José de Souza Martins*
Foto: Carvall
Quando setembro
chegar e as mudanças sociais e culturais decorrentes da pandemia já tiverem se
tornado realidade, haverá consequências políticas.
Esta epidemia da
covid-19 terá consequências socialmente duradouras, como já aconteceu em várias
sociedades em outras situações de pânico e em situações de guerra. Nesses
momentos, insuficiências, fragilidades e limites de uma sociedade ficam
expostos e motivam o despertar do lado crítico da consciência social.
Reinterpretações
até radicais substituem a passividade do senso comum. Emerge a possibilidade de
transformações sociais necessárias à correção dos problemas de organização da
sociedade revelados pelas ocorrências inesperadas.
Pandemias são
expressões, também, da fragilidade social e da limitada durabilidade das
estruturas sociais. Se elas não se renovam na vida cotidiana, se a sociedade
não se reproduz, o vazio expõe os carecimentos radicais que promovem a
revolução das inovações sociais profundas que possa resolvê-los.
Nossa sociedade
ainda não se deu conta da extensão das mudanças sociais que decorrerão da
pandemia, tanto na enfermidade quanto nas fantasias que alcançarão a
mentalidade popular e as normas sociais com elas relacionadas. São as racionalizações
para explicar o inexplicável, tentativas de senso comum para adivinhar causas e
fatores das ocorrências e reagir a eles.
Tardiamente
descobriremos, em comparação com países prósperos alcançados pela pandemia, que
a cópia de modelo econômico aqui implantada em 1964 permitiu à economia
brasileira produzir lucros de Primeiro Mundo graças à remuneração do trabalho
de Terceiro Mundo. Relativizaram-se os direitos sociais, o que vem sendo
completado no governo de Jair Messias.
Implantou-se no
país um capitalismo imprevidente e sem horizontes. O empresariado não é inocente
nesse equívoco lucrativo, mas anticapitalista. Não foi capaz de construir um
capitalismo que, para sê-lo, não pode ser imprevidente, não pode desconhecer o
direito de todos a uma quota-parte dos frutos do trabalho social.
As justificativas
geopolíticas alegadas, na campanha dos candidatos vencedores da eleição de
2018, poderá revelar-se, ao fim da pandemia, a geopolítica da morte, do
descarte daqueles que não tiveram acesso à UTI, nem a tratamento, nem à
recompensa dos cuidados, na adversidade, por uma vida de trabalho na produção
da riqueza social. O peneiramento definirá a consciência política da crise.
A pandemia nos dirá
o que somos porque anulará a eficácia das máscaras sociais de que a sociedade
moderna carece para parecer o que não é, para legitimar-se, desde que nelas
acreditemos. A covid-19 as derreterá. Nossa inautenticidade de sobrevivência
será corroída pelo vírus invisível. O próprio rei já está nu.
Uma das várias
consequências de desastres como este é a de anular a relevância das certezas,
mesmo de muitas certezas científicas. São desastres que anulam o sentido de
normas e valores sociais, das referências da conduta costumeira.
A primeira
tendência é a da desagregação da ordem social, o que, em decorrência, pode
desagregar a ordem econômica e a própria ordem política. É pouquíssimo provável
que a sociedade contemporânea, como a conhecemos, sobreviverá ao poder
destrutivo do vírus.
De vários modos, a
sociedade já será outra daqui a seis meses. Nesse meio tempo, terá ela
inventado novas regras sociais, novos hábitos, redefinirá prioridades.
Relativizará referências que nos regulam há, pelo menos, três gerações. O que
valia ainda no outro dia já terá deixado de valer. O modo de vida de classe
média a que estamos acostumados, nessas horas, já estará reformulado.
A raiva de classe
média que sustentou a irresistível ascensão de Jair Messias ao poder terá sido
derrotada pelos sentimentos comunitários que estão renascendo intensamente
sobre as cinzas da sociedade que renunciou aos seus deveres na eleição de
outubro.
Quando setembro
chegar e as mudanças sociais e culturais decorrentes da pandemia já tiverem se
tornado realidade, haverá consequências políticas. No limite, a maior poderá
ser a de que teremos um governo desamparado pela sociedade.
A sociedade de
setembro de 2020 já não será a sociedade de outubro de 2018. Seus valores de
referência serão outros; seus sentimentos, outros; suas crenças, outras. O
governo estará lá atrás e a sociedade lá na frente. Isso valerá tanto para o
presidente da República quanto para senadores, deputados federais, governadores
e deputados estaduais.
Sob outro tipo de
catástrofe, algo parecido já havia derrubado o petismo. O escândalo do mensalão
corroeu a base moral do PT e do sistema partidário. Apesar das reeleições,
tanto de Lula em 2006, quanto de Dilma, a sociedade já se distanciara dela, o
que se evidenciou nos movimentos de rua de 2013. Bolsonaro também poderá provar
o gosto da ruptura agora.
José de Souza
Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP.
Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre
outros livros, autor de "Moleque de Fábrica" (Ateliê Editorial).
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