com eles e meu apego a eles". Quanto ao segundo objetivo - o de fazer de suas palestras meditação sobre a arte do romance e não viagem pela ladeira da memória -, ele a realiza ao explorar tanto os efeitos do romance sobre o leitor quanto ao identificar o cerne da sua arte com a habilidade de pintar com palavras o mundo de seus protagonistas.
Um romance, segundo Pamuk, é um mundo de objetos animados pelas paixões dos que vivem nele. Quanto à sua coleção de ensaios, Pamuk se defende de antemão dos críticos, recitando Nietzsche: "Antes de falar de arte, é preciso tentar criar uma obra de arte".
------------------------------------------
* Eliana Cardoso escreve semanalmente neste espaço, alternando resenhas literárias (Ponto e Vírgula) e assuntos variados (Caleidoscópio). www.elianacardoso.com 
Fonte: Valor Econômico on line, 20/01/2012 

Nenhum comentário:

Postar um comentário