Dom Walmor Oliveira de Azevedo*
A
expressão “delírios de onipotência” foi bem aplicada na pena sábia e na
voz profética de um pregador espiritual. Configura entendimento que
possibilita melhor reconhecer de onde vêm os prejuízos amargados pela
sociedade contemporânea, marcada por um ritmo insano e por um afã
desmedido pelo lucro, alimentando apegos e sede de poder. Condutas
fundamentadas em delírios de onipotência, responsáveis por tantos
descompassos ambientais, sociais e políticos. É compromisso cidadão, que
não é simples, contribuir para a identificação e superação das causas
fatídicas desse colapso humanitário vivido na atualidade, inclusive no
âmbito da saúde. Isso exige a desmontagem da intrincada engenharia que
sustenta os delírios de onipotência. Mas a cultura contemporânea
alimenta a ilusão da onipotência. Com sua dinâmica sedutora, essa ilusão
tem força de dominação que configura mentes e corações, promovendo o
obscurantismo, o autoritarismo e a eleição de relativismos como
paradigma comportamental.
Superar os delírios de onipotência é
condição inegociável e primordial para que a sociedade consiga
ultrapassar o limiar de seu encarceramento autodestrutivo: dinâmicas que
alimentam violências e perversidades em um mundo que tem tudo para ser
justo e solidário. Desconstruir os delírios de onipotência muito
contribuirá para vencer o adoecimento social, que alcança ápices nas
pandemias, a exemplo da covid-19, mal que bate à porta de todos,
igualmente. Delírio de onipotência é, pois, o nome sistêmico do processo
de produção de diferentes enfermidades. E quando for superado o auge
desta pandemia tão sacrificante, que exige o isolamento social,
lamentavelmente a humanidade ainda não terá alcançado a imunidade de que
necessita, radicada no reverso deste terrível mal: os delírios de
onipotência.
A cura desse mal é um processo exigente e longo, com
novas aprendizagens alicerçadas na interioridade. Um desafio para a
humanidade acostumada com a espetacularização e o domínio das
aparências, com a corrida desarvorada, o tempo todo, para se sobrepor
aos outros, passando por cima de tudo e todos. Um processo que alimenta a
ilusão de se achar “o dono” da palavra, das soluções. Reforça a
pretensão humana de ter sempre razão, em tudo, sustentando o autoengano
de se considerar mais importante que tudo e todos. Prevalece, assim,
uma perspectiva narcísica, doentia. Mede-se o próprio valor pelo que se
possui, pela capacidade de gastar dinheiro, pelo poder para dar ordens
aos outros.
Percebe-se assim que as pandemias são apenas
sintomas que causam medo. As doenças são enraizadas nos delírios de
onipotência. Compreende-se, pois, que a esperança da superação da
avassaladora pandemia da covid-19, que parou o mundo, e de tantas
outras, depende de novos hábitos e práticas organizacionais, com a
indispensável consideração da vida como dom precioso. Obviamente, a
referência não é somente à própria vida, mas o bem maior de todos. Novas
lógicas devem inspirar o mundo do trabalho, qualificar a convivência e
promover uma espiritualidade que resgate o ser humano da pequenez –
manifesta nas indiferenças em relação ao outro, que é irmão, nos
partidarismos que levam a escolhas equivocadas e medíocres, no
formalismo asséptico que contamina processos educativos, na cultura sem
força para sustentar valores fundamentais à vida.
A condição
cidadã desgastada se projeta nos delírios de onipotência, traduzidos de
muitos modos nefastos, a exemplo da indiferença paralisante sobre a
situação dos que mais sofrem. Essa indiferença é a que não deixa pessoas
se envergonharem, mesmo convivendo com triste situação: enquanto poucos
navegam em mar de dinheiro a grande maioria vive na miséria e precisa
lutar, todos os dias, para sobreviver. Não menos grave é o gosto pelo
autoritarismo, um produto sofisticado e perverso dos delírios de
onipotência, dando espaço a psicopatias na política, na prática
religiosa e nas relações interpessoais.
Os atentados contra a
democracia, valor intocável para se conquistar equilíbrio em uma
humanidade plural, são graves sinais de delírios de onipotência.
Combater esses delírios, vírus mortais, exige humildade – valor
espiritual determinante, mas ainda distante das virtudes do ser humano.
Esse valor, para ser alcançado, pede nova aprendizagem: a
espiritualidade. Um novo caminho, desafiador até para religiosos – mas é
preciso trilhá-lo para superar as pandemias geradas e alimentadas por
delírios de onipotência.
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*Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte
Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)
Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)
Fonte: http://arquidiocesebh.org.br/para-sua-fe/espiritualidade/artigo-de-dom-walmor/delirios-de-onipotencia/?utm_source=newsletter&utm_campaign=Opini%C3%A3o%20e%20not%C3%ADcias&utm_medium=370&utm_content=Del%C3%ADrios%20de%20onipot%C3%AAncia
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