Roberto Giannetti da Fonseca*
FOTO Nelson Provazi
Atual política externa brasileira é dominada
por uma posição infantil e ingênua de pensar os EUA como uma redenção. Não
podemos adotar posicionamento de entrega cega
“The world turns and the world changes...” T.
S. Eliot
Ao ler o brilhante
e lúcido ensaio intitulado “O que o Brasil quer da China?”, de Philip Yang,
publicado no Valor em 14 de fevereiro, foi possível realizar uma intensa
reflexão sobre o conjunto de políticas públicas que em sintonia com
empreendedores privados poderiam certamente ajudar o país a sair do embotamento
econômico em que se encontra nas últimas décadas. De início ao fim desse longo
ensaio, com forte componente da sua experiência pessoal e profissional, o autor
perpassa em seu texto um sentimento de perplexidade, incômodo, inquietação e,
sobretudo, de dúvida em relação ao nosso futuro e aos cursos de ação possíveis
com relação às cidades, aos investimentos públicos e privados, ao papel da diplomacia, aos símbolos e narrativas
que podem nos unir como uma sociedade coesa e moderna.
Não se tratou,
portanto, de um artigo de política externa em si. Compõe o texto um conjunto de
reflexões sobre o etos brasileiro em contraste com o chinês, o processo de
desenvolvimento econômico e social de cada um dos dois países, especialmente a
importância do meio urbano para a inserção internacional do Brasil, em parceria
estratégica com a China, no ambiente da nova economia.
Diante da
abrangência do texto de Yang, li, surpreso, a reação do Itamaraty publicada na
edição da semana passada do Valor, sob a forma de artigo assinado pelo
diplomata Alberto Coelho Fonseca, responsável pela gestão estratégica do
gabinete do ministro das Relações Exteriores. Curiosa reação a do Ministério
das Relações Exteriores (MRE) ao decidir se posicionar sobre um ensaio de reflexões
livres com temas amplos de políticas públicas. Supõe-se que o MRE, ou o
chanceler, se sentiu atingido pelas conjecturas contidas no texto original.
Na verdade, o amplo
escopo temático e o arco temporal da crítica contida no texto de Yang, que
envolve diferentes períodos e governos ao longo de décadas, já cumpriu um bom
papel ao provocar um posicionamento oficial. Lamenta-se apenas que o MRE
assumiu uma atitude defensiva e reducionista ao criticar o ensaio exclusivamente
pela ótica burocrática e sem realmente buscar entender a abrangência do ensaio.
Dado que a reação
governamental foi feita, comentarei então, pela importância do debate
democrático, os elementos de seu conteúdo, uma vez que carregam informações
relevantes acerca da visão de mundo do atual governo e me permitem assim
compartilhar com o leitor as tantas indagações que, à luz da força original do
ensaio de Yang, o texto burocrático do Itamaraty me suscita.
A resposta do
governo, como era de se esperar de qualquer posicionamento institucional, é
firme e carregada de certezas oficiais. Não poderia ser diferente. Numa
resposta institucional, é natural e imperativo que o poder público se manifeste
de maneira inequívoca, decidida e peremptória. Mas tamanha convicção de
infalibilidade, embora incisiva, não deixa de, ao mesmo tempo, gerar dúvidas,
ante a estreita compreensão que o texto ministerial demonstrou carregar.
A crítica de Coelho
Fonseca, escrita na forma de promoção das políticas levadas a efeito pelo
governo Bolsonaro, está dividida em duas partes. Na primeira, o texto comenta
as relações Brasil-EUA a partir de registro de um suposto sucesso da
aproximação com Washington empreendida pela diplomacia externa do atual
governo. Na parte seguinte, para refutar crítica de Yang à política brasileira
para a China, passa em revista os diversos eventos recentes que teriam
configurado uma “parceria estratégica bilateral” com os chineses. Tomo esta
oportunidade para comentar esses dois temas.
A ansiedade defensiva do representante do Itamaraty parece prejudicar ou
distorcer a sua leitura do passado, do presente como das tendências do futuro.
Quanto ao passado, escapa a Coelho Fonseca que a aproximação com os EUA deixou
de acontecer não por nossa falta de vontade, mas porque fomos recorrentemente
preteridos pelos EUA. Foi assim, por exemplo, quando Washington deu prioridade
a outros temas da agenda internacional, sobretudo nos derivados da longínqua
Guerra Fria do século XX, como nos conflitos do Oriente Médio, nos quais
tivemos papel marginal em função de nossa condição geopolítica periférica,
conforme nos recorda Yang no seu enfático ensaio.
Por pertencer a uma instituição exemplo, quando Washington deu
prioridade a outros temas da agenda internacional, sobretudo nos derivados da
longínqua Guerra Fria do século XX, como nos conflitos do Oriente Médio, nos
quais tivemos papel marginal em função de nossa condição geopolítica
periférica, conforme nos recorda Yang no seu enfático ensaio.
Por pertencer a uma instituição que tem a obrigação de prezar pela
defesa de interesses permanentes da nação, é estranho da parte do diplomata
Coelho Fonseca desconhecer os esforços do passado, mesmo que incompletos, ao
afirmar que “foi-se meio século de experimentos de política externa que pouco
rendeu ao país em termos de resultados concretos de prosperidade e qualidade de
vida para o cidadão comum”.
Sabemos todos que, no passado, a busca de relacionamento preferencial
com os Estados Unidos só foi abandonada pelo Brasil quando constatamos que tal
desejo não era compartilhado por Washington. Como em qualquer relacionamento,
uma parceria envolve ao menos duas vontades. Não podemos esquecer a célebre
frase de Juracy Magalhães(1905-2001), ex-embaixador do Brasil em Washington e
depois chanceler, que expressou a busca desesperada e subserviente de uma
aproximação com os EUA: “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o
Brasil”.
A análise do presente parece igualmente turva. O texto se inicia com um
enaltecimento dos resultados do recente encontro Trump-Bolsonaro e prossegue
com afirmação de que “é uma relação especial (...) que o Brasil hoje busca
consolidar com os EUA, ainda que com quase 50 anos de atraso” (grifo meu). É
nesta afirmação resoluta do diplomata que reside a precariedade central para o
leitor refletir por si mesmo: 1. Não estará o atual chanceler apenas repetindo
algo tentado várias vezes e reiteradamente fracassado no passado?; 2.
Considerando esses “quase 50 anos de atraso”, não seria mais sábio buscarmos
outras parcerias considerando que (a) o eixo de poder mundial se desloca de
forma evidente para a Ásia e (b) fomos historicamente preteridos em diversas
ocasiões pelos EUA?; 3. Tudo indica que a atual direção do Itamaraty não se deu
conta ou prefere omitir de que o mundo mudou profundamente nestas cinco
décadas.
E, olhando criticamente as posições da diplomacia brasileira e americana
hoje, nada do que está em jogo parece constituir um movimento equiparável a uma
ação de alta estratégia. Nesse contexto, talvez as questões sobre as quais
devamos refletir sejam as seguintes: - Será que os acenos de contrapartida que
a administração Trump nos faz são de alguma relevância transformadora? De que
vale, por exemplo, um status de aliado extra-Otan quando, do ponto de vista
geoestratégico, não sofremos nenhum tipo de ameaça externa grave?
Num outro exemplo, os EUA nos acenam com apoio para o acesso do Brasil à
OCDE. O apoio que nos é agora oferecido ocorre depois de Washington ter-nos
preterido em favor da Argentina, gesto extremamente adverso a pretensa parceria
bilateral e que só foi revertido em função da recente eleição de Alberto
Fernández no país vizinho.
Me choca pensar que, como em tantos outros episódios recentes (apoio
brasileiro ao candidato apoiado pelos EUA à OMPI, isenção unilateral de vistos
a americanos, abandono da condição de país em desenvolvimento nas negociações
da OMC), façamos uma concessão gratuita aos americanos em detrimento de nossos
interesses nacionais de longo prazo. Entre eles, o mais sensível para o futuro
do país se refere hoje à implantação da infraestrutura 5G, tecnologia
fundamental para a inserção do Brasil na Revolução Industrial 4.0. Corremos o
risco de ver nossa diplomacia presidencial sucumbir às pressões de Trump para
que fechemos as portas à concorrência chinesa? Tal decisão faria sentido para o
Brasil? Os EUA nem sequer dispõem ainda de soluções tecnológicas convincentes
para o 5G. Eis outra questão central que o ensaio de Yang evoca e está ausente
na crítica do Itamaraty.
No tocante ao futuro, tampouco parece estar presente na diplomacia atual
uma leitura de tendências de longo prazo. Fazia bastante sentido buscar um
relacionamento privilegiado com os EUA na passagem do século XIX para o século
XX, quando o país da América do Norte emergia como grande potência. Um século
mais tarde, a política externa bolsonarista busca a qualquer custo esse mesmo alinhamento
a Washington, tantas vezes fracassado no passado.
Tal ação diplomática, como hoje empreendida, não faz mais nenhum
sentido. Num mundo que tem a China como potência econômica emergente e líder de
inovação em diversos segmentos da nova economia, num sistema internacional com
diversos polos de poder, a propalada aproximação Bolsonaro-Trump estaria
refletindo o melhor curso de ação internacional? Eis a questão suscitada por
Yang e que precisa ser permanentemente levada em consideração na formulação de
nossas políticas, nos diversos domínios da vida pública e privada.
O ataque mais contundente de Coelho Fonseca foi dirigido à crítica que
Yang desferiu à atual condução da política externa brasileira para a China. Mais
uma vez, ao fazer uma defesa burocrática do posicionamento brasileiro, o
assessor do chanceler arrola listagem de ações meramente protocolares que
compõem a pauta sino-brasileira. Limito-me aqui a convidar o leitor a
distinguir, entre os tantos tópicos indicados, quais são os itens meramente
retóricos e quais poderiam ser considerados de efetivo impacto estratégico ou que,
de alguma forma, possam alterar a dinâmica das relações bilaterais ou, ainda,
as condições de inserção internacional do Brasil. O leitor terá em mãos um
exemplo clássico de agenda vazia, preenchida apenas de palavrório inerte e
destituído de substância.
Cito apenas um exemplo. De forma veemente, Coelho Fonseca defende o
atual governo da crítica feita à condução da política brasileira para a China,
caracterizada por Yang como “utilitarista e tacanha” e “destituída de valores
civilizacionais”. Ao fazê-lo, o assessor do chanceler indica, por exemplo, que
na recente declaração conjunta firmada pelos presidentes Jair Bolsonaro e Xi
Jinping, o atual governo “defende intercâmbio mais intenso de cientistas e
realização de pesquisas e projetos conjuntos em ciência, tecnologia e
inovação”.
Talvez tenha escapado ao representante do Itamaraty que, semanas após o
“compromisso” perante os chineses, uma portaria publicada pelo Ministério da
Educação limitou drasticamente as viagens de cientistas e acadêmicos,
inviabilizando qualquer intercâmbio conforme prometido aos chineses. (A
portaria foi depois cancelada diante dos protestos e da revolta da comunidade
científica brasileira, porém persistem diversas limitações para as atividades
científicas e acadêmicas, num vai e vem claro que temos uma completa
desarticulação entre o que se assina e o que se pratica)
O ensaio de Yang deixa claro que uma nova relação realmente estratégica
com a China não poderá nem deverá limitar nossas interações livres e soberanas
com outras nações. Muito pelo contrário, só devemos seguir o que possa nos
fortalecer, inclusive para aumentar nosso potencial de relacionamento com
outros países e regiões. Também sublinhou que, objetivamente, os Estados Unidos
são nossos concorrentes e competem conosco nas principais pautas do nosso
comércio exterior, sobretudo no setor no qual somos uma grande potência
econômica, o agropecuário.
Outro ponto central: o que o Brasil mais necessita é de investimentos,
sobretudo em infraestrutura, tanto urbana, enfatizada por Yang, mas com urgência
em logística geral, incluindo portos e ferrovias, até mesmo para reduzir os
custos dos nossos produtos agropecuários e assim competir em condições ainda
melhores com nosso maior concorrente, os Estados Unidos.
Nesse contexto da nossa necessidade de investimentos, cabe indicar, em
primeiro lugar, que os EUA têm uma estrutura econômica e institucional onde o
governo não detém poder efetivo para viabilizar programas e projetos
produtivos. Em contraste, a China é o país do mundo com a maior capacidade
efetiva para decidir e implementar programas e projetos de investimento sob
decisão governamental.
Em segundo lugar, os Estados Unidos não têm disponibilidade de capital
próprio por apresentar, como o Brasil, baixíssima taxa de poupança, sendo
inclusive o maior importador global de capital, sendo a China o seu maior
financiador, tanto público quanto privado; aqui mais uma vez os EUA competem
com o Brasil.
Tendo em vista essas e outras razões objetivas, a atual política externa
brasileira é dominada por uma posição infantil e ingênua de pensar os Estados
Unidos como uma redenção. Não podemos adotar posicionamento de entrega cega, de
juras a bandeiras de quem quer que seja, ainda mais sendo os EUA claramente
nossos maiores concorrentes, mesmo que “amigos” e parceiros em diversos setores
relevantes.
Parece não haver no atual Itamaraty a distinção entre a grande e a
pequena política, o retórico e o efetivo, o burocrático e o estratégico, o
conjuntural e o estrutural, a ideologia e os reais interesses da nação. Fica
pois aqui a recomendação de lerem o ensaio original de Philip Yang.
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* Roberto Giannetti da Fonseca é economista pela USP, dirigente e consultor da Kaduna Consultoria. Foi diretor
titular de Relações Internacionais e Comércio Exterior da Fiesp;
secretário-executivo da Camex no governo FHC (2000-2002) e presidente da Funcex
(2004-2009), um dos pioneiros nas relações econômicas do Brasil com a China.
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