Praga em Cidade Antiga' (1652-54), de Michiel Sweerts
Foto: Los Angeles County Museum of Art
Confiança mútua e liberdade de informação protegeram o sistema político ateniense naquela época
Redação, The Economist
É
uma das descrições mais explícitas de uma sociedade desabando sob o
peso de uma doença virulenta encontradas na literatura. Em 430 a.C.,
segundo ano de sua guerra contra Esparta, a vibrante cidade de Atenas
foi atingida por um mal que causava pânico, desespero e a perda da fé em
instituições e valores sagrados. Os sintomas incluíam uma febre fora de
controle, ânsia, convulsões e desfiguramento. De acordo com Tucídides,
“a catástrofe foi tão terrível que os homens, sem saber o que lhes
aconteceria em seguida, se tornaram indiferentes às regras da religião e
da lei".
Foi sem dúvida um episódio que levou a cidade a
reavaliar sua posição. Atenas, estrela entre as cidades-estado gregas,
foi profundamente afetada pela doença. A epidemia foi o primeiro evento
de uma sequência catastrófica que duraria três décadas: erros de cálculo
militares, uma violenta guerra civil entre democratas e oligarcas,
golpes de força, e a rendição à Esparta em 404 a.C. Os espartanos
enviaram homens armados para fechar a assembleia da cidade e impor um
regime autoritário. Aos que assistiam tudo em primeira mão, a impressão
deve ter sido a do fim do primeiro experimento mundial de governo
popular.
Mas tal conclusão seria prematura. A peste de Atenas e
sua sequência não foram um evento sísmico se comparadas à peste
posterior que teve início em 540, mantendo-se recorrente por mais de
dois séculos e destruindo o mundo romano tardio, ou a Peste Negra, quer
começou perto de 1350 e quebrou a sociedade feudal europeia. Em Atenas, a
democracia foi mais forte que a doença; de acordo com Josiah Ober e
Federica Carugati, da Universidade Stanford, em estudo a ser publicado,
em vez de ruir, o sistema ateniense evoluiu.
É verdade que pelo
menos um quarto dos cerca de 300 mil habitantes da cidade e seus
arredores morreu—muitos, de acordo com livro recente de Ben Akrigg, da
Universidade de Toronto, por causa do colapso no fornecimento de comida,
e não por causa da doença em si. Mas há evidência da solidez das
instituições atenienses. Pensemos no destino de Péricles, eleito como um
dos dez comandantes militares da cidade em cada um dos 30 anos
precedentes. Conforme a raiva se acumulou, ele foi deposto antes do fim
do mandato—mas graças a um procedimento democrático, e não por uma
multidão furiosa. No ano seguinte, foi reeleito, mas acabou sucumbindo à
peste.
Ou pensemos na continuidade da vida artística na cidade,
incluindo festivais anuais de teatro que exigiam uma vasta e cara
organização. Como aponta Jennifer Roberts, da City College of New York,
os atenienses foram presenteados em 429 a.C. com a peça “Édipo Rei”,
marco da literatura mundial. Seu retrato de um rei que tenta aplacar a
fúria de Apolo, que assumiu a forma de uma peste mortífera, encontrou um
público que suspeitava que sua cidade tivesse ofendido ao deus. Em meio
ao caos dos 30 anos seguintes, os dramaturgos seguiram produzindo
tragédias pungentes e farsas hilárias.
Virtudes da democracia
Para
Ober, a chave dessa resiliência estava na “vantagem democrática”
desfrutada pelos atenienses, algo em comum com outras sociedades
baseadas na liberdade de expressão e nos direitos universais. “Somos uma
democracia", disse Angela Merkel aos alemãs na semana passada. “Não
chegamos aos resultados pela força, e sim pela cooperação e
compartilhamento do conhecimento.” Muito disso também valia para a
antiga Atenas, que no seu auge defendia o discurso da verdade,
acreditando que as boas informações expulsariam as ruins.
Aquilo
que a cidade fazia melhor, como as montagens de teatro, a construção de
navios e o treinamento de sua tripulação, eram atividades que exigiam
recursos do governo e contribuições voluntárias dos ricos—algo que hoje
chamaríamos de parcerias público-privadas. E, apesar do desgaste, essas
atividades e a sensação de confiança mútua e serviço público que as
sustentava perdurou durante a peste. Por exemplo, contrariando as
expectativas, em 429-428 a.C. os atenienses venceram uma batalha naval
contra uma frota do Peloponeso perto de Patras.
Essas virtudes
democráticas perderam força nos anos posteriores à peste, às vezes
dominados por demagogos cínicos, mas não desapareceram. Ajudou o fato de
os oligarcas que tomaram o poder em 411 a.C. serem incompetentes,
durando apenas alguns meses—e, após um breve período de guerra civil, os
espartanos aparentemente perderam o interesse nos assuntos de seus
adversários vencidos. Em seguida a democracia foi restaurada em Atenas.
Para sobreviver, ela se adaptou.
Além dos méritos artísticos, o
brilhante século quinto antes de Cristo teve o apogeu do “demos”, o
corpo de cidadãos homens livres dotado do poder de conduzir a cidade. No
século quarto, menos brilhante, o demos era equilibrado com um processo
judicial prevendo multa e até execução de um cidadão que assumisse na
assembleia conduta enganosa para o povo ou em desvio da constituição.
Parece uma medida draconiana, mas, para Federica, há uma analogia com
limites judiciais posteriores à autoridade, como a suprema corte dos
Estados Unidos.
A julgar pelo caso ateniense, após uma terrível
epidemia, a tolerância às decisões impensadas diminui. Enquanto isso,
ainda que a hemorragia de mão de obra tornasse difícil a condução da
guerra, táticas prudentes e uma diplomacia astuta permitiram que uma
Atenas reformada recuperasse o poder de influência na interminável
disputa entre cidades-estado gregas.
O impacto da peste, que teve
surtos ao longo de muitos anos, não deve ser subestimado. Foi parte de
uma reação em cadeia que levou ao fim do império de Atenas. Mas a
vontade de viver da cidade era tal que ela resistiu, mais ou menos
democraticamente, por mais oito décadas, até suas liberdades serem
finalmente suprimidas pela Macedônia em 322 a.C. Hoje, essa resistência é
um precedente que traz tanto alento quanto o glorioso auge ateniense.
/
Tradução de Augusto Calil
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Fonte: https://alias.estadao.com.br/noticias/geral,o-dia-em-que-a-grecia-antiga-temeu-que-uma-doenca-arruinasse-sua-democracia,70003266302
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