Maria Cristina
Fernandes*
— Foto: Nelson Provazi
Brasil monta a
maior delegação estrangeira para encontro a ser promovido pelo papa, em Assis,
na Itália, para discutir a “Economia de Francisco”
A estagnação da
economia e a hegemonia bolsonarista não impediram o Brasil de formar a maior
delegação estrangeira ao encontro em Assis, na Itália. Inicialmente marcado
para o fim de março e realocado, em razão do coronavírus, para novembro, o
encontro reunirá jovens de 115 países para discutir as bases da “Economia de
Francisco”. De 10 mil inscritos, selecionaram-se 1,5 mil, entre os quais 150
brasileiros que terão despesas em torno de R$ 1 milhão custeadas,
principalmente, por financiamento coletivo.
O encontro é a
segunda tacada da trilogia que transformou o papa Francisco num dos principais
pauteiros da agenda política mundial. Anunciada na encíclica “Laudato Sí”
(Louvado Seja), de 2015, a agenda partiu do desenvolvimento sustentável, que
motivou iniciativas como o Sínodo da Amazônia, no ano passado, e agora revira
os pressupostos da economia de mercado. A trilogia se completa com um pacto
pela educação em encontro com ministros da Educação dos seis continentes, em
Roma.
A denominação do encontro
de novembro é alusiva ao jovem rico de Assis que renunciou à sua herança para
se tornar um missionário e em nome de quem Bergoglio assumiu o trono no
Vaticano. Com a escolha, o papa demonstra que pretende estar na primeira
divisão do campeonato que disputa novos rumos da agenda mundial. Entrou em
campo com uma camisa destoante, a de revestir a economia de uma “alma”.
Não é um encontro
católico. Na mensagem em que convocou o encontro, o papa chega mesmo a dizer
que nem mesmo é preciso comungar de fé religiosa, mas compromisso com a reforma
de “modelos de crescimento incapazes de garantir o respeito ao meio ambiente, o
acolhimento da vida, o cuidado da família, a equidade social, a dignidade dos
trabalhadores e os direitos das futuras gerações”. É um contraponto à teologia
da prosperidade professada pelas igrejas neopentecostais que têm embasado a
emergência da nova direita no mundo inteiro, inclusive no Brasil.
Na delegação
brasileira, o ecumenismo é representado, por exemplo, por Nicolas Garcia, um
economista de 32 anos que trabalha com a ‘Oiko Credit’, uma cooperativa da
Holanda, vinculada a igrejas protestantes na Europa, que, há 45 anos, aloca
microcrédito no Brasil em agricultura familiar e energias limpas. Sua carteira
de clientes é formada por 25 cooperativas que agregam 200 mil empreendedores
junto aos quais estão alocados R$ 110 milhões.
Cooperativas de
crédito do gênero ainda são uma raridade no Brasil. Nicolas terá como parceiro
de viagem a Assis dois doutorandos da Unicamp, Junior Fabri, da engenharia
elétrica, e Vitor Tonin, da economia, que têm tudo, menos crédito. Tonin montou
uma rede de distribuição para aproximar produtores e consumidores de produtos
agroecológicos com outros três colegas. Têm o apoio do sindicato de
trabalhadores da indústria química e conseguiu montar lojas em Campinas, Santos
e São Paulo, mas ainda não conseguem viver do projeto.
Fabri chegou a
recorrer a sindicatos e igrejas para viabilizar a capacitação de uma comunidade
em Limeira (SP), sem acesso a energia elétrica, para a produção de energia
fotovoltaica. Recorreu a dois amigos e às economias de sua bolsa de estudos. Reuniu
R$ 10 mil para comprar placas solares e circuitos integrados e treinar 21
famílias para operá-los.
Fabri chegou a ter
a bolsa do doutorado na Unicamp cortada pelo ministro Abraham Weintraub, mas
não desistiu do projeto. Em sua pesquisa na universidade, descobriu que em
muitas comunidades Brasil afora os equipamentos instalados pelo projeto Luz
Para Todos, iniciado em 2003, estavam sucateados. Não havia manutenção nem a
comunidade estava treinada para resolver suas avarias.
Fabri vê no
investimento o sentido do doutorado que está prestes a concluir, mas o
idealismo não lhe assegura os meios para seguir adiante. Está para aceitar
convite de uma universidade no Peru para desenvolver, no pós-doutorado,
projetos com comunidades do altiplano para a geração de energia renovável.
Ele terá mais a ensinar
do que a aprender em Assis. Sua experiência é um exemplo do que busca a reforma
curricular dos cursos universitários a ser discutida no encontro. Antonio
Correa de Lacerda, hoje diretor da faculdade de economia da PUC de São Paulo,
vê ecos da carta do papa no último manifesto de Davos. Não é, porém, um
entusiasta da reforma curricular. Diz que a oferta de cursos de economia com
diferentes pesos para teoria monetária, história econômica ou economia
política, já reflete a reserva de 35% da grade disciplinar ao arbítrio de seus
dirigentes.
É a interação com a
comunidade, porém, que parece guiar a reforma de Assis. Lá estarão dois prêmios
Nobel de Economia, o indiano Amartya Sen (1998) e o americano Joseph Stiglitz
(2001), e um Nobel da Paz, o bengali Muhammad Yunus (2006), além do economistas
Kate Raworth, da Universidade de Cambridge (Reino Unido) e Jeffrey Sachs, da
Universidade de Columbia (EUA). “O papa Francisco é o maior líder moral do
mundo hoje”, disse Sachs, que não é católico, à “The Economist”.
Nenhum deles,
porém, está tão envolvido com a reforma curricular quanto Stiglitz. Nos
documentos preparatórios do encontro sugere critérios claros para a
incorporação crítica do conceito de sustentabilidade a partir de uma interação
mais radical com a vida das comunidades. Praticamente um ctrl C + ctrl V da
experiência de Fabri.
Stiglitz esteve no
Vaticano no ano passado. Fez dueto com o papa por uma “economia social de
mercado”: “É fundamental trabalhar a partir da educação em sistemas
alternativos que não tenham como premissa a ideia de idolatrar o dinheiro.
Temos que buscar desenvolver programas e estudos em torno do conceito de
economia circular, que contribuam para uma educação consciente da
sustentabilidade ambiental, que requer devolver ao meio ambiente o que lhe é
retirado”. Bergoglio completou: “Caso contrário, a humanidade vai ao suicídio.”
Stiglitz foi ao
Vaticano na companhia do atual ministro da Economia da Argentina, Martín
Guzman, seu orientando no pós-doutorado na Universidade de Columbia. Stiglitz e
Guzmán escreveram juntos “Too Little, Too Late” (Columbia, University Press,
2016), livro que discute as razões pelas quais o padrão de renegociação da
dívida externa falha em promover a recuperação de países em crise.
Este ano, Stiglitz
e Guzman voltaram ao Vaticano, na companhia da diretora do FMI, Kristalina
Georgieva, para uma conferência sobre “economia solidária”. A Argentina está em
meio à reestruturação de uma dívida de U$ 100 bilhões com credores e em
recessão, com inflação de 50%. Em seu pronunciamento durante a conferência, o
papa disse que as dívidas dos países não podem se tornar um fator “que
danifique o tecido social”. Replica, a seu modo, João Paulo II, que buscou se
aproximar de Jeffrey Sachs quando o economista se tornou um dos principais
negociadores da dívida externa de sua Polônia natal.
Stiglitz se tornou
colaborador da “Escola de Vizinhos” (“Scholas Occurrentes”, em latim), fundação
pontifícia iniciada quando Bergoglio ainda era arcebispo em Buenos Aires e
presidida por José Maria Corral. Amigo do papa há mais de 20 anos, Corral o
conheceu quando pôs em pé o projeto que buscava integrar escolas católicas de
elite em Buenos Aires com as da periferia da capital portenha. Foi uma das
primeiras pessoas chamadas por Bergoglio para acompanhá-lo quando foi escolhido
para bispo de Roma.
Foi a partir de
Corral também que se articulou o grupo que organiza a participação brasileira
no encontro. A coordenação é de Celio Turino, ex-secretário do Ministério da
Cultura na gestão Gilberto Gil, e conta com o apoio do Dieese. Idealizador do
“Pontos de Cultura”, projeto que fomenta iniciativas comunitárias a partir de editais
públicos, Turino levou o projeto para 17 países.
A Argentina já soma
700 pontos de cultura. Foi no momento em que se espalhava pela periferia de
Buenos Aires que o projeto se cruzou com a “Escola de Vizinhos” de Corral e
Bergoglio. O texto de contribuição brasileira coloca em pé de igualdade o
fundador da ordem franciscana e Santa Clara, jovem que abandonou sua vida
abastada em Assis para tomar o mesmo rumo de Francisco e se tornar a fundadora
do ramo feminino da ordem.
A iniciativa traz
de volta a participação feminina que, no Sínodo da Amazônia, originou a pressão
pela ordenação de mulheres. Bombardeado pelo episcopado conservador, Bergoglio
recuou tanto na incorporação de mulheres ao clero quanto na aceitação de padres
casados em regiões remotas como a Amazônia.
A delegação
brasileira agrega desde empresárias como as engenheiras Luana Garcia e Fernanda
Rocha, quanto a ativista social Crislayne Zeferina. A paulistana Luana, de 31
anos, montou há dois anos uma empresa de compostagem que hoje já tem 200
clientes residenciais e empresariais. Aos 35 anos, Fernanda é sócia de duas
lojas de hortifrutis ecológicos em Belo Horizonte cujos fornecedores são
egressos da agricultura familiar. A caçula é a pedagoga capixaba Crislayne, de
27 anos, que montou um banco comunitário na periferia de Vitória em 2005 e hoje
já tem R$ 2 milhões em empréstimos, além de uma plataforma digital com 50
estabelecimentos credenciados.
Microempreendedores
se depararão em Assis com empresários bem mais capitalizados, como Brunello
Cucinelli, dono de uma das mais refinadas confecções da Itália. Suas lojas têm
as paredes forradas com as confissões de Santo Agostinho e os diálogos de
Giordano Bruno, e suas fábricas, funcionários com salários 20% acima do
mercado. Depois de levantar meio bilhão de dólares com a abertura de capital de
sua empresa, o filósofo milionário que veste a família real britânica se
mostrará como a prova de que o capitalismo pode, sim, ter alma.
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* Maria Cristina
Fernandes, jornalista do Valor, escreve neste espaço quinzenalmente
E-mail:
mcristina.fernandes@valor.com.br
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