sexta-feira, 20 de março de 2020

ROBERTO GIANNETTI DA FONSECA: Política externa brasileira é ingênua ao ver os EUA como redenção

Roberto Giannetti da Fonseca*
 
 FOTO Nelson Provazi

Atual política externa brasileira é dominada por uma posição infantil e ingênua de pensar os EUA como uma redenção. Não podemos adotar posicionamento de entrega cega

“The world turns and the world changes...” T. S. Eliot

Ao ler o brilhante e lúcido ensaio intitulado “O que o Brasil quer da China?”, de Philip Yang, publicado no Valor em 14 de fevereiro, foi possível realizar uma intensa reflexão sobre o conjunto de políticas públicas que em sintonia com empreendedores privados poderiam certamente ajudar o país a sair do embotamento econômico em que se encontra nas últimas décadas. De início ao fim desse longo ensaio, com forte componente da sua experiência pessoal e profissional, o autor perpassa em seu texto um sentimento de perplexidade, incômodo, inquietação e, sobretudo, de dúvida em relação ao nosso futuro e aos cursos de ação possíveis com relação às cidades, aos investimentos públicos e privados, ao  papel da diplomacia, aos símbolos e narrativas que podem nos unir como uma sociedade coesa e moderna.

Não se tratou, portanto, de um artigo de política externa em si. Compõe o texto um conjunto de reflexões sobre o etos brasileiro em contraste com o chinês, o processo de desenvolvimento econômico e social de cada um dos dois países, especialmente a importância do meio urbano para a inserção internacional do Brasil, em parceria estratégica com a China, no ambiente da nova economia.

Diante da abrangência do texto de Yang, li, surpreso, a reação do Itamaraty publicada na edição da semana passada do Valor, sob a forma de artigo assinado pelo diplomata Alberto Coelho Fonseca, responsável pela gestão estratégica do gabinete do ministro das Relações Exteriores. Curiosa reação a do Ministério das Relações Exteriores (MRE) ao decidir  se posicionar sobre um ensaio de reflexões livres com temas amplos de políticas públicas. Supõe-se que o MRE, ou o chanceler, se sentiu atingido pelas conjecturas contidas no texto original.

Na verdade, o amplo escopo temático e o arco temporal da crítica contida no texto de Yang, que envolve diferentes períodos e governos ao longo de décadas, já cumpriu um bom papel ao provocar um posicionamento oficial. Lamenta-se apenas que o MRE assumiu uma atitude defensiva e reducionista ao criticar o ensaio exclusivamente pela ótica burocrática e sem realmente buscar entender a abrangência do ensaio.

Dado que a reação governamental foi feita, comentarei então, pela importância do debate democrático, os elementos de seu conteúdo, uma vez que carregam informações relevantes acerca da visão de mundo do atual governo e me permitem assim compartilhar com o leitor as tantas indagações que, à luz da força original do ensaio de Yang, o texto burocrático do Itamaraty me suscita.

A resposta do governo, como era de se esperar de qualquer posicionamento institucional, é firme e carregada de certezas oficiais. Não poderia ser diferente. Numa resposta institucional, é natural e imperativo que o poder público se manifeste de maneira inequívoca, decidida e peremptória. Mas tamanha convicção de infalibilidade, embora incisiva, não deixa de, ao mesmo tempo, gerar dúvidas, ante a estreita compreensão que o texto ministerial demonstrou carregar.

A crítica de Coelho Fonseca, escrita na forma de promoção das políticas levadas a efeito pelo governo Bolsonaro, está dividida em duas partes. Na primeira, o texto comenta as relações Brasil-EUA a partir de registro de um suposto sucesso da aproximação com Washington empreendida pela diplomacia externa do atual governo. Na parte seguinte, para refutar crítica de Yang à política brasileira para a China, passa em revista os diversos eventos recentes que teriam configurado uma “parceria estratégica bilateral” com os chineses. Tomo esta oportunidade para comentar esses dois temas.

A ansiedade defensiva do representante do Itamaraty parece prejudicar ou distorcer a sua leitura do passado, do presente como das tendências do futuro. Quanto ao passado, escapa a Coelho Fonseca que a aproximação com os EUA deixou de acontecer não por nossa falta de vontade, mas porque fomos recorrentemente preteridos pelos EUA. Foi assim, por exemplo, quando Washington deu prioridade a outros temas da agenda internacional, sobretudo nos derivados da longínqua Guerra Fria do século XX, como nos conflitos do Oriente Médio, nos quais tivemos papel marginal em função de nossa condição geopolítica periférica, conforme nos recorda Yang no seu enfático ensaio.

Por pertencer a uma instituição exemplo, quando Washington deu prioridade a outros temas da agenda internacional, sobretudo nos derivados da longínqua Guerra Fria do século XX, como nos conflitos do Oriente Médio, nos quais tivemos papel marginal em função de nossa condição geopolítica periférica, conforme nos recorda Yang no seu enfático ensaio.

Por pertencer a uma instituição que tem a obrigação de prezar pela defesa de interesses permanentes da nação, é estranho da parte do diplomata Coelho Fonseca desconhecer os esforços do passado, mesmo que incompletos, ao afirmar que “foi-se meio século de experimentos de política externa que pouco rendeu ao país em termos de resultados concretos de prosperidade e qualidade de vida para o cidadão comum”.

Sabemos todos que, no passado, a busca de relacionamento preferencial com os Estados Unidos só foi abandonada pelo Brasil quando constatamos que tal desejo não era compartilhado por Washington. Como em qualquer relacionamento, uma parceria envolve ao menos duas vontades. Não podemos esquecer a célebre frase de Juracy Magalhães(1905-2001), ex-embaixador do Brasil em Washington e depois chanceler, que expressou a busca desesperada e subserviente de uma aproximação com os EUA: “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”.

A análise do presente parece igualmente turva. O texto se inicia com um enaltecimento dos resultados do recente encontro Trump-Bolsonaro e prossegue com afirmação de que “é uma relação especial (...) que o Brasil hoje busca consolidar com os EUA, ainda que com quase 50 anos de atraso” (grifo meu). É nesta afirmação resoluta do diplomata que reside a precariedade central para o leitor refletir por si mesmo: 1. Não estará o atual chanceler apenas repetindo algo tentado várias vezes e reiteradamente fracassado no passado?; 2. Considerando esses “quase 50 anos de atraso”, não seria mais sábio buscarmos outras parcerias considerando que (a) o eixo de poder mundial se desloca de forma evidente para a Ásia e (b) fomos historicamente preteridos em diversas ocasiões pelos EUA?; 3. Tudo indica que a atual direção do Itamaraty não se deu conta ou prefere omitir de que o mundo mudou profundamente nestas cinco décadas.

E, olhando criticamente as posições da diplomacia brasileira e americana hoje, nada do que está em jogo parece constituir um movimento equiparável a uma ação de alta estratégia. Nesse contexto, talvez as questões sobre as quais devamos refletir sejam as seguintes: - Será que os acenos de contrapartida que a administração Trump nos faz são de alguma relevância transformadora? De que vale, por exemplo, um status de aliado extra-Otan quando, do ponto de vista geoestratégico, não sofremos nenhum tipo de ameaça externa grave?

Num outro exemplo, os EUA nos acenam com apoio para o acesso do Brasil à OCDE. O apoio que nos é agora oferecido ocorre depois de Washington ter-nos preterido em favor da Argentina, gesto extremamente adverso a pretensa parceria bilateral e que só foi revertido em função da recente eleição de Alberto Fernández no país vizinho.

Me choca pensar que, como em tantos outros episódios recentes (apoio brasileiro ao candidato apoiado pelos EUA à OMPI, isenção unilateral de vistos a americanos, abandono da condição de país em desenvolvimento nas negociações da OMC), façamos uma concessão gratuita aos americanos em detrimento de nossos interesses nacionais de longo prazo. Entre eles, o mais sensível para o futuro do país se refere hoje à implantação da infraestrutura 5G, tecnologia fundamental para a inserção do Brasil na Revolução Industrial 4.0. Corremos o risco de ver nossa diplomacia presidencial sucumbir às pressões de Trump para que fechemos as portas à concorrência chinesa? Tal decisão faria sentido para o Brasil? Os EUA nem sequer dispõem ainda de soluções tecnológicas convincentes para o 5G. Eis outra questão central que o ensaio de Yang evoca e está ausente na crítica do Itamaraty.

No tocante ao futuro, tampouco parece estar presente na diplomacia atual uma leitura de tendências de longo prazo. Fazia bastante sentido buscar um relacionamento privilegiado com os EUA na passagem do século XIX para o século XX, quando o país da América do Norte emergia como grande potência. Um século mais tarde, a política externa bolsonarista busca a qualquer custo esse mesmo alinhamento a Washington, tantas vezes fracassado no passado.

Tal ação diplomática, como hoje empreendida, não faz mais nenhum sentido. Num mundo que tem a China como potência econômica emergente e líder de inovação em diversos segmentos da nova economia, num sistema internacional com diversos polos de poder, a propalada aproximação Bolsonaro-Trump estaria refletindo o melhor curso de ação internacional? Eis a questão suscitada por Yang e que precisa ser permanentemente levada em consideração na formulação de nossas políticas, nos diversos domínios da vida pública e privada.

O ataque mais contundente de Coelho Fonseca foi dirigido à crítica que Yang desferiu à atual condução da política externa brasileira para a China. Mais uma vez, ao fazer uma defesa burocrática do posicionamento brasileiro, o assessor do chanceler arrola listagem de ações meramente protocolares que compõem a pauta sino-brasileira. Limito-me aqui a convidar o leitor a distinguir, entre os tantos tópicos indicados, quais são os itens meramente retóricos e quais poderiam ser considerados de efetivo impacto estratégico ou que, de alguma forma, possam alterar a dinâmica das relações bilaterais ou, ainda, as condições de inserção internacional do Brasil. O leitor terá em mãos um exemplo clássico de agenda vazia, preenchida apenas de palavrório inerte e destituído de substância.

Cito apenas um exemplo. De forma veemente, Coelho Fonseca defende o atual governo da crítica feita à condução da política brasileira para a China, caracterizada por Yang como “utilitarista e tacanha” e “destituída de valores civilizacionais”. Ao fazê-lo, o assessor do chanceler indica, por exemplo, que na recente declaração conjunta firmada pelos presidentes Jair Bolsonaro e Xi Jinping, o atual governo “defende intercâmbio mais intenso de cientistas e realização de pesquisas e projetos conjuntos em ciência, tecnologia e inovação”.

Talvez tenha escapado ao representante do Itamaraty que, semanas após o “compromisso” perante os chineses, uma portaria publicada pelo Ministério da Educação limitou drasticamente as viagens de cientistas e acadêmicos, inviabilizando qualquer intercâmbio conforme prometido aos chineses. (A portaria foi depois cancelada diante dos protestos e da revolta da comunidade científica brasileira, porém persistem diversas limitações para as atividades científicas e acadêmicas, num vai e vem claro que temos uma completa desarticulação entre o que se assina e o que se pratica)

O ensaio de Yang deixa claro que uma nova relação realmente estratégica com a China não poderá nem deverá limitar nossas interações livres e soberanas com outras nações. Muito pelo contrário, só devemos seguir o que possa nos fortalecer, inclusive para aumentar nosso potencial de relacionamento com outros países e regiões. Também sublinhou que, objetivamente, os Estados Unidos são nossos concorrentes e competem conosco nas principais pautas do nosso comércio exterior, sobretudo no setor no qual somos uma grande potência econômica, o agropecuário.

Outro ponto central: o que o Brasil mais necessita é de investimentos, sobretudo em infraestrutura, tanto urbana, enfatizada por Yang, mas com urgência em logística geral, incluindo portos e ferrovias, até mesmo para reduzir os custos dos nossos produtos agropecuários e assim competir em condições ainda melhores com nosso maior concorrente, os Estados Unidos.

Nesse contexto da nossa necessidade de investimentos, cabe indicar, em primeiro lugar, que os EUA têm uma estrutura econômica e institucional onde o governo não detém poder efetivo para viabilizar programas e projetos produtivos. Em contraste, a China é o país do mundo com a maior capacidade efetiva para decidir e implementar programas e projetos de investimento sob decisão governamental.

Em segundo lugar, os Estados Unidos não têm disponibilidade de capital próprio por apresentar, como o Brasil, baixíssima taxa de poupança, sendo inclusive o maior importador global de capital, sendo a China o seu maior financiador, tanto público quanto privado; aqui mais uma vez os EUA competem com o Brasil.

Tendo em vista essas e outras razões objetivas, a atual política externa brasileira é dominada por uma posição infantil e ingênua de pensar os Estados Unidos como uma redenção. Não podemos adotar posicionamento de entrega cega, de juras a bandeiras de quem quer que seja, ainda mais sendo os EUA claramente nossos maiores concorrentes, mesmo que “amigos” e parceiros em diversos setores relevantes.

Parece não haver no atual Itamaraty a distinção entre a grande e a pequena política, o retórico e o efetivo, o burocrático e o estratégico, o conjuntural e o estrutural, a ideologia e os reais interesses da nação. Fica pois aqui a recomendação de lerem o ensaio original de Philip Yang.
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* Roberto Giannetti da Fonseca é economista pela USP, dirigente  e consultor da Kaduna Consultoria. Foi diretor titular de Relações Internacionais e Comércio Exterior da Fiesp; secretário-executivo da Camex no governo FHC (2000-2002) e presidente da Funcex (2004-2009), um dos pioneiros nas relações econômicas do Brasil com a China.

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