Mario Vargas Llosa*
Mulher caminha diante de grafite com mensagens religiosas que pedem
proteção
em diversas línguas, em Pamplona, na Espanha.Alvaro Barrientos / AP
(AP)
O coronavírus será uma pandemia passageira. O que não passará é o medo
da morte, que nos acompanha como uma sombra
O coronavírus começa a causar estragos na Espanha. Ou, melhor dizendo, o espanto causado
por esse vírus proveniente da China ocupa todos os noticiários e
rádios e jornais, escolas e universidades, bibliotecas e teatros foram
fechados, as Fallas de Valência foram paralisadas, as sessões plenárias das
Cortes foram suspensas, os eventos esportivos serão realizados sem público, apesar de
os distribuidores dizerem que haverá reposição as prateleiras dos supermercados
são vistas semivazias, o que indica que as pessoas carregam produtos de
primeira necessidade para o que entendem que será um longo isolamento, e,
claro, nas conversas privadas não se fala de outra coisa.
Tudo isso, em termos práticos, é muito exagerado, mas não há nada a
fazer: a Espanha tem medo, e os Governos, o nacional e os regionais, fazem
frente à pavorosa doença com medidas cada vez mais rigorosas, que, de uma maneira geral,
os espanhóis aprovam e, inclusive, exigem que sejam mais extensas e intensas. Estatísticas oficiais dizem que até o dia de hoje, 18 de
março, há 309 mortes por culpa da pandemia e que é por gosto que, por exemplo,
a simples gripe seja mais assassina que ela porque causa pelo menos
600 mortes anuais, e que são muitos mais os que se recuperam do coronavírus que
os que perecem por culpa dele, que a Espanha tem um dos melhores sistemas de
saúde do mundo —acima da média europeia— e que o trabalho que os médicos e
profissionais sanitários vêm realizado em todo o país é eficiente e está à altura
do desafio etc.
Jamais as estatísticas foram capazes de tranquilizar uma sociedade corroída pelo pânico, e esta é
uma boa ocasião para comprovar isso. Em meio à civilização reapareceu a Idade
Média, o que significa que muitas coisas mudaram desde então, mas muitas
outras, não. Por exemplo: o medo da peste. E, a propósito, a literatura tem um
renascer inevitável nestes períodos de medo coletivo: quando não entende o que
acontece, uma sociedade vai aos livros para ver se eles o explicam. O pior
romance de Albert Camus, A peste, tem um súbito renascimento e tanto na
França como na Espanha são feitas reedições, e esse livro medíocre se
transformou em um best-seller.
Ninguém parece notar que nada disso poderia estar ocorrendo no mundo se
a China Popular fosse um país livre e democrático, e não a ditadura que é. Pelo
menos um médico prestigioso, e talvez fossem vários, detectou esse vírus com
muita antecipação e, em vez de tomar medidas correspondentes, o Governo tentou
ocultar a notícia, silenciou essa voz ou essas vozes sensatas e tratou de
impedir que a notícia se difundisse, como fazem todas as ditaduras. Assim, como
em Chernobyl, perdeu-se muito tempo para encontrar uma vacina. Só se reconheceu a aparição da praga
quando esta já se expandia. É bom que ocorra isto agora e o mundo saiba de que
o verdadeiro progresso está mutilado sempre que não está acompanhado de
liberdade. Entenderão isso de uma vez esses insensatos que acreditam que o exemplo da China, ou seja, o mercado livre com uma ditadura
política, é um bom modelo para o Terceiro Mundo? Não existe tal coisa: o
ocorrido com o coronavírus deveria abrir os olhos dos cegos.
A peste foi ao longo da história um dos piores pesadelos da humanidade. Sobretudo na Idade Média. Era o que desesperava e
enlouquecia os nossos velhos ancestrais. Encerrados por trás das robustas
muralhas que tinham erigido para suas cidades, defendidos por fossos cheios de
águas envenenadas e pontes levadiças, não temiam tanto esses inimigos tangíveis
contra os quais podiam se defender de igual para igual, enfrentá-los com
espadas, facas e lanças. Mas a peste não era humana, era obra dos demônios, um
castigo de Deus que recaía sobre a massa cidadã e golpeava por igual pecadores
e inocentes, contra a qual não havia nada a fazer, salvo rezar e se arrepender
dos pecados cometidos. A morte estava ali, todo-poderosa, e depois dela as
chamas eternas do inferno. A irracionalidade eclodia em qualquer parte, e havia
cidades que tratavam de aplacar a praga infernal oferecendo-lhe sacrifícios
humanos, de bruxas, bruxos, incrédulos, pecadores não arrependidos, insubmissos
e rebeldes. Quando Flaubert viajou ao Egito, ainda viu leprosos que percorriam
as ruas tocando sinos para advertir às pessoas para que se afastassem se não
quisessem ver (e se contagiar com) suas chagas purulentas.
Por isso, a peste quase não aparece nas novelas de cavalarias, que são
outro aspecto, mais positivo, da Idade Média: nelas há proezas físicas
extraordinárias, Tirante, o Branco, derrota sozinho gigantescos exércitos. Mas
os adversários dos cavalheiros andantes são seres humanos, não diabos, e o que
o homem medieval teme são os diabos, esses demônios que, escondidos no coração
das epidemias, golpeiam e matam sem discriminar culpados e inocentes.
Esse velho terror não desapareceu de todo, apesar dos extraordinários
progressos da civilização. Todo mundo sabe que, como ocorreu com a AIDS e com o ebola, o coronavírus será uma
pandemia passageira, para a qual os cientistas dos países mais avançados logo
encontrarão uma vacina para nos defender contra ela, e que tudo isto terminará
e será, dentro de algum tempo, uma notícia murcha da qual as pessoas mal se
recordarão.
O que não passará é o medo da morte, do além, que é o que se aninha no
coração destes terrores coletivos que são o temor em relação às pestes. A
religião aplaca esse medo, mas nunca o extingue, sempre fica, no fundo dos
crentes, esse mal-estar que aumenta às vezes e se transforma em medo pânico, do
que haverá uma vez que se cruze aquele limiar que separa a vida do que há além
dela: a extinção total e para sempre? Essa fabulosa divisão entre o céu para os
bons e o inferno para os malvados de um deus brincalhão, que as religiões prognosticam?
Alguma outra forma de sobrevivência que não foram capazes de notar os sábios,
os filósofos, os teólogos, os cientistas? A peste de repente traz estas
perguntas, que na vida cotidiana normal estão confinadas nas profundezas da
personalidade humana, para o momento presente, e homens e mulheres devem
responder a elas, assumindo sua condição de seres passageiros. Para todos nós é
difícil aceitar que tudo de belo que tem a vida, a aventura permanente que ela
é ou poderia ser, é obra exclusiva da morte, de saber que em algum momento esta
vida terá ponto final. Que se a morte não existisse a vida seria imensamente
chata, sem aventura nem mistério, uma repetição cacofônica de experiências até
a saciedade mais truculenta e estúpida. Que é graças à morte que existem o
amor, o desejo, a fantasia, as artes, a ciência, os livros, a cultura, ou seja,
todas aquelas coisas que tornam a vida suportável, imprevisível e excitante. A
razão nos explica isso, mas a injustiça que também nos habita nos impede de
aceitá-lo. O terror à peste é, simplesmente, o medo da morte que nos
acompanhará sempre como uma sombra.
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*Jornalista, escritor e político peruano que em 2010 foi laureado com o Nobel de Literatura.
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