Paulo Roberto Pires*
Ilustração da procissão fúnebre de Pedro 2o para o Le Petit Journal (Paris, 1891) Bridgeman/Fotoarena
A capital francesa é uma espécie de puxadinho no imaginário dos brasileiros, que fizeram da cidade uma espécie de Pasárgada
“Moléstia
de Nabuco”, diz Mário de Andrade numa entrevista de 1925, “é isso de
vocês andarem sentindo saudade do cais do Sena em plena Quinta da Boa
Vista”. O diagnóstico nasce em cartas trocadas com Carlos Drummond de
Andrade. Aos 22 anos, escrevendo de um “lugarejo chamado Belo
Horizonte”, o jovem poeta mineiro confessa: “Acho lastimável essa
história de nascer em paisagens incultas e sob céus pouco civilizados”.
E, mais adiante, arremata: “É que nasci em Minas, quando deveria nascer
(não veja cabotinismo nesta confissão, peço-lhe!) em Paris”.
Definindo-se como “mau cidadão”, deplora o país “infecto” que o destino
lhe tocou e prefere alienar-se na pátria imaginada. Dramático, diz
sucumbir à “velha tragédia de Joaquim Nabuco” — homem cosmopolita para
quem a Amazônia não valia, como escreveu, “um pedaço do cais do Sena à
sombra do velho Louvre”.
Paris é uma espécie de puxadinho no imaginário
brasileiro e, também, na história do país. Gerações de graves e
frívolos, de intelectuais e dondocas, de exilados e vagabundos,
anteriores a Nabuco e posteriores a Drummond, fizeram da cidade uma
espécie de Pasárgada e, em momentos turbulentos da história, um porto
seguro bem concreto. Já em 1944, Brito Broca, o imenso e subestimado
ensaísta, observava na coluna “Brasileiros em Paris”: “O assunto
presta-se para um longo ensaio e mesmo para um livro”. Disperso,
inconstante, o autor do fundamental Vida literária no Brasil 1900
não nos legou nem um nem outro, ainda que tenha deixado incontáveis
pistas e sugestões de uma narrativa que vem sendo contada aos pedaços e
diz um pouco do que fomos, somos ou, principalmente, gostaríamos de ser.
Em A história do Brasil nas ruas de Paris
(Casa da Palavra, 2014), o jornalista Maurício Torres Assumpção mapeava
alguns dos ilustres inquilinos da cidade em que ele mesmo vive.
Especialista em Villa-Lobos, a francesa Anaïs Fléchet ampliou sua
pesquisa original em Madureira chorou… em Paris (Edusp, 2017),
cujas pretensões, no bom sentido, resumem-se no subtítulo “A música
popular brasileira na França do século 20”. O mais recente volume dessa
biblioteca idiossincrática, Les Brésiliens à Paris (Chandeigne,
2019), cita quase mil nomes (de brasileiros ou não) em 351 páginas de
verbetes. Sua autora, Adriana Brandão, é jornalista da Rádio França
Internacional e dedicou-se a personagens que passaram pela cidade “ao
longo dos séculos e dos arrondissements”. Associando biografias
ou anedotas aos distritos parisienses, Brandão vai de Catarina
Paraguaçu, indígena tupinambá do século 16, a Marielle Franco, presença
simbólica no jardim batizado em sua homenagem na rue d’Alsace.
Leito do imperador
A vida política brasileira está de diversas formas
associada a Paris. Foi num apartamento da rue Monsieur Le Prince, hoje
transformado em museu, que Augusto Comte, nos termos de sua própria
doutrina, “incorporou-se à Humanidade”, ou seja, passou desta para
melhor, deixando como legado os princípios positivistas que inspirariam a
peculiar República brasileira. Do outro lado do Sena, na margem
direita, o modesto hotel Bedford seria o derradeiro endereço de dom
Pedro 2o, o imperador deposto por militares positivistas de carteirinha,
tão convictos quanto os que criaram, na rue Payenne, a “Capela da
Humanidade”. Foi dinheiro brasileiro que comprou o prédio, no Marais,
onde teria morrido Clotilde de Vaux, a amada e inspiradora de Comte. O
fervor filosófico parece, no entanto, ter atrapalhado a precisão
histórica: nossos compatriotas, que patrocinaram o “ordem e progresso”
na bandeira da jovem República, simplesmente erraram de endereço. Quase
trinta anos depois de criado o santuário de peregrinação positivista,
descobriu-se que Clotilde se foi num apartamento do prédio ao lado.
Como todo periférico, o brasileiro idealiza sucesso e
reconhecimento além de suas fronteiras. Paris foi cenário de feitos
exaltados com o fervor da província e de admiráveis fracassos,
discretamente esquecidos. O mundo guarda, por exemplo, a imagem de
Santos Dumont sobrevoando a cidade em suas engenhocas — em 1903,
pilotando o dirigível número 9, “le petit Santos”, como era
conhecido o baixinho, aterrissou na porta de casa, na Champs Élysées,
tomou um café e continuou o passeio. Nem sempre a cidade teve céu de
brigadeiro: depois de experiências bem-sucedidas com dirigíveis, Augusto
Severo instalou-se em Paris para dedicar-se a voos literalmente mais
altos. Em 1902, o balão Pax chegou a subir quinhentos metros antes de
cair, em chamas, sobre a Avenue du Maine, em Montparnasse. Ele e seu
assistente, mortos instantaneamente, exibiam bandeirolas nas cores dos
dois países com o dístico: “O Brasil saúda a França”.
Valem um romance os seis meses de 1922 em que os
Oito Batutas ficaram em cartaz no Dancing Shérazade, na rue du Faubourg
Montmartre. Liderado por Pixinguinha, com Donga ao violão, o grupo
festejado por “uma alegria comunicativa formidável” também se
apresentaria no Chez Duque, casa noturna do bailarino brasileiro que foi
sensação na cidade. Baiano, Antonio Lopes de Amorim Diniz era dentista e
chegou a Paris em 1911, surfando na onda do maxixe, ritmo do qual se
tornou um mestre. Duque é um fascinante personagem secundário, assim
como Miss Bartira, paulista que se celebrizou como dançarina e cantora
nos anos 1930. Dela, pouco se sabe — há divergências até sobre seu nome
de batismo — além do fato de, na Ocupação, ter se tornado membro da
Resistência e, anos mais tarde, se fixado em Londres, supostamente
casada com um nobre inglês que conhecera na Argélia. “Miss Bartira é
mais do que bela”, escreve Colette num elogio eivado de exotismo e
racismo. “Ela canta pateticamente e seu pequeno rosto bronzeado,
mutante, apto a exprimir um feroz desdém, sua elegância esbelta e sua
variedade um pouco simiesca são os dons que nos fazem pensar em uma
Joséphine Baker debutante.”
Capital do espírito
Foi num navio entre o Rio de Janeiro e Paris que
Eufrásia Teixeira Leite e Joaquim Nabuco se conheceram. Para alguém que,
como Nabuco, idealizava a cidade como capital do espírito, viver nela
seu grande amor seria uma espécie de justiça poética. Não foi tranquilo,
lembra Adriana Brandão, o romance entre a milionária escravagista e o
jovem abolicionista. Às vésperas do casamento, Eufrásia voltou atrás,
tomada de ciúmes de uma ex-namorada que Nabuco reencontrara por acaso.
Por quatorze anos mantiveram uma relação complexa e tensa. Eufrásia
jamais se casou e morreu no Rio, em 1930. Sua fortuna tinha então
“decuplicado” e, aos moradores de rua do 20o arrondissement, onde vivia, deixou polpudos 20 mil francos.
Capital de todos os exílios, Paris teve uma imensa
população brasileira entre o início da ditadura militar e a
redemocratização. Militantes de todos os matizes circulavam pela cidade,
com parada certa no apartamento de Violeta Arraes, irmã de Miguel
Arraes e embaixadora informal dos exilados. Nas ruas, os expatriados
disputavam as cabines telefônicas que, em generosa pane técnica,
mantinham uma linha permanentemente aberta para o mundo. A partir de
1971, podia-se matar as saudades de casa na feijoada de sábado do Chez
Guy, restaurante da rue Mabillon que juntava Sartre e Vinicius de
Moraes, Françoise Sagan e Baden Powell. Os comensais nostálgicos da
terra ganhariam até um prato especial no La Rotonde, tradicional café de
Montparnasse: ao lado dos croques monsieur e madame, despontava no
cardápio o croque baourou, versão parisiense do sanduíche inventado em
São Paulo.
A lista de nomes é extensa e o emaranhado de
histórias, infinito. Uma entre as de que mais gosto não está contada
nesses livros e envolve um inequívoco doente da moléstia de Nabuco: o
poeta alagoano Guimarães Passos. Parnasiano de gosto duvidoso, membro da
Academia Brasileira de Letras, foi sobretudo boêmio, companheiro de
Olavo Bilac na noite e no jornal satírico O Filhote. Baqueado
pela tuberculose, parte em 1909 para a Ilha da Madeira em busca da cura.
Lá, com a saúde piorando e o dinheiro no fim, decide realizar seu maior
sonho: morrer em Paris. Depois de uma viagem atribulada, passando fome,
é encontrado num banco da Gare du Nord por outro brasileiro, J. A. de
Magalhães Castro, que o conhecia de vista. Graças ao acaso é levado a um
hospital e, no dia 9 de setembro, enterrado no Père Lachaise ao lado de
Balzac e La Fontaine, Michelet e Oscar Wilde, Comte e Daudet. Mas nem a
glória eterna é eterna: dez anos depois, seus restos mortais, junto com
os de Raimundo Correia, que também ficou pelo Père Lachaise em 1911,
foram repatriados pela abl.
Se o Brasil não é para principiantes, a Paris dos
brasileiros tampouco. A igreja onde, em 1891, se realizaram as suntuosas
exéquias de dom Pedro 2o recebe todos anos baianas e babalorixás para a
“Lavagem da Madeleine”. A cerimônia, instituída em setembro de 2002,
reafirma a importância da cultura afro-brasileira — hoje perseguida pelo
governo de extrema direita e seu gado neopentecostal. O antídoto para o
mal de Nabuco depura-se através da história e, mais do que bom, é
fundamental ter saudades da Igreja do Bonfim no coração da Rive Droite,
pisar em Montmartre com a cabeça na Lapa.
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* Jornalista, escritor, editor tradutor e professor de jornalismo da UFRJ.
Fonte: https://www.quatrocincoum.com.br/br/colunas/c/em-paris-como-os-brasileiros 01/03/2020
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