" A medida da abdicação aos próprios princípios éticos e políticos
é, de fato, muito simples: trata-se de se perguntar qual é o limite além do
qual não estamos dispostos a renunciar",
escreve Giorgio Agamben, filósofo italiano, em artigo
publicado por Quodlibet, 13-04-2020. A tradução é de Luan
Sevignani e Victor Gonçalves.
Segundo ele, "a soleira que separa a humanidade da barbárie foi
ultrapassada".
O filósofo italiano refere-se explicitamente aos juristas e à Igreja.
Quanto a esta última, afirma: "A Igreja, que, fazendo-se de
serva da ciência, que já se tornou a verdadeira religião do nosso tempo,
renegou radicalmente os seus princípios mais essenciais. A Igreja, sob um Papa
que se chama Francisco, esqueceu que Francisco abraçava os
leprosos. Esqueceu que uma das obras da misericórdia é a de visitar os
enfermos. Esqueceu que os mártires ensinam que é necessário estar disposto a
sacrificar a vida em vez da fé, e que renunciar ao próximo significa renunciar
à fé".
Eis o artigo.
A peste marcou, para a cidade, o início da corrupção... Ninguém estava
mais disposto a perseverar naquilo que antes julgava ser o bem, porque
acreditava que poderia, talvez, morrer antes de alcançá-lo. - Tucídides, A
Guerra do Peloponeso, II, 53. [tradução da citação do Agamben]*
Gostaria de compartilhar, com quem quiser, uma pergunta sobre a qual, há
mais de um mês, não cesso de refletir. Como foi possível que um país inteiro
tenha entrado em colapso ético e político diante de uma doença? As palavras
que usei para formular essa pergunta foram, uma por uma, atentamente pensadas.
A medida da abdicação aos próprios princípios éticos e políticos é, de fato,
muito simples: trata-se de se perguntar qual é o limite além do qual não
estamos dispostos a renunciar. Acredito que o leitor que se dará ao
trabalho de considerar os seguintes pontos, poderá apenas concordar que – sem
se dar conta ou fingindo não se dar conta – a soleira que separa a humanidade da barbárie foi ultrapassada.
1) O primeiro ponto, talvez o mais grave, concerne aos corpos das pessoas mortas. Como pudemos aceitar, unicamente
em nome de um risco que não era possível medir, que as pessoas a nós caras e os
seres humanos no geral não somente morressem sozinhos, mas que – algo que
nunca havia acontecido antes na história, de Antígona a hoje – seus cadáveres fossem queimados sem um funeral?
2) Em seguida, aceitamos sem muitos problemas, apenas em nome de um
risco que não era possível medir, limitar nossa liberdade de movimento num grau que nunca havia
acontecido antes na história do país, nem mesmo durante as duas guerras
mundiais (o toque de recolher durante a guerra estava limitado a certas horas).
Consequentemente, unicamente em nome de um risco que não era possível medir,
aceitamos suspender, na prática, nossas relações de amizade e de amor, pois o
nosso próximo tinha se tornado uma possível fonte de contágio.
3) Isso pôde acontecer – e aqui tocamos a raiz do fenômeno – porque
dividimos a unidade da nossa experiência vital, que é sempre inseparavelmente, ao mesmo
tempo, corporal e espiritual, numa entidade puramente biológica, por um lado, e
numa vida afetiva e cultural, por outro. Ivan Ilitch mostrou, e David
Cayley mencionou isso recentemente aqui, as responsabilidades da medicina moderna nessa divisão, a qual é tida como óbvia,
mas que é, na verdade, a maior das abstrações. Sei muito bem que tal abstração
fora realizada pela ciência moderna, por meio dos dispositivos de reanimação,
que podem manter um corpo num estado de pura vida vegetativa.
Mas se essa condição se estende para além dos confins espaciais e
temporais que lhe são próprias, como estamos tentando fazer hoje, e se torna
uma espécie de princípio de comportamento social, caímos em contradições para as quais
não há escapatória. Sei que alguém se apressará em responder que se trata de
uma condição limitada no tempo, e que, passada tal condição, tudo voltará a ser
como antes. É verdadeiramente singular que seja possível repetir isso,
caso não se trate de má-fé, uma vez que as mesmas autoridades que decretaram a emergência
não cessam de nos lembrar que, quando a emergência tiver sido superada, teremos
que continuar observando as mesmas diretrizes, e que o “distanciamento social”, como foi chamado com um eufemismo
significativo, será o novo princípio organizacional da sociedade. E, em todo
caso, o que nós aceitamos sofrer, de boa ou má-fé, não poderá ser apagado.
Não posso, a esta altura, uma vez que acusei as responsabilidades de
todos nós, não mencionar as responsabilidades, ainda mais graves, daqueles
que teriam a tarefa de zelar pela dignidade do homem. Antes de mais nada, a
Igreja, que, fazendo-se de serva da ciência, que já se tornou a verdadeira
religião do nosso tempo, renegou radicalmente os seus princípios mais essenciais.
A Igreja, sob um Papa que se chama Francisco, esqueceu que Francisco abraçava os leprosos. Esqueceu que uma das obras
da misericórdia é a de visitar os enfermos. Esqueceu que os mártires ensinam
que é necessário estar disposto a sacrificar a vida em vez da fé, e que renunciar ao próximo
significa renunciar à fé.
Outra categoria que falhou para com seus próprios deveres é a dos juristas.
Estamos, há muito tempo, habituados ao uso insensato dos decretos de urgência,
através dos quais, na prática, o poder executivo substituiu o legislativo,
abolindo o princípio da separação dos poderes que define a democracia. Mas
neste caso, todos os limites foram superados, e se tem a impressão que as
palavras do primeiro ministro e do chefe da proteção civil tenham, como se
dizia para as do Führer, imediatamente valor de lei. E não está claro como,
esgotado o limite de validade temporal dos decretos de urgência, as limitações
da liberdade poderão ser mantidos, como se anuncia. Com quais dispositivos
jurídicos? Com um estado de exceção permanente? É dever dos juristas verificar
que as regras da constituição sejam respeitadas, mas os juristas calam. Quare
silete iuristae in munere vestro? [Por que estão em silêncio, juristas,
diante do que lhes diz concerne?].
Sei que sempre haverá alguém que responderá que o grave sacrifício
fora feito em nome dos princípios morais. A estes, gostaria de lembrar que Eichmann, aparentemente de boa-fé, não cansava de repetir
que havia feito o que havia feito segundo a própria consciência, para obedecer
ao que acreditava serem os preceitos da moral kantiana. Uma norma que afirma que é necessário
renunciar ao bem para salvar o bem é tão falsa e contraditória quanto aquela
que, para proteger a liberdade, impõe a renúncia à liberdade.
Nota:
* “A peste introduziu na cidade pela primeira vez a anarquia
total [...] Ninguém queria lutar pelo que antes considerava honroso, pois todos
duvidavam de que viveriam o bastante para obtê-lo”. [trad. de Mário da Gama
Kury, 2001, p.118]
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