quarta-feira, 8 de abril de 2020

Bolsonaro é uma cobaia para observação científica



José de Souza Martins*
 
 Foto Carvall

Os arriscados ajuntamentos diante da entrada do Palácio do Planalto são verdadeiras armadilhas em que o presidente caiu, como tem caído em outras

Situações sociais anômalas, como as decorrentes da pandemia da covid-19, possibilitam a observação sociológica de urgência de ocorrências inesperadas. As diferentes do que é pressuposto no conhecimento consolidado.

Ante indagações que lhes têm sido dirigidas, pesquisadores de outras áreas fazem a ressalva de que enfrentam um problema médico ainda Ante indagações que lhes têm sido dirigidas, pesquisadores de outras áreas fazem a ressalva de que enfrentam um problema médico ainda sem informações suficientes para fundamentar previsões, a não ser as provisórias. Nas ciências sociais é a mesma coisa. Neste caso, no trato dos desdobramentos correlatos, como os do comportamento na situação social cujas referências a epidemia desorganiza.

Ao fazer o que habitualmente não fazem ou ao continuar a fazer o que a situação de crise já não recomenda, as pessoas, individual ou coletivamente, criam situações sociais que o sociólogo pode analisar como de tipo experimental. Pode nelas identificar o que é metodologicamente relevante para a observação científica.

As ciências sociais não são ciências de laboratório. Comportamentos esdrúxulos podem, porém, permitir sua análise como se fossem atos em que os próprios atores, sabendo ou não, desafiam o costumeiro e o correto.

Os agentes da conduta anômala são, assim, involuntariamente cobaias. Não porque sejam induzidos pelo pesquisador a fazer o que não querem, mas porque fazem o que a ciência precisaria fazer, mas não pode. O verdadeiro pesquisador está sempre de prontidão para reconhecer as revelações científicas do inesperado e do acaso. Importantes descobertas científicas foram feitas desse modo.

Dedico-me à observação e ao estudo de ocorrências desse tipo, quando propícias à análise sociológica. É o caso dos arriscados ajuntamentos diante da entrada do Palácio do Planalto, ocorridos em meados de março, verdadeiras armadilhas em que o presidente da República caiu, como tem caído em outras.

Ele demonstra, publicamente, ser movido pela ilusão de um voluntarismo do qual supõe estar fazendo uma coisa, quando, na verdade, à luz das consequências inversas da ocorrência que provocou, está fazendo outra, que ele não sabe qual é. Nessa inconsciência, se desgasta e assim compromete a instituição que representa. O experimento mostra que é movido por falsa consciência da realidade social.

Para esse tipo de observação científica ele é uma cobaia involuntária, como o são os bajuladores que dele se acercam nessas ocasiões. A situação de risco e de conduta social não recomendada, mas observável, possibilita que o observador identifique os tipos de mentalidade que em situação “normal” não se expressariam daquele modo.

Nas duas manifestações de porta de palácio, com a participação do presidente da República, como na ocorrência do dia 15 de março e na do dia seguinte, três perfis de comportamento desconstrutivo da imagem presidencial podem ser identificados. Diferentemente da suposição aparente do governante, não se tratava propriamente de um grupo de apoio e de aplauso.

A figura mais expressiva foi a do jovem imigrante haitiano que se dirigiu a ele dizendo-lhe incisivamente: “Você não é mais presidente”. Sublinhava nele o comportamento em desacordo com o recomendado pelos médicos, quanto a evitar contatos, por ser ele um potencial transmissor do vírus. Destacava, assim, a impropriedade de suas ações, em face da liturgia de seu cargo e de sua função simbólica.

A circunstância teve outros componentes desconstrutivos. Na pequena multidão, trajes verde-amarelo e rostos pintados de verde e amarelo definiram um cenário carnavalesco, fora de hora. Uma antecipação descabida de campanha eleitoral. De certo modo, o país já começa a viver um momento de luto coletivo. O ato, estimulado pelo próprio presidente, aos olhos atuais da população, era completamente desrespeitoso, impróprio e até sacrílego.

O presidente da República vinha sendo alertado sobre a imprudência de receber os manifestantes do ato político contra as instituições, contra o Congresso Nacional e o STF, por ele convocado. Violara, provocativamente, as normas de Estado quanto a cautelas em face da pandemia. Sobretudo na medida em que vários dos participantes de sua caravana aos Estados Unidos, com ele em contato próximo durante muitas horas, foram contaminados.

Próximo ao presidente da República, outro manifestante, cuja linguagem revelava ser evangélico, insistia em perguntar-lhe se aceitaria fazer uma oração com ele ali mesmo. Uma técnica fundamentalista de conversão religiosa. Julgava-o carente de conversão.

O caso é indicativo de um entendimento de que as três religiões dos batismos de Bolsonaro não convencem de que tenham sido suficientes para cobri-lo com o manto da proteção divina e, por meio de sua função simbólica de poder, cobrir-nos a todos.
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* José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “Moleque de Fábrica” (Ateliê Editorial).

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