Max Weber observou a profunda aversão da
Igreja ao capital, novo ídolo na era moderna. Jorge Bergoglio resgata
corrente anticapitalista – e não marxista – que propõe crítica radical à
crise causada pelos modelos alienados de produção e consumo
Por Michel Löwy, no A Terra é Redonda
A hipótese de Max Weber
Max Weber argumentava, em seu célebre ensaio de sociologia das
religiões, que a ética protestante era favorável ao desenvolvimento do
capitalismo, especialmente na Inglaterra e nos Estados Unidos;
encontramos uma hipótese análoga, meio século antes, em certos escritos
de Marx (em especial, nos Grundrisse). Todavia, neste mesmo
texto, Weber sugere que a ética católica era, ao contrário,
fundamentalmente hostil ao espírito do capitalismo.
Em uma nota de rodapé, no contexto de uma polêmica contra os
trabalhos de Franz Keller, ele afirma que as tomadas de posição da
Igreja Católica em relação ao capitalismo enquanto tal são determinadas
por uma “aversão tradicionalista, sentida o mais das vezes de forma
confusa, contra o crescente poder impessoal do capital – dificilmente suscetível, por isso mesmo, de eticização”[i]
No decorrer do debate que provocou a publicação de seu livro, Weber propôs um novo conceito: o de uma incompatibilidade (Unvereinbarkeit) entre
os ideais aos quais se subscreve o crente católico seriamente
convencido” e a “busca ‘comercial’ do ganho”. De fato, esta
incompatibilidade não exclui as adaptações, mas, acrescenta o sociólogo,
“eu não posso interpretar os numerosos ‘compromissos’ práticos e
teóricos senão justamente como ‘compromissos’”[ii]. Em outros termos: se existem compromissos, é porque duas potências hostis se confrontam, e a Unvereinbarkeit continua sendo o tom dominante da relação católica com o espírito do capitalismo.
Ele retorna a esta problemática em diversos outros textos, notadamente em sua História Econômica: “A
aversão profunda da ética católica, seguida pela ética luterana, a toda
tendência capitalista repousa essencialmente sobre a repugnância que
lhes inspira a impessoalidade das relações no interior da economia
capitalista. Esta impessoalidade subtrai da igreja e de sua influência
moralizadora certas relações humanas, excluindo assim toda infiltração e
toda regulamentação ética de sua parte.”[iii]
A hipótese weberiana me parece essencial para compreender diversos
fenômenos sociorreligiosos, desde o século XIX até hoje. De fato, esta
hostilidade, esta aversão, esta “antipatia” (um outro termo utilizado
por Weber) contra o capitalismo assumiu, particularmente no século XIX,
um caráter conservador, retrógrado, em uma palavra, reacionário. Estas
manifestações não tinham escapado à atenção de Marx e Engels, que as
designou ironicamente de “socialismo feudal”.
Eis o que dizem sobre o assunto no Manifesto do Partido Comunista,
que as denuncia, mesmo reconhecendo a sua dimensão crítica
(antiburguesa): “O socialismo feudal, um misto de lamento, pasquim, eco
do passado e vaticínio das ameaças do futuro – por vezes, atingindo a
burguesia no coração com veredictos amargos e espirituosamente
dilacerantes, mas sempre causando impressão engraçada, graças a sua
total incapacidade de compreender o curso da história moderna”[iv].
Tratava-se, provavelmente, de autores tais como o filósofo social
romântico e católico Johannes von Baader, firme partidário da Igreja e
do Rei que denunciava, no entanto, a condição miserável dos proletairs (seu
termo) na Inglaterra e na França, mais cruel e desumana do que a
servidão. Criticando a exploração brutal e nada cristã desta classe
desprovida pelos interesses do dinheiro (Argyrokratie), ele propõe que o clero católico se torne o defensor e o representante dos proletairs.[v]
Dito isso, vê-se aparecer, no seio do capitalismo, uma corrente
anticapitalista de esquerda. Paradoxalmente, o crescimento de uma
esquerda católica aparece em relação ao fato de que a Igreja se mostrava
cada vez mais disposta a procurar um compromisso com a sociedade
burguesa. Depois da mordaz condenação dos princípios liberais no
Syllabus (1864), Roma parecia admitir, desde o fim do século XIX, o
advento do capitalismo e o estabelecimento de um Estado moderno
(“liberal”) burguês como fatos irreversíveis.
A manifestação mais aparente dessa nova estratégia foi a aproximação
da Igreja francesa (até então defensora incondicional da monarquia) com a
República. O catolicismo intransigente toma a forma de um “catolicismo
social” que, ainda que criticando sempre os excessos do “capitalismo
liberal”, não mais coloca verdadeiramente em questão a ordem social e a
economia existentes. Seguem na mesma direção todos os documentos
provenientes da magistratura romana (os encíclicos pontificiais) assim
como a doutrina social da Igreja, do Rerum Novarum (1891) até Ratzinger (Bento XVI).
Foi precisamente no momento da “reconciliação” – real ou aparente –
da Igreja com o mundo moderno que apareceu uma nova forma de socialismo
católico, notadamente na França, que se tornaria uma minoria consequente
na cultura católica francesa. Na virada do século, vê-se florescer
simultaneamente as formas mais reacionárias do anticapitalismo católico –
Charles Maurras, o movimento da Ação Francesa e a ala regressiva da
Igreja, que assumiriam uma parte ativa na sinistra campanha antissemita
contra Dreyfus – e uma forma de anticapitalismo não menos
“intransigente”, mas agora de esquerda, cujo primeiro representante foi o
escritor dreyfusiano filosemita e socialista libertário, Charles Péguy,
que tornou-se católico em 1907 apesar de jamais ter sido recebido pela
Igreja. Esta corrente não era isenta de ambiguidades, mas seu
engajamento fundamental era à esquerda.
A partir do fim do século XIX, e mais ainda depois da Revolução
Russa, era evidente que o inimigo principal do Vaticano não era mais o
“liberalismo” burguês, mas definitivamente o movimento operário
socialista e, em particular, o “comunismo ateu”. Pio XII vai se
distinguir neste combate, excomungando os comunistas na Itália (1948) e
interditando, na França, a atividade de padres operários, excessivamente
próximos da CGT (anos 1950). Woytila, João Paulo II, o papa polonês,
reassumirá esta iniciativa em um novo contexto histórico.
Apesar da hostilidade romana, a esquerda católica continua a se
desenvolver na Europa e ainda mais na América Latina, com o crescimento,
a partir de 1960, da Teologia da Libertação. Uma das características
principais desta corrente, representada por movimentos estudantis,
operários e rurais, por comunidades de base, teólogos, mas também de
bispos, é a condenação intransigente, moral e política, do capitalismo,
em termos nos quais a influência do marxismo é visível.
Veja-se, por exemplo, a conclusão do documento Marginalização de um
povo: o grito das igrejas, assinado pelos bispos e superiores de ordens
religiosas da região Centro Oeste do Brasil: “É preciso vencer o
capitalismo: ele é o maior mal, o pecado acumulado, a raiz podre, a
árvore que produz todos os frutos que conhecemos tão bem: a pobreza, a
fome, a doença, a morte. Por isso, é preciso que a propriedade privada
dos meios de produção (fábricas, terra, comércio, bancos) seja
superada.”[vi]
Se Paulo VI manifestou certa tolerância face à teologia da
libertação, o mesmo não foi o caso dos dois pontífices seguintes: João
Paulo II e Bento XVI perseguiram ativamente seus representantes,
chegando a impor ao teólogo Leonardo Boff um ano de “silêncio
obsequioso”.
Jorge Bergoglio, o Papa Francisco
O que esperar do Cardeal Jorge Bergoglio, eleito Pontifex Maximum em
março de 2013? De fato, ele era um latino americano, o que já
significava uma mudança. Mas ele fora escolhido pelo mesmo conclave que
havia empossado o conservador Ratzinger, e vinha da Argentina, um país
onde a Igreja não prima pelo progressismo – tendo vários de seus
dignatários cooperado ativamente com a sanguinária ditadura militar.
Este não foi o caso de Bergoglio – segundo certas testemunhas, ele teria
até mesmo ajudado perseguidos pela Junta a se esconder ou a sair do
país – mas ele também não era opositor ao regime: um “pecado por
omissão”, poder-se-ia dizer. Se alguns cristãos de esquerda como Adolfo
Perez Esquivel (Prêmio Nobel da Paz) sempre o apoiaram, outros o
consideravam como um opositor de direita ao governo dos “peronistas de
esquerda” Nestor e Christina Kirchner.
Seja o que for, uma vez eleito, Francisco – o nome que ele escolheu,
em referência a São Francisco, o amigo dos pobres e dos pássaros – se
distinguiu imediatamente pelas tomadas de posição engajadas e corajosas.
Em certo sentido ele faz lembrar do papa Roncalli, João XXIII: eleito
como “papa de transição” para assegurar a continuidade da tradição, que
deu início à transformação mais profunda na Igreja em séculos: o
Concílio Vaticano II (1962-65). Aliás, Bergoglio tinha pensado, num
primeiro momento, em assumir o nome de “João XXIV”, em honra a seu
predecessor dos anos 1960.
A primeira viagem do novo pontífice para fora de Roma ocorreu em
julho de 2013, no porto italiano de Lampedusa, onde chegavam centenas de
imigrantes clandestinos, ao passo que muitos deles tinham se afogado no
Mediterrâneo. Em sua homília, ele não temeu assumir a contracorrente do
governo italiano – e de boa parte da opinião pública – ao denunciar a
“globalização da indiferença” que nos deixa “insensíveis aos gritos dos
outros”, isto é, ao destino “dos imigrantes mortos no mar, nestes barcos
que, no lugar de serem um caminho da esperança, foram uma rota para a
morte”. Ele retornaria em várias ocasiões a esta crítica da desumanidade
da política europeia quanto aos imigrantes.
Quanto a América Latina, uma transformação notável também aconteceu.
Em setembro de 2013, Francisco encontrou-se com Gustavo Gutierrez, o
fundador da teologia da libertação, e o jornal do Vaticano, Osservatore romano, publicou
pela primeira vez um artigo favorável a este pensador. Outro gesto
também simbólico foi a beatificação de Dom Romero, arquiduque de El
Salvador, assassinado em 1980 pelos militares por ter denunciado a
repressão contra a população[1]
– um herói celebrado pela esquerda católica latino-americana, mas
ignorado pelos Pontífices precedentes. Na ocasião de sua visita à
Bolívia, em julho de 2015, Bergoglio prestou uma imensa e vibrante
homenagem à memória de seu companheiro[2]
jesuíta, Luis Espinal de Camps, um padre missionário espanhol, poeta e
cineasta, morto sob a ditadura de Luis Garcia Meza, a 21 de março de
1980, em razão de seu engajamento nas lutas sociais. Em seu encontro com
Evo Morales, o presidente socialista boliviano ofereceu-lhe uma
escultura feita pelo mártir jesuíta: uma cruz posta sobre uma foice e um
martelo em madeira.
Em sua visita à Bolívia, Francisco visitou um Encontro Mundial de
Movimentos Sociais na cidade de Santa Cruz. Seu discurso, na ocasião,
ilustra a “profunda aversão” ao capitalismo da qual falava Max Weber,
mas em um nível jamais alcançado por qualquer um de seus predecessores.
Segue uma passagem, que se tornou célebre, desta intervenção: “Está-se a
castigar a terra, os povos e as pessoas de forma quase selvagem. E por
trás de tanto sofrimento, tanta morte e destruição, sente-se o cheiro
daquilo que Basílio de Cesareia – um dos primeiros teólogos da Igreja –
chamava de “o esterco do diabo”: reina a ambição desenfreada de
dinheiro. É este o esterco do diabo. O serviço ao bem comum fica em
segundo plano. Quando o capital se torna um ídolo e dirige as opções dos
seres humanos, quando a avidez do dinheiro domina todo o sistema
socioeconômico, arruína a sociedade, condena o homem, transforma-o em
escravo, destrói a fraternidade inter-humana, faz lutar povo contra povo
e até, como vemos, põe em risco a nossa casa comum, a irmã e mãe
terra.”[vii]
A iniciativa de Francisco encontra, como era previsível, uma
importante resistência por parte dos setores mais conservadores da
Igreja. Um de seus opositores mais ativos é o Cardeal norte-americano
Raymond Burke, um defensor entusiasta de Donald Trump, que também entrou
em contato, na ocasião de uma viagem à Itália, com Matteo Salvini, o
chefe da Legga del Norte… Alguns de seus adversários acusam o novo
pontífice de ser um herético, ou mesmo um… marxista disfarçado.
A Rush Linebaugh, um jornalista católico (norte-americano)
reacionário, tendo o qualificado de “Papa marxista”, Francisco respondeu
recusando polidamente o adjetivo, complementando que ele não estava
ofendido pois “conhecia vários marxistas que eram pessoas de bem”. De
fato, em 2014 o Papa recebeu em audiência dois eminentes representantes
da esquerda europeia: Alexis Tsipras, então dirigente da oposição ao
governo de direita de Atenas, e Walter Baier, o coordenador da rede Transform,
composta por fundações culturais ligadas ao Partido da Esquerda
Europeia (como a Fundação Rosa Luxemburgo da Alemanha). Nesta ocasião,
decidiu-se iniciar um processo de diálogo entre marxistas e cristãos,
que tomou a forma de vários encontros. Que culminaram, em 2018, em uma
Universidade de Verão comum na ilha de Syros, na Grécia.
É verdade que, a respeito do direito das mulheres a disporem de seu
corpo e da moral sexual em geral – contracepção, aborto, divórcio,
homossexualidade – Francisco mantém suas posições conservadoras da
doutrina da Igreja. Mas se vê alguns sinais de abertura, da qual o
violento conflito, em 2017, com a direção da Ordem de Malta, uma
instituição riquíssima e aristocrática da Igreja católica, é um sintoma
gritante. O arquiconservador Grande Mestre da Ordem, o Príncipe (!?)
Matthew Festing havia exigido a demissão do Chanceler da Ordem, o Barão
de Boeslager, pelo terrível pecado de ter distribuído contraceptivos a
populações pobres ameaçadas pela epidemia de AIDS na África. O chanceler
apelou ao Vaticano, que lhe deu razão contra Festing; este – apoiado
pelo cardeal Burke – recusando-se a obedecer, foi deposto de sua posição
pelo Vaticano. Isso não é, ainda, a adoção dos contraceptivos pela
doutrina moral da Igreja, mas é uma mudança.
Evidentemente, o Papa Francisco não tem nada de marxista, e sua
teologia está bem distante da teologia da libertação sob sua forma
marxizante. Sua formação intelectual, espiritual e política deve muito
à teologia do povo, uma variante argentina não marxista da
teoria da libertação, cujos principais inspiradores são Lucio Gera e o
teólogo jesuíta Juan Carlos Scannone. A teologia do povo não reivindica a
luta de classes, mas reconhece o conflito entre o povo e o “antipovo”, e
faz sua a opção prioritária pelos pobres. Ela manifesta menos interesse
às questões socioeconômicas que as outras formas da teologia da
libertação, e uma maior atenção à cultura, e especialmente à religião
popular.
Em um artigo de 2014, “O Papa Francisco e a teologia do povo”, Juan
Carlos Scannone insiste, com razão, em tudo o que as primeiras
encíclicas do papa, como Evangelium Gaudi (2014), devem a esta
teologia popular, difamada por seus críticos de esquerda como
“populista” (no sentido argentino, peronista, e não europeu, desse
termo). Parece-me, porém, que Bergoglio, em sua crítica ao “ídolo
capital” e de todo o “sistema socioeconômico” atual vai além de seus
inspiradores argentinos. É o caso, particularmente, de seu último
Encíclico, Laudato si’ (2015), que merece uma reflexão marxista.
Laudato si’
A “Encíclica ecológica” do Papa Francisco é um evento de uma
importância planetária, do ponto de vista religioso, ético, social e
político. Considerando a enorme influência da igreja católica, ela é uma
contribuição crucial para o desenvolvimento de uma consciência
ecológica crítica. Recebido com entusiasmo pelos verdadeiros defensores
do meio ambiente, ela suscitou inquietude e rejeição por parte dos
religiosos conservadores, dos representantes do capital e dos ideólogos
da “ecologia de mercado”.
Trata-se de um documento de uma grande riqueza e complexidade, que
propõe uma nova interpretação da tradição judaico-cristã – em ruptura
com o “sonho prometeico de dominação do mundo” – e uma reflexão
profundamente radical sobre as causas da crise ecológica. Sob certos
aspectos, como por exemplo na associação inseparável do “clamor da
terra” e do “clamor dos pobres”, percebe-se que a teologia da libertação
– em particular a do ecoteólogo Leonardo Boff – foi uma de suas fontes
de inspiração.
Nas breves notas que se seguem, procuro sublinhar uma dimensão da
Encíclica que explica as resistências que ela encontrou no establishment
econômico e midiático: seu caráter antissistêmico.
Para o Papa Francisco, os desastres ecológicos e a mudança climática
não são unicamente o resultado dos comportamentos individuais – ainda
que estes também tenham sua parte – mas sim dos “modelos atuais de
produção e consumo”[viii] (26).
Bergoglio não é marxista, e a palavra “capitalismo” não aparece na
Encíclica… Mas continua bem claro que para ele os dramáticos problemas
ecológicos de nossa época são o resultado das engrenagens da atual
economia globalizada – engrenagens constituídas por um sistema global,
um “sistema de relações comerciais e de propriedade estruturalmente
perverso” (Seção 52 do documento).
Quais são, para Francisco, estas características “estruturalmente
perversas”? Acima de tudo, um sistema no qual predominam os “limitados
interesses das empresas” (127) e uma “discutível racionalidade
econômica” (127), uma racionalidade instrumental cuja única finalidade é
maximizar os lucros. Por consequência, “o princípio da maximização do
lucro, que tende a isolar-se de todas as outras considerações, é uma
distorção conceitual da economia: desde que aumente a produção pouco
interessa que isso se consiga à custa dos recursos futuros ou da saúde
do meio ambiente” (195).
Essa distorção, esta perversidade ética e social, não é mais própria a
um país do que a outro, mas antes a um “sistema mundial atual, onde
predomina uma especulação e uma busca de receitas financeiras que tendem
a ignorar todo o contexto e os efeitos sobre a dignidade humana e sobre
o meio ambiente. Assim se manifesta como estão intimamente ligadas a
degradação ambiental e a degradação humana e ética” (56).
A obsessão de um crescimento sem limite, o consumismo, a tecnocracia,
a dominação absoluta das finanças e a deificação do mercado são tantas
das características perversas do sistema. Em uma lógica destrutiva, tudo
se reduz ao mercado e ao “cálculo financeiro dos custos e benefícios”
(190). Ora, é preciso compreender que “o ambiente é um dos bens que os
mecanismos de mercado não estão aptos a defender ou a promover
adequadamente” (190). O mercado é incapaz de tomar em consideração os
valores qualitativos, éticos, sociais, humanos ou naturais, isto é,
“valores que excedem todo e qualquer cálculo” (36).
O poder “absoluto” do capital financeiro especulativo é um aspecto
essencial do sistema, como mostrou a recente crise bancária. O
comentário da carta encíclica é radical e desmistificador. “A salvação
dos bancos a todo custo, fazendo pagar o preço à população, sem a firme
decisão de rever e reformar o sistema inteiro, reafirma um domínio
absoluto da finança que não tem futuro e só poderá gerar novas crises
depois duma longa, custosa e aparente cura. A crise financeira dos anos
2007 e 2008 era a ocasião para o desenvolvimento duma nova economia mais
atenta aos princípios éticos e para uma nova regulamentação da
atividade financeira especulativa e da riqueza virtual. Mas não houve
uma reação que fizesse repensar os critérios obsoletos que continuam a
governar o mundo” (189).
Esta dinâmica perversa do sistema global que “continua a governar o
mundo” é a razão que conduziu as Reuniões das Cúpulas Mundiais sobre o
meio ambiente: “há demasiados interesses particulares e, com muita
facilidade, o interesse econômico chega a prevalecer sobre o bem comum e
manipular a informação para não ver afetados os seus projetos” (54).
Desde que os imperativos dos grupos econômicos poderosos predominem
“poder-se-á esperar apenas algumas proclamações superficiais, ações
filantrópicas isoladas e ainda esforços por mostrar a sensibilidade para
com o meio ambiente, enquanto, na realidade, qualquer tentativa das
organizações sociais para alterar as coisas será vista como um distúrbio
provocado por sonhadores românticos ou como um obstáculo a superar”
(54).
Neste contexto, a Encíclica desenvolve uma crítica radical face à
irresponsabilidade dos “responsáveis”, isto é, as elites dominantes, as
oligarquias interessadas pela conservação do sistema, em relação à crise
ecológica: “Muitos daqueles que detêm mais recursos e poder econômico
ou político parecem concentrar-se sobretudo em mascarar os problemas ou
ocultar os seus sintomas, procurando apenas reduzir alguns impactos
negativos de mudanças climáticas. Mas muitos sintomas indicam que tais
efeitos poderão ser cada vez piores, se continuarmos com os modelos
atuais de produção e consumo” (26).
Face ao dramático processo de destruição dos equilíbrios ecológicos
do planeta e a ameaça sem precedentes que representa a mudança
climática, o que propõem os governos, ou os representantes
internacionais do sistema (Banco Mundial, FMI etc.)? Sua resposta é o
suposto “desenvolvimento sustentável”, um conceito cujo conteúdo
tornou-se cada vez mais vazio, um verdadeiro flatus vocis como
diziam os escolásticos da Idade Média. Francisco não se ilude com esta
mistificação tecnocrata: “o discurso do crescimento sustentável torna-se
um diversivo e um meio de justificação que absorve valores do discurso
ecologista dentro da lógica da finança e da tecnocracia, e a
responsabilidade social e ambiental das empresas reduz-se, na maior
parte dos casos, a uma série de ações de publicidade e imagem” (194).
As medidas concretas que a oligarquia técnico-financeira dominante
propõe são perfeitamente ineficazes, como por exemplo o dito “comércio
de emissões de carbono”. A crítica mordaz do papa a esta falsa solução é
um dos argumentos mais importantes da Encíclica.
Referindo-se a uma resolução da Conferência Episcopal Boliviana,
Bergoglio escreve: “A estratégia de compra e venda de ‘créditos de
emissão’ pode levar a uma nova forma de especulação, que não ajudaria a
reduzir a emissão global de gases poluentes. Este sistema parece ser uma
solução rápida e fácil, com a aparência dum certo compromisso com o
meio ambiente, mas que não implica de forma alguma uma mudança radical à
altura das circunstâncias. Pelo contrário, pode tornar-se um diversivo
que permite sustentar o consumo excessivo de alguns países e sectores”
(171). Passagens como essa explicam o pouco de entusiasmo dos círculos
“oficiais” e dos adeptos da “ecologia de mercado” (ou do “capitalismo
verde”) pela Laudato si’.
Se o diagnóstico da Laudato si’ sobre a crise ecológica é de
uma clareza e consistência impressionantes, as ações que ele propõe são
mais limitadas. Certamente, muitas de suas sugestões são úteis e
necessárias, por exemplo: “facilitar as formas de cooperação ou de
organização comunitária que defendam os interesses dos pequenos
produtores e salvaguardem da predação os ecossistemas locais” (180). É
também muito significativo que a Encíclica reconheça a necessidade das
sociedades mais desenvolvidas de “abrandar um pouco a marcha, pôr alguns
limites razoáveis e até mesmo retroceder antes que seja tarde”. Em
outras palavras, “chegou a hora de aceitar um certo decréscimo do
consumo nalgumas partes do mundo, fornecendo recursos para que se possa
crescer de forma saudável noutras partes” (193).
Mas faltam precisamente as “medidas drásticas”, como as propostas por Naomi Klein em seu livro This Changes Everything: Capitalism vs. the Climate:
romper, antes que seja tarde demais, com os combustíveis fósseis
(carvão, petróleo), deixando-os no subsolo. Não podemos modificar as
estruturas perversas do atual modo de produção e consumo sem um conjunto
de iniciativas antissistêmicas, que questionem a propriedade privada,
como a das grandes multinacionais dos combustíveis fósseis (BP, Shell,
Total, etc.). É certo que o papa menciona a utilidade de “grandes
estratégias que detenham eficazmente a degradação ambiental e incentivem
uma “cultura do cuidado” que permeie toda a sociedade” (231, p. 174),
mas esse aspecto estratégico é pouco desenvolvido na Encíclica.
Ao reconhecer que “o atual sistema mundial é insustentável” (61),
Bergoglio busca uma alternativa global, que ele chama de “cultura
ecológica”, uma mudança que “não se pode reduzir a uma série de
respostas urgentes e parciais para os problemas que vão surgindo à volta
da degradação ambiental, do esgotamento das reservas naturais e da
poluição. Deveria ser um olhar diferente, um pensamento, uma política,
um programa educativo, um estilo de vida e uma espiritualidade que
oponham resistência ao avanço do paradigma tecnocrático” (111). Mas há
poucas indicações sobre a nova economia e a nova sociedade que
correspondem a essa cultura ecológica. Não se trata de pedir ao papa que
adote o ecossocialismo, mas a alternativa futura permanece um tanto
abstrata.
O Papa Francisco endossa a “opção prioritária pelos pobres” das
igrejas latino-americanas. A Encíclica deixa isso claro, como um
imperativo planetário: “nas condições atuais da sociedade mundial, onde
há tantas desigualdades e são cada vez mais numerosas as pessoas
descartadas, privadas dos direitos humanos fundamentais, o princípio do
bem comum torna-se imediatamente, como consequência lógica e inevitável,
um apelo à solidariedade e uma opção preferencial pelos mais pobres”
(158).
Porém, na Encíclica, os pobres não aparecem como os agentes de sua
própria emancipação – o projeto mais importante na teologia da
libertação. A luta dos pobres, camponeses, indígenas, pela defesa das
florestas, da água, da terra, contra as multinacionais e o agrobusiness,
bem como o papel dos movimentos sociais, que são precisamente os
principais atores da luta climática – Via Campesina, Climate Justice, Fórum Social Mundial – constituem uma realidade social pouco presente na Laudato si’.
No entanto, esse será um tema central nas reuniões do papa com
movimentos populares, os primeiros da história da Igreja. Durante a
Reunião de Santa Cruz (Bolívia, julho de 2015), Francisco declarou:
“Vós, os mais humildes, os explorados, os pobres e excluídos, podeis e
fazeis muito. Atrevo-me a dizer que o futuro da humanidade está, em
grande medida, nas vossas mãos, na vossa capacidade de vos organizar e
promover alternativas criativas na busca diária dos três ‘T’ –
entendido? – (trabalho, teto, terra), e também na vossa participação
como protagonistas nos grandes processos de mudança, mudanças nacionais,
mudanças regionais e mudanças mundiais. Não se acanhem!”[ix]
Obviamente, como Bergoglio enfatiza na Encíclica, a tarefa da Igreja
não é substituir os partidos políticos, propondo um programa de mudança
social. Por seu diagnóstico antissistêmico da crise, associando
inseparavelmente a questão social e a proteção do meio ambiente, “o
clamor dos pobres” e “o clamor da terra”, Laudato si’ é uma
preciosa e inestimável contribuição para a reflexão e a ação no sentido
de salvar a natureza e a humanidade da catástrofe.
Aos marxistas, comunistas e ecossocialistas cabe completar esse
diagnóstico com propostas radicais de mudança, não apenas do sistema
econômico dominante, mas do modelo perverso de civilização imposto
globalmente pelo capitalismo. Propostas que incluam não apenas um
programa concreto de transição ecológica, mas também a visão de uma
outra forma de sociedade, além do reino do dinheiro e da mercadoria, com
base nos valores de liberdade, solidariedade, justiça social e respeito
pela natureza.
Notas
[i]. WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo, trad. José Marcos Mariani de Macedo. Companhia das Letras, São Paulo, 2017; n.p. Nota de fim de livro nº 50.[ii]. WEBER, Max. L’Éthique pritestante et l’esprit du capitalisme. Trad. Jean Pierre-Grossein, Paris, Gallimard. 2003, p.56. Tradução livre para o português.
[iii], Weber, Histoire economique (1923), Paris, Gallimard, 1991, p.375 (Tradução livre cotejada com: WEBER, Max. General Economic History. Translated by: Frank H. Knight P.h.D. The Free Press, Glencoe, Illinois, 1927
[iv]. ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. O Manifesto do Partido Comunista. Trad. Sérgio Tellarori. Companhia das Letras, São Paulo, 2012; n.p.
[v]. VON BAADER, Johannes. “Über des dermalige Missverhältnis der Vemögenslosen oder Proletairs..” (1835), in G.K Kaltenbranner (ed.), Sätze zur Erotische Philosophie, Frankfurt, Ihsel Verlag, 1991, p.181-182, 186.
[vi]. Los Obispos Latinoamericanos entre Medellin y Puebla, San Salvador, UCA, 1978, p.78. Tradução livre para o português da tradução pelo autor para o francês.
[vii]. http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2015/july/documents/papa-francesco_20150709_bolivia-movimenti-popolari.html
[viii]. Carta Encíclica Laudato Si’ do Santo Padre Francisco Sobre o Cuidado da Casa Comum. Disponível em: <http://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20150524_enciclica-laudato-si.html> acesso em 25/01/2020.
[ix]. Disponível em: <http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2015/july/documents/papa-francesco_20150709_bolivia-movimenti-popolari.html>. Acesso em: 25/01/2020
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OutrasMídias
Publicado 02/03/2020 às 18:49
Fonte: https://outraspalavras.net/outrasmidias/michel-lowy-explica-por-que-francisco-e-rebelde/
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