sexta-feira, 6 de março de 2020

A BUSCA DO PAPA PELA ALMA DA ECONOMIA

Maria Cristina Fernandes*
 
— Foto: Nelson Provazi

Brasil monta a maior delegação estrangeira para encontro a ser promovido pelo papa, em Assis, na Itália, para discutir a “Economia de Francisco”

A estagnação da economia e a hegemonia bolsonarista não impediram o Brasil de formar a maior delegação estrangeira ao encontro em Assis, na Itália. Inicialmente marcado para o fim de março e realocado, em razão do coronavírus, para novembro, o encontro reunirá jovens de 115 países para discutir as bases da “Economia de Francisco”. De 10 mil inscritos, selecionaram-se 1,5 mil, entre os quais 150 brasileiros que terão despesas em torno de R$ 1 milhão custeadas, principalmente, por financiamento coletivo.

O encontro é a segunda tacada da trilogia que transformou o papa Francisco num dos principais pauteiros da agenda política mundial. Anunciada na encíclica “Laudato Sí” (Louvado Seja), de 2015, a agenda partiu do desenvolvimento sustentável, que motivou iniciativas como o Sínodo da Amazônia, no ano passado, e agora revira os pressupostos da economia de mercado. A trilogia se completa com um pacto pela educação em encontro com ministros da Educação dos seis continentes, em Roma.

A denominação do encontro de novembro é alusiva ao jovem rico de Assis que renunciou à sua herança para se tornar um missionário e em nome de quem Bergoglio assumiu o trono no Vaticano. Com a escolha, o papa demonstra que pretende estar na primeira divisão do campeonato que disputa novos rumos da agenda mundial. Entrou em campo com uma camisa destoante, a de revestir a economia de uma “alma”.

Não é um encontro católico. Na mensagem em que convocou o encontro, o papa chega mesmo a dizer que nem mesmo é preciso comungar de fé religiosa, mas compromisso com a reforma de “modelos de crescimento incapazes de garantir o respeito ao meio ambiente, o acolhimento da vida, o cuidado da família, a equidade social, a dignidade dos trabalhadores e os direitos das futuras gerações”. É um contraponto à teologia da prosperidade professada pelas igrejas neopentecostais que têm embasado a emergência da nova direita no mundo inteiro, inclusive no Brasil.

Na delegação brasileira, o ecumenismo é representado, por exemplo, por Nicolas Garcia, um economista de 32 anos que trabalha com a ‘Oiko Credit’, uma cooperativa da Holanda, vinculada a igrejas protestantes na Europa, que, há 45 anos, aloca microcrédito no Brasil em agricultura familiar e energias limpas. Sua carteira de clientes é formada por 25 cooperativas que agregam 200 mil empreendedores junto aos quais estão alocados R$ 110 milhões.

Cooperativas de crédito do gênero ainda são uma raridade no Brasil. Nicolas terá como parceiro de viagem a Assis dois doutorandos da Unicamp, Junior Fabri, da engenharia elétrica, e Vitor Tonin, da economia, que têm tudo, menos crédito. Tonin montou uma rede de distribuição para aproximar produtores e consumidores de produtos agroecológicos com outros três colegas. Têm o apoio do sindicato de trabalhadores da indústria química e conseguiu montar lojas em Campinas, Santos e São Paulo, mas ainda não conseguem viver do projeto.

Fabri chegou a recorrer a sindicatos e igrejas para viabilizar a capacitação de uma comunidade em Limeira (SP), sem acesso a energia elétrica, para a produção de energia fotovoltaica. Recorreu a dois amigos e às economias de sua bolsa de estudos. Reuniu R$ 10 mil para comprar placas solares e circuitos integrados e treinar 21 famílias para operá-los.

Fabri chegou a ter a bolsa do doutorado na Unicamp cortada pelo ministro Abraham Weintraub, mas não desistiu do projeto. Em sua pesquisa na universidade, descobriu que em muitas comunidades Brasil afora os equipamentos instalados pelo projeto Luz Para Todos, iniciado em 2003, estavam sucateados. Não havia manutenção nem a comunidade estava treinada para resolver suas avarias.

Fabri vê no investimento o sentido do doutorado que está prestes a concluir, mas o idealismo não lhe assegura os meios para seguir adiante. Está para aceitar convite de uma universidade no Peru para desenvolver, no pós-doutorado, projetos com comunidades do altiplano para a geração de energia renovável.

Ele terá mais a ensinar do que a aprender em Assis. Sua experiência é um exemplo do que busca a reforma curricular dos cursos universitários a ser discutida no encontro. Antonio Correa de Lacerda, hoje diretor da faculdade de economia da PUC de São Paulo, vê ecos da carta do papa no último manifesto de Davos. Não é, porém, um entusiasta da reforma curricular. Diz que a oferta de cursos de economia com diferentes pesos para teoria monetária, história econômica ou economia política, já reflete a reserva de 35% da grade disciplinar ao arbítrio de seus dirigentes.

É a interação com a comunidade, porém, que parece guiar a reforma de Assis. Lá estarão dois prêmios Nobel de Economia, o indiano Amartya Sen (1998) e o americano Joseph Stiglitz (2001), e um Nobel da Paz, o bengali Muhammad Yunus (2006), além do economistas Kate Raworth, da Universidade de Cambridge (Reino Unido) e Jeffrey Sachs, da Universidade de Columbia (EUA). “O papa Francisco é o maior líder moral do mundo hoje”, disse Sachs, que não é católico, à “The Economist”.

Nenhum deles, porém, está tão envolvido com a reforma curricular quanto Stiglitz. Nos documentos preparatórios do encontro sugere critérios claros para a incorporação crítica do conceito de sustentabilidade a partir de uma interação mais radical com a vida das comunidades. Praticamente um ctrl C + ctrl V da experiência de Fabri.

Stiglitz esteve no Vaticano no ano passado. Fez dueto com o papa por uma “economia social de mercado”: “É fundamental trabalhar a partir da educação em sistemas alternativos que não tenham como premissa a ideia de idolatrar o dinheiro. Temos que buscar desenvolver programas e estudos em torno do conceito de economia circular, que contribuam para uma educação consciente da sustentabilidade ambiental, que requer devolver ao meio ambiente o que lhe é retirado”. Bergoglio completou: “Caso contrário, a humanidade vai ao suicídio.”

Stiglitz foi ao Vaticano na companhia do atual ministro da Economia da Argentina, Martín Guzman, seu orientando no pós-doutorado na Universidade de Columbia. Stiglitz e Guzmán escreveram juntos “Too Little, Too Late” (Columbia, University Press, 2016), livro que discute as razões pelas quais o padrão de renegociação da dívida externa falha em promover a recuperação de países em crise.

Este ano, Stiglitz e Guzman voltaram ao Vaticano, na companhia da diretora do FMI, Kristalina Georgieva, para uma conferência sobre “economia solidária”. A Argentina está em meio à reestruturação de uma dívida de U$ 100 bilhões com credores e em recessão, com inflação de 50%. Em seu pronunciamento durante a conferência, o papa disse que as dívidas dos países não podem se tornar um fator “que danifique o tecido social”. Replica, a seu modo, João Paulo II, que buscou se aproximar de Jeffrey Sachs quando o economista se tornou um dos principais negociadores da dívida externa de sua Polônia natal.

Stiglitz se tornou colaborador da “Escola de Vizinhos” (“Scholas Occurrentes”, em latim), fundação pontifícia iniciada quando Bergoglio ainda era arcebispo em Buenos Aires e presidida por José Maria Corral. Amigo do papa há mais de 20 anos, Corral o conheceu quando pôs em pé o projeto que buscava integrar escolas católicas de elite em Buenos Aires com as da periferia da capital portenha. Foi uma das primeiras pessoas chamadas por Bergoglio para acompanhá-lo quando foi escolhido para bispo de Roma.

Foi a partir de Corral também que se articulou o grupo que organiza a participação brasileira no encontro. A coordenação é de Celio Turino, ex-secretário do Ministério da Cultura na gestão Gilberto Gil, e conta com o apoio do Dieese. Idealizador do “Pontos de Cultura”, projeto que fomenta iniciativas comunitárias a partir de editais públicos, Turino levou o projeto para 17 países.

A Argentina já soma 700 pontos de cultura. Foi no momento em que se espalhava pela periferia de Buenos Aires que o projeto se cruzou com a “Escola de Vizinhos” de Corral e Bergoglio. O texto de contribuição brasileira coloca em pé de igualdade o fundador da ordem franciscana e Santa Clara, jovem que abandonou sua vida abastada em Assis para tomar o mesmo rumo de Francisco e se tornar a fundadora do ramo feminino da ordem.

A iniciativa traz de volta a participação feminina que, no Sínodo da Amazônia, originou a pressão pela ordenação de mulheres. Bombardeado pelo episcopado conservador, Bergoglio recuou tanto na incorporação de mulheres ao clero quanto na aceitação de padres casados em regiões remotas como a Amazônia.

A delegação brasileira agrega desde empresárias como as engenheiras Luana Garcia e Fernanda Rocha, quanto a ativista social Crislayne Zeferina. A paulistana Luana, de 31 anos, montou há dois anos uma empresa de compostagem que hoje já tem 200 clientes residenciais e empresariais. Aos 35 anos, Fernanda é sócia de duas lojas de hortifrutis ecológicos em Belo Horizonte cujos fornecedores são egressos da agricultura familiar. A caçula é a pedagoga capixaba Crislayne, de 27 anos, que montou um banco comunitário na periferia de Vitória em 2005 e hoje já tem R$ 2 milhões em empréstimos, além de uma plataforma digital com 50 estabelecimentos credenciados.

Microempreendedores se depararão em Assis com empresários bem mais capitalizados, como Brunello Cucinelli, dono de uma das mais refinadas confecções da Itália. Suas lojas têm as paredes forradas com as confissões de Santo Agostinho e os diálogos de Giordano Bruno, e suas fábricas, funcionários com salários 20% acima do mercado. Depois de levantar meio bilhão de dólares com a abertura de capital de sua empresa, o filósofo milionário que veste a família real britânica se mostrará como a prova de que o capitalismo pode, sim, ter alma.
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* Maria Cristina Fernandes, jornalista do Valor, escreve neste espaço quinzenalmente
E-mail: mcristina.fernandes@valor.com.br

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