sexta-feira, 6 de março de 2020

Em Paris, como os brasileiros

 Paulo Roberto Pires*




Ilustração da procissão fúnebre de Pedro 2o para o Le Petit Journal (Paris, 1891) Bridgeman/Fotoarena
A capital francesa é uma espécie de puxadinho no imaginário dos brasileiros, que fizeram da cidade uma espécie de Pasárgada

“Moléstia de Nabuco”, diz Mário de Andrade numa entrevista de 1925, “é isso de vocês andarem sentindo saudade do cais do Sena em plena Quinta da Boa Vista”. O diagnóstico nasce em cartas trocadas com Carlos Drummond de Andrade. Aos 22 anos, escrevendo de um “lugarejo chamado Belo Horizonte”, o jovem poeta mineiro confessa: “Acho lastimável essa história de nascer em paisagens incultas e sob céus pouco civilizados”. E, mais adiante, arremata: “É que nasci em Minas, quando deveria nascer (não veja cabotinismo nesta confissão, peço-lhe!) em Paris”. Definindo-se como “mau cidadão”, deplora o país “infecto” que o destino lhe tocou e prefere alienar-se na pátria imaginada. Dramático, diz sucumbir à “velha tragédia de Joaquim Nabuco” — homem cosmopolita para quem a Amazônia não valia, como escreveu, “um pedaço do cais do Sena à sombra do velho Louvre”.

Paris é uma espécie de puxadinho no imaginário brasileiro e, também, na história do país. Gerações de graves e frívolos, de intelectuais e dondocas, de exilados e vagabundos, anteriores a Nabuco e posteriores a Drummond, fizeram da cidade uma espécie de Pasárgada e, em momentos turbulentos da história, um porto seguro bem concreto. Já em 1944, Brito Broca, o imenso e subestimado ensaísta, observava na coluna “Brasileiros em Paris”: “O assunto presta-se para um longo ensaio e mesmo para um livro”. Disperso, inconstante, o autor do fundamental Vida literária no Brasil 1900 não nos legou nem um nem outro, ainda que tenha deixado incontáveis pistas e sugestões de uma narrativa que vem sendo contada aos pedaços e diz um pouco do que fomos, somos ou, principalmente, gostaríamos de ser.

Em A história do Brasil nas ruas de Paris (Casa da Palavra, 2014), o jornalista Maurício Torres Assumpção mapeava alguns dos ilustres inquilinos da cidade em que ele mesmo vive. Especialista em Villa-Lobos, a francesa Anaïs Fléchet ampliou sua pesquisa original em Madureira chorou… em Paris (Edusp, 2017), cujas pretensões, no bom sentido, resumem-se no subtítulo “A música popular brasileira na França do século 20”. O mais recente volume dessa biblioteca idiossincrática, Les Brésiliens à Paris (Chandeigne, 2019), cita quase mil nomes (de brasileiros ou não) em 351 páginas de verbetes. Sua autora, Adriana Brandão, é jornalista da Rádio França Internacional e dedicou-se a personagens que passaram pela cidade “ao longo dos séculos e dos arrondissements”. Associando biografias ou anedotas aos distritos parisienses, Brandão vai de Catarina Paraguaçu, indígena tupinambá do século 16, a Marielle Franco, presença simbólica no jardim batizado em sua homenagem na rue d’Alsace.

Leito do imperador

A vida política brasileira está de diversas formas associada a Paris. Foi num apartamento da rue Monsieur Le Prince, hoje transformado em museu, que Augusto Comte, nos termos de sua própria doutrina, “incorporou-se à Humanidade”, ou seja, passou desta para melhor, deixando como legado os princípios positivistas que inspirariam a peculiar República brasileira. Do outro lado do Sena, na margem direita, o modesto hotel Bedford seria o derradeiro endereço de dom Pedro 2o, o imperador deposto por militares positivistas de carteirinha, tão convictos quanto os que criaram, na rue Payenne, a “Capela da Humanidade”. Foi dinheiro brasileiro que comprou o prédio, no Marais, onde teria morrido Clotilde de Vaux, a amada e inspiradora de Comte. O fervor filosófico parece, no entanto, ter atrapalhado a precisão histórica: nossos compatriotas, que patrocinaram o “ordem e progresso” na bandeira da jovem República, simplesmente erraram de endereço. Quase trinta anos depois de criado o santuário de peregrinação positivista, descobriu-se que Clotilde se foi num apartamento do prédio ao lado.

Como todo periférico, o brasileiro idealiza sucesso e reconhecimento além de suas fronteiras. Paris foi cenário de feitos exaltados com o fervor da província e de admiráveis fracassos,  discretamente esquecidos. O mundo guarda, por exemplo, a imagem de Santos Dumont sobrevoando a cidade em suas engenhocas — em 1903, pilotando o dirigível número 9, “le petit Santos”, como era conhecido o baixinho, aterrissou na porta de casa, na Champs Élysées, tomou um café e continuou o passeio. Nem sempre a cidade teve céu de brigadeiro: depois de experiências bem-sucedidas com dirigíveis, Augusto Severo instalou-se em Paris para dedicar-se a voos literalmente mais altos. Em 1902, o balão Pax chegou a subir quinhentos metros antes de cair, em chamas, sobre a Avenue du Maine, em Montparnasse. Ele e seu assistente, mortos instantaneamente, exibiam  bandeirolas nas cores dos dois países com o dístico: “O Brasil saúda a França”.

Valem um romance os seis meses de 1922 em que os Oito Batutas ficaram em cartaz no Dancing Shérazade, na rue du Faubourg Montmartre. Liderado por Pixinguinha, com Donga ao violão, o grupo festejado por “uma alegria comunicativa formidável” também se apresentaria no Chez Duque, casa noturna do bailarino brasileiro que foi sensação na cidade. Baiano, Antonio Lopes de Amorim Diniz era dentista e chegou a Paris em 1911, surfando na onda do maxixe, ritmo do qual se tornou um mestre. Duque é um fascinante personagem secundário, assim como Miss Bartira, paulista que se celebrizou como dançarina e cantora nos anos 1930. Dela, pouco se sabe — há divergências até sobre seu nome de batismo — além do fato de, na Ocupação, ter se tornado membro da Resistência e, anos mais tarde, se fixado em Londres, supostamente casada com um nobre inglês que conhecera na Argélia. “Miss Bartira é mais do que bela”, escreve Colette num elogio eivado de exotismo e racismo. “Ela canta pateticamente e seu pequeno rosto bronzeado, mutante, apto a exprimir um feroz desdém, sua elegância esbelta e sua variedade um pouco simiesca são os dons que nos fazem pensar em uma Joséphine Baker debutante.”

Capital do espírito

Foi num navio entre o Rio de Janeiro e Paris que Eufrásia Teixeira Leite e Joaquim Nabuco se conheceram. Para alguém que, como Nabuco, idealizava a cidade como capital do espírito, viver nela seu grande amor seria uma espécie de justiça poética. Não foi tranquilo, lembra Adriana Brandão, o romance entre a milionária escravagista e o jovem abolicionista. Às vésperas do casamento, Eufrásia voltou atrás, tomada de ciúmes de uma ex-namorada que Nabuco reencontrara por acaso. Por quatorze anos mantiveram uma relação complexa e tensa. Eufrásia jamais se casou e morreu no Rio, em 1930. Sua fortuna tinha então “decuplicado” e, aos moradores de rua do 20o arrondissement, onde vivia, deixou polpudos 20 mil francos.

Capital de todos os exílios, Paris teve uma imensa população brasileira entre o início da ditadura militar e a redemocratização. Militantes de todos os matizes circulavam pela cidade, com parada certa no apartamento de Violeta Arraes, irmã de Miguel Arraes e embaixadora informal dos exilados. Nas ruas, os expatriados disputavam as cabines telefônicas que, em generosa pane técnica, mantinham uma linha permanentemente aberta para o mundo. A partir de 1971, podia-se matar as saudades de casa na feijoada de sábado do Chez Guy, restaurante da rue Mabillon que juntava Sartre e Vinicius de Moraes, Françoise Sagan e Baden Powell. Os comensais nostálgicos da terra ganhariam até um prato especial no La Rotonde, tradicional café de Montparnasse: ao lado dos croques monsieur e madame, despontava no cardápio o croque baourou, versão parisiense do sanduíche inventado em São Paulo.

A lista de nomes é extensa e o emaranhado de histórias, infinito. Uma entre as de que mais gosto não está contada nesses livros e envolve um inequívoco doente da moléstia de Nabuco: o poeta alagoano Guimarães Passos. Parnasiano de gosto duvidoso, membro da Academia Brasileira de Letras, foi sobretudo boêmio, companheiro de Olavo Bilac na noite e no jornal satírico O Filhote. Baqueado pela tuberculose, parte em 1909 para a Ilha da Madeira em busca da cura. Lá, com a saúde piorando e o dinheiro no fim, decide realizar seu maior sonho: morrer em Paris. Depois de uma viagem atribulada, passando fome, é encontrado num banco da Gare du Nord por outro brasileiro, J. A. de Magalhães Castro, que o conhecia de vista. Graças ao acaso é levado a um hospital e, no dia 9 de setembro, enterrado no Père Lachaise ao lado de Balzac e La Fontaine, Michelet e Oscar Wilde, Comte e Daudet. Mas nem a glória eterna é eterna: dez anos depois, seus restos mortais, junto com os de Raimundo Correia, que também ficou pelo Père Lachaise em 1911, foram repatriados pela abl.

Se o Brasil não é para principiantes, a Paris dos brasileiros tampouco. A igreja onde, em 1891, se realizaram as suntuosas exéquias de dom Pedro 2o recebe todos anos baianas e babalorixás para a “Lavagem da Madeleine”. A cerimônia, instituída em setembro de 2002, reafirma a importância da cultura afro-brasileira — hoje perseguida pelo governo de extrema direita e seu gado neopentecostal. O antídoto para o mal de Nabuco depura-se através da história e, mais do que bom, é fundamental ter saudades da Igreja do Bonfim no coração da Rive Droite, pisar em Montmartre com a cabeça na Lapa.
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* Jornalista, escritor, editor tradutor e professor de jornalismo da UFRJ.
Fonte:  https://www.quatrocincoum.com.br/br/colunas/c/em-paris-como-os-brasileiros 01/03/2020

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