sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Poder transgênero

Para os 30 mil transgêneros italianos, pessoas que já mudaram ou gostariam
de mudar a sua identidade sexual, ou que reivindicam o direito de não declará-la,
 o servo Andrej Pejic é um símbolo. O modelo (ou a modelo), escolhido por
Jean-Paul Gaultier por causa de sua soberba e andrógina beleza fora do tempo
e dos esquemas, desfilou um vestido de casamento para
a coleção primavera-verão de 2011, posou para a Vogue,
 declarou candidamente que subia na passarela "para ganhar"
 e se considerava como "um risco calculado" para os grandes nomes da moda.
E a revista francesa Courrier International o colocou na primeira página:
um meio busto nu, conturbante e estimulante, para
introduzir uma ampla investigação s
obre o fenômeno no mundo.
Embora a realidade de todos os dias seja dura, e às vezes muito dura, para quem nasce com características físicas que não correspondem aos seus sentimentos e à sua autopercepção (um homem em cada 30 mil, uma mulher em cada 100 mil), os símbolos são importantes. Não só na moda, mas também na política, com parlamentares como a polonesa Anna Grodzka ou a espanhola Carla Antonelli, na arte (a dançarina chinesa Jin Xing), na economia (a empresária norte-americana Margaret Stumpp). Pessoas de sucesso que tiveram a coragem, e a possibilidade, de declarar sem timidez a sua transformação.
Transgênero é bonito? É por acaso que justamente as pessoas de identidade deliberadamente ambígua, difícil de definir, "terceira" com relação aos gêneros tradicionais, que representam hoje a vanguarda do movimento pelos direitos e pelas liberdades sexuais?
Algo disso, de fato, também está acontecendo na Itália, onde os transgêneros representam hoje a ponta de lança de uma frente, a dos gays e lésbicas organizados, que, de outra forma, poderia parecer um pouco cansada. Porque são eles que afirmam que "o rei está nu", e que não existe nenhuma razão para obrigar as pessoas a se situarem de um lado ou o outro, ou a se submeterem a longas e dolorosas cirurgias para poder ter o nome que querem – aquele que sentem e que os define realmente – na carteira de identidade.
Como conta Fabianna Tozzi Daneri, talvez a mais conhecida entre os ativistas transgêneros, mulher-imagem do movimento: "Lutamos para que a lei de 1982 que permite que se modifiquem os dados pessoais seja estendida a quem não prefere a cirurgia de reatribuição sexual. E, ao mesmo tempo, pedimos que esse procedimento, que na Itália está inserido no sistema de saúde e, portanto, deveria ser gratuito, seja praticado corretamente e seja realmente acessível a todos".
Fabianna, que começou a trabalhar como cabeleireira em um teatro lírico ("Eu era muito boa e tive a sorte de viver em um ambiente onde a diversidade é mais aceita do que em outros lugares"), também é uma política dotada de um grande pragmatismo: "Para que a nossa condição seja aceita na Itália, devemos ser nós, em primeiro lugar, que nos demos conta de que não somos os únicos a sofrer discriminação. Todos têm problemas de trabalho hoje, e a vida é difícil para todos. O nosso direito a não seremos discriminados deve andar de mãos dadas com o de qualquer pessoa a ter condições de vida e de do emprego dignas".
Assim, nascem campanhas publicitárias (como a que teve por modelos a própria Fabianna, junto com Gabriel Dario Belli, outro transgênero famoso graças também à sua participação em uma edição do Big Brother italiano, ou outra, dos últimos dias, que dá voz a pais e a colegas de gays) que visam a sair do vitimismo e a restituir à identidade sexual de cada um a própria "normalidade".
E, enquanto na Austrália a batalha vencida por um transgênero para ser identificado no passaporte como uma pessoa "do terceiro sexo", nem homem nem mulher, foi saudada com aplausos, na Itália uma possibilidade como essas é vista com desconfiança: "É uma solução que nos assusta, porque não está de concorda com as leis e com a cultura do nosso país", diz Fabianna. "Eu acredito, ao contrário, que, quando houver necessidade, a partir dos documentos de identidade, seria de grande alívio para todos nós não indicar o gênero. E também protegeria as pessoas transgêneras até quando estiverem viajando para países onde as liberdades são mais restritas".
Os mesmos países, do Afeganistão ao Iraque, dos quais está em curso, há alguns anos, uma restrita e silenciosa, mas muitas vezes dramática, "migração sanitária" para a Itália: quem pode, abandona sua casa e da família para ir para onde a mudança de sexo é possível e segura. Trieste, Roma, Turim são as cidades onde há um hospital que – entre um corte e outro no orçamento, entre uma polêmica e um ataque – mantêm e fazem aumentar a sua própria especialização em ajudar os homens que querem se tornar mulheres (uma técnica cirurgia relativamente simples hoje e destinada ao sucesso em 90% dos casos) ou as mulheres que querem se tornar homem (isso também é possível, mas o caminho é difícil e doloroso, e é principalmente pensando nesses pacientes que se pede que se possa desconectar a mudança no cartório da mudança física).
Enquanto isso, o mundo do espetáculo e do cinema, depois que a TV já o fizera, também se abre à mudança. "Estarei entre os protagonistas do novo filme de Mark Bracco, Il tempo delle mimose, junto com um grande elenco, com Fabio Testi, Simona Autieri e Anna Galiena", anuncia Gabriele Dario Belli com certo orgulho. "Obviamente, o meu papel será masculino. Mas pessoas como nós sabemos que a transição nunca termina. Tenho 40 anos e desde que eu tinha três anos eu sei que nasci homem em um corpo de mulher: não uma lésbica, mas sim um homem heterossexual. Eu me sentia um alien, até que ouvi outra pessoa contar uma história igual à minha. O meu trabalho também me ajudou (ele é responsável de marketing de uma grande empresa), assim como a minha companheira, que me encorajou a me mostrar na TV. Eu disse: ok, vou fazer, vou ir lá e mostrar a todos que existe um 'produto' que eles não conhecem, uma mulher que escolheu ser homem. E, acredite, não fiz isso pelas vantagens que ainda hoje significa ser homem, mas sim porque esse era o modo de aproximar o meu corpo à minha mente".
As implicações sociais são, e continuam sendo, imprevisíveis: "Você já pensou nisso? Algumas empresas gostam de contratar mulheres lésbicas, porque sabem que não vai ficar em casa em licença maternidade", sugere Gabriele.
Pessoas como Fabianna e Gabriele – ou Valentina e Marco nos documentos (trabalha como estivador no porto de Gênova) – são as testemunhas de uma mudança que poderia preanunciar uma explosão do fenômeno: a moda diz isso, com cores, tecidos e cortes cada vez mais indistintos; o mundo dos cosméticos diz isso, com produtos e maquiagens projetados sem distinção; a hesitação de muitos jovens diz isso, ao não querer aderir a estereótipos masculinos ou femininos em que já não se reconhecem mais.
Evviva la neve (Ed. Mondadori, 2011), o livro de Delia Vaccarello (jornalista e blogueira, trabalha para a prefeitura de Veneza como consultora antidiscriminação) reúne algumas histórias dramáticas de mudança, incluindo a que a fez entrar na sala de operação em Trieste, e também foi um grande sucesso fora do mundo trans.
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A reportagem é de Vera Schiavazzi, publicada no jornal La Repubblica, 17-01-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto
Fonte; IHU on line, 20/01/2012

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