Luiz Carlos Azedo*
“Nos tornamos seres perigosos, suspeitos. Qualquer
aproximação menor que dois metros é uma ameaça e provoca uma reação de
legítima defesa”
A pergunta de meu amigo Carlos Alberto Jr., jornalista e cidadão do
mundo, numa live, inspirou a coluna de hoje: “Estamos vivendo uma
distopia no presente?”. Normalmente, a distopia está associada ao
futuro, porque é a negação da utopia, ou seja, da sociedade desejada,
uma projeção pessimista do futuro. De certa forma, sim, estamos vivendo
uma realidade distópica, como as que aparecem no cinema. A série inglesa
Black Mirror (Espelho Negro), lançada há quase 10 anos, por exemplo, em
cada um de seus episódios, que são independentes, nos deixa em situação
muito desconfortável em relação à tecnologia, à globalização, ao poder e
à “sociedade do espetáculo”.
Qual é a grande distopia que estamos vivendo aqui no Brasil? Uma
pandemia de coronavírus ameaça sair do controle e seu combate começa a
ser militarizado, com a substituição de uma política de saúde pública
participativa por estratégias militares que se baseiam em grandes
manobras, controle de informações e saídas racionais para situações fora
do controle, como criar mais vagas nos cemitérios para evitar que o
aumento do número de mortos gere outro grave problema sanitário:
cadáveres insepultos. É uma hipótese sinistra, mas faz sentido, porque a
concepção do combate à epidemia é a de que se trata de uma guerra. Em
tese, militares estariam mais preparados para isso do que civis, o que,
obviamente, é um equívoco em se tratando de saúde pública.
O inimigo invisível entre nós, no trabalho, no supermercado, na fila
da lotérica, dentro de casa. Todos nos tornamos seres perigosos,
suspeitos. Qualquer aproximação menor que dois metros é uma ameaça e
provoca uma reação de legítima defesa, nem sempre um educado “por favor,
chegue mais para lá”. Os mais aptos a conviver com o novo coronavírus —
os contaminados assintomáticos —, hoje são a maior ameaça, não importa
se é um antigo colega de trabalho, um parente querido, um amigo de
infância, a pessoa amada; amanhã, porém, poderão ser os salvadores da
pátria, portadores de anticorpos e perpetuadores da espécie, os
primeiros a voltar ao trabalho.
A salvação virá dos mais fortes e do Estado Levitã, que pode tudo?
Qual será o custo de tudo isso? Na lógica do presidente Jair Bolsonaro, é
preferível um maior número de mortos do que o colapso da economia; é
preciso salvar o comércio, a indústria, os pequenos negócios e os
biscates. No fundo, seu raciocínio antecipa a escolha de Sofia do
intensivista que seria obrigado a escolher quem vai ter acesso ao
respirador na UTI quando o sistema de saúde entrar em colapso.
A República, de Platão, citada pelo ex-ministro da Saúde Luiz
Henrique Mandetta numa alusão irônica ao famoso Mito da Caverna
(metáfora criada pelo filósofo grego para explicar a condição de
ignorância em que vivem os seres humanos e o que seria necessário para
atingir o verdadeiro “mundo real”), inspirou Thomas Morus (1478-1535) a
escrever Utopia. Publicada na Basiléia, em 1516, na época dos
Descobrimentos, criticou a tirania e descreveu a sociedade ideal,
prontamente associada ao Novo Mundo. Na Inglaterra, seu livro só viria a
ser publicado em 1551, 17 anos após a morte do filósofo e estadista
católico executado por ordem de Henrique VIII, da Inglaterra.
Tirania
Coube a outro inglês cunhar a expressão “distopia”, o liberal progressista John Stuart Mill, o primeiro a defender o direito ao dissenso e as prerrogativas das minorias, num famoso discurso no Parlamento britânico, em 1868, ao invocar os valores defendidos por Thomas Morus em confronto com a realidade do proletariado da Inglaterra durante a Revolução Industrial. O tema da distopia foi retomado no Admirável Mundo Novo (1932), de Aldous Huxley, e em 1984, de George Orwell. Na primeira obra, a sociedade é dominada por uma casta, que a submete a um condicionamento biológico e psicológico; no segundo, numa alegoria do burocratismo stalinista, um ditador muda a língua do povo, controla a vida dos cidadãos e manipula a imprensa.
Na literatura, portanto, a distopia é a denúncia da sociedade
indesejada, autocrática, submetida à tirania e à ordem unida. Na vida
real, voltando à pergunta inquietante do amigo, é uma ameaça latente,
seria quase uma distopia do presente. Estamos vivendo uma situação
inimaginável, num mundo globalizado, conectado em rede, onde todos
acompanham tudo em tempo real. Trata-se de um colapso da economia
mundial, provocado por um fenômeno da natureza que tem a ver com o
“grande encontro” da teoria da evolução, a associação entre o vírus
mutante e uma bactéria, que se reproduz em velocidade igual ou maior do
que a moderna transmissão de dados.
A ficção distópica dos filmes de catástrofes vira realidade, com
centenas de milhares de mortos. Ontem, o presidente Donald Trump
anunciou que os Estados Unidos vão suspender a imigração legal por dois
meses. O “sonho americano”, inspirado na Utopia de Thomas Morus, entrou
em colapso. Aqui no Brasil, a grande distopia seria o colapso do nosso
regime democrático.
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* Jornalista, colunista do Correio Braziliense
Fonte: http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-distopia-no-presente/ 22/04/2020
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