Para Jean Tirole, da Escola de Economia de
Toulouse, há sinais de mais cooperação e multilateralismo
e ao mesmo tempo mais
sinais de nacionalismo e fechamento
— Foto: Divulgação -
Para o Prêmio Nobel
Jean Tirole, saída do choque virá por meio dos bancos centrais, incluindo
default, austeridade, impostos sobre fortunas e recompras de títulos
Por Diego Viana —
Para o Valor, de São Paulo
17/04/2020 05h02
Atualizado há 7 horas
Passado o impacto
da pandemia do novo coronavírus e do confinamento social, o economista francês
Jean Tirole diz esperar “que a razão volte”. Prêmio Nobel de Economia de 2014
por suas contribuições sobre concorrência e concentração de poder de mercado,
ele afirma estar assustado com a ascensão de políticos populistas e a rejeição
à ciência e aos especialistas em geral. Cita o economista turco Daron Acemoglu,
do MIT, para afirmar que a humanidade se encontra diante de uma bifurcação:
pode escolher o recrudescimento do nacionalismo e da xenofobia, mas também pode
optar por dar valor à ciência e ao multilateralismo.
Quando recebeu o
Nobel, o professor da Escola de Economia de Toulouse, no Sul da França, decidiu
que era hora de se dirigir ao público amplo, cumprindo o que considera um dever
democrático dos pesquisadores e especialistas. O resultado é “Economia do Bem
Comum” (Zahar), em que recorre à filosofia do americano John Rawls e a 40 anos
de seus próprios trabalhos para mostrar como a economia de mercado e
regulamentação estatal se combinam para promover a prosperidade e o bem-estar.
“As pessoas pensam
que o mercado e a globalização são a mesma coisa que ‘laissez-faire’. Mas não
são. São uma liberdade combinada com intervenção pública, sempre que há falha
de mercado”, afirma o economista. Trabalhando sobre externalidades negativas e
concentração de poder de mercado, o economista desenvolveu propostas de
legislação e regulamentação, algumas das quais foram adotadas pela Comissão
Europeia e pelo governo francês.
Hospital de campanha em Barcelona: “Não é
culpa da Espanha que tenha sido atingida pelo coronavírus.
O problema é que os
países da Europa do Sul estão endividados, enquanto
os do Norte têm menos
dívidas” — Foto: Bloomberg
As democracias
contemporâneas falham, diz Tirole, ao se concentrar em políticas de curto
prazo, neste momento em que os maiores desafios são de longo prazo, como a
mudança climática e as políticas de saúde. Sua maior preocupação atual, afirma,
é que a recessão causada pela pandemia possa arrefecer os esforços para lidar
com esses temas mais amplos. A solução para reintroduzir o longo prazo nas
democracias passaria por agências independentes e internacionais, funcionando
como o Comitê de Supervisão Bancária de Basileia.
Aos 66 anos, Tirole
defendeu seu doutorado no MIT sob orientação de outra estrela acadêmica, o
Prêmio Nobel Eric Maskin. O economista concedeu a seguinte entrevista:
Valor: Em artigo sobre as consequências da pandemia, o
senhor faz uma comparação com o pós-Guerra, depois de 1945. Esse foi o período
em que surgiram as instituições de Bretton Woods, o Plano Marshall e a ONU.
Estamos chegando a algo igualmente transformador?
Jean Tirole: Esperamos que sim.
Estamos, sim, numa guerra, mas não tem nada a ver com as guerras precedentes.
Ou mesmo uma crise como a de 1929. Em 1945, o sistema produtivo estava
destruído. Hoje, se guardarmos os assalariados nas empresas e mantivermos as
empresas vivas por meio de subvenções, o sistema produtivo estará intacto. A
economia pode dar a partida novamente, ao menos em parte, assim que terminar o
confinamento. Em 1945, a infraestrutura estava destruída. As fábricas também.
Naquele momento, na Europa, nossos ancestrais fizeram algo notável. Disseram:
“Chega disso”. Vamos tentar viver todos juntos. E criaram a Comunidade
Europeia. As gerações que não viveram esse momento parecem ter esquecido o que
isso significa e se tornaram antieuropeias. Querem a Europa, sim, mas com a
condição de que a Europa não lhes imponha nada.
Valor: A pressão da crise vai levar a mudanças?
Tirole: Depois de uma guerra, as
pessoas se dão conta, um pouco, de que há problemas. Mas agora está se passando
algo confuso. Veja, por exemplo, o caso das disputas em torno de equipamentos
sanitários: máscaras, respiradores, ventiladores. Falta coordenação em saúde. Donald
Trump e outros falam em “doença chinesa”. As pessoas não estão muito razoáveis.
Seria necessário caminhar para o multilateralismo. Precisamos de instituições
multilaterais. Mas essas instituições vêm sofrendo golpes há anos, com a ascensão
do populismo. A situação pode continuar se degradando. Trump chegou a falar em
parar as contribuições para a OMS! [Nesta semana, o presidente determinou a
suspensão] A situação é tal que se generalizou o cada um por si. E agora estão
falando em protecionismo e relocalização dos empregos, o “reshoring”. Em parte,
vai ser necessário voltar a produzir localmente alguns bens essenciais em
tempos de crise, como a proteção sanitária. Mas não é o caso da maior parte dos
bens.
Para Tirole,
economia de mercado não é “laissez-faire”: o mercado tem falhas e a
regulamentação do Estado tem que ser forte
Valor: Como o senhor analisa as projeções para o
pós-pandemia?
Tirole: Há pelo menos quatro
hipóteses de saída da crise e provavelmente o que vai ocorrer é uma combinação
delas. A primeira é que os países simplesmente reembolsem as dívidas,
consumindo menos e gerando superávits primários. Isso exigiria grandes esforços.
A segunda possibilidade seria simplesmente deixar de pagar a dívida. Nesse
caso, a confiança no país em questão seria erodida. E também significaria que o
país teria de equilibrar imediatamente seu orçamento. Mas nos próximos anos vai
ser muito difícil equilibrar o orçamento, porque vai ser preciso pagar as
despesas correntes, honrar as garantias que foram dadas, consertar os hospitais
e assim por diante.
Valor:
Uma alternativa muito discutida é criar impostos temporários.
Tirole: Criar impostos
excepcionais é a terceira possibilidade. Poderiam ser sobre os indivíduos ou os
bancos. No Brasil, talvez não, mas na Europa seria difícil subir a taxação dos
bancos, que já estão frágeis. Além disso, os métodos tradicionais de taxar os
bancos, que chamamos de repressão financeira, implicam um aumento de risco para
os bancos. Os impostos excepcionais sobre os indivíduos certamente teremos, a
questão é a que nível. As pessoas mais ricas certamente vão pagar impostos
excepcionais, mas isso não traz tanto dinheiro assim. Seria preciso taxar as
classes médias, mas isso seria menos popular. Nos EUA é diferente. Eles cobram
muito menos impostos, sobretudo dos mais ricos.
Valor: E a quarta possibilidade?
Tirole: Seria usar o Banco
Central para comprar a dívida. Isso poderia gerar inflação, como depois da
Segunda Guerra. Mas não é certo que essa inflação aconteça, como vimos em 2008,
quando os bancos centrais compraram títulos do Tesouro, por exemplo na zona do
euro. O afrouxamento monetário não criou inflação, porque os agentes econômicos
não usaram esse dinheiro para consumir. E o que acontecerá desta vez? Não sei.
Valor: Seria o caso dos “coronabonds” da Europa?
Tirole: Os “coronabonds” são uma
quinta possibilidade, específica da Europa. Os eurotítulos seriam emitidos em
conjunto pelos diferentes Estados, o que é outra forma de solidariedade. Não
creio muito nessa saída. Pode haver um pouco, mas não com muita amplitude.
“Donald Trump e
outros falam em ‘doença chinesa’. As pessoas não estão muito razoáveis.
Seria
necessário caminhar para o multilateralismo”, diz Jean Tirole
— Foto: Bloomberg
Valor: A recusa em implementar esses títulos é
interpretada como sintoma da falta de integração europeia. O continente está
falhando novamente?
Tirole: Vale lembrar que não é
culpa da Itália e da Espanha terem sido atingidas pelo coronavírus. É o tipo de
coisa contra a qual deveria haver proteção. Isso justifica a solidariedade. O
problema é que os países da Europa do Sul estão muito endividados, enquanto os
do Norte têm menos dívidas. De fato, o endividamento público vai aumentar
muito. É normal. Mas isso vai nos levar a um estado em que um ataque
especulativo causaria perigo. Sem solidariedade, havendo um ataque à Itália,
ela vai estar em grande dificuldade. Com solidariedade, não haveria um ataque à
Itália em particular, mas poderia haver um ataque à zona do euro em geral. A
Alemanha, apesar de seu endividamento líquido baixo, também seria atacada. Se a
Itália entrar em default, a Alemanha deverá fechar esse buraco, com a França e
os outros países. É preciso proteger a Itália, mas isso também tem
inconvenientes, porque abre o flanco para um ataque à zona do euro como um
todo. E é por isso que os alemães não querem os “coronabonds”, que seriam bons
para o Sul, mas o Norte resiste.
Valor: Então a crise amplifica e explicita os problemas
que já conhecíamos desde a última crise.
Tirole: Sem dúvida. Exceto que
esta crise é maior do que a financeira. E os Estados estão
mais endividados do
que em 2008. Não temos Europa suficiente. A Europa deveria ter um orçamento comum
e instituições comuns. Mas os europeus não são nem capazes de entrar em acordo
sobre como será o fim do confinamento. Falta Europa. É uma pena. Além disso,
formou-se uma divergência forte entre o Norte e o Sul. Precisaríamos ter
solidariedade total, mas o risco é que toda solidariedade esteja comprometida.
Dito isso, acredito que a solidariedade vai passar muito pelo BCE.
Valor: Seria o caso de ter mecanismos que se ativariam
automaticamente no caso de eventos extremos como o atual, já que é esperado que
outros venham, sobretudo na área do clima?
Tirole: Não sei dizer, mas
certamente precisamos de mecanismos multilaterais mais desenvolvidos, que
permitissem reagir quase automaticamente. No entanto, veja o caso da mudança
climática, em que o Brasil e os Estados Unidos não têm sido exemplares no tema
e a Europa tarda a impor a tarifa do carbono. Tenho dito há 25 anos que não
estamos fazendo nada pelo clima e teríamos de agir. Mas cada país diz: não sou
eu que vou pagar. É uma catástrofe. O multilateralismo não está funcionando muito
bem. Mesmo a COP 21, em Paris [2015], não foi um sucesso, porque não houve
nenhum engajamento obrigatório, nada de concreto. Foram promessas vagas.
Precisamos de mais multilateralismo e cooperação entre os países, na saúde, no
clima, em finanças, em muitos outros campos. E não está acontecendo. Ao
contrário.
Valor: A pandemia suscitou um debate sobre o papel do
privado e do Estado na saúde. Os Estados Unidos são considerados problemáticos
porque o privado tem um papel grande demais, mas em outros o papel do público é
maior, mas houve cortes. O que a crise nos ensina?
Tirole: Há um lado da questão
que é doméstico, com a organização da saúde. É incrível que nos Estados Unidos
exista esse debate sobre o acesso universal à saúde. É um dos direitos de base
dos cidadãos ter acesso universal à saúde, assim como o acesso à educação. No
livro, uso o conceito de véu da ignorância, ou seja, como iríamos querer que a
sociedade fosse, se não soubéssemos o lugar que teríamos nela. Claramente,
queremos alguma segurança para o caso de termos câncer ou o coronavírus. Queremos
também ter acesso à educação, especialmente se nascemos num meio desfavorecido.
Há direitos fundamentais que são, para resumir, políticas de segurança contra
as vicissitudes da vida, sobretudo aquelas pelas quais não somos responsáveis.
Na Europa isso é razoavelmente entendido. Há sistemas universais, o que não
quer dizer que sejam
igualitários. Nos
Estados Unidos, a ideia de que a saúde seja para todos ainda não é bem
assentada. Trump buscou desmontar o sistema estabelecido por [Barack] Obama,
por exemplo. É catastrófico.
Países europeus
fecham fronteiras para evitar disseminação do vírus: “Vai ser necessário voltar
a produzir localmente
alguns bens essenciais, mas não é o caso da maior parte
dos bens”, diz Tirole —
Foto: Bloomberg
Valor: E o lado internacional?
Tirole: Vejamos a Organização
Mundial da Saúde, por exemplo. É uma organização excessivamente política e ao
mesmo tempo não tem muito poder. Dão conselhos, estabelecem as melhores
práticas, e isso é muito útil. Mas não têm muito poder em relação às políticas
que os Estados seguem. Com o coronavírus, praticamente não houve coordenação
entre os Estados. Deveríamos caminhar para um sistema parecido com o comitê de
Basileia para os bancos. Ele decide sobre algumas exigências mínimas, difunde
as boas práticas de supervisão e examina o que é feito nos países para apontar
quem está fazendo compliance e quem não está. Como na questão da democracia.
Para que ela funcione, é preciso que os cidadãos estejam informados. Se seus
bancos são muito frágeis e correm o risco da falência, e também se o Estado
está preparado para uma epidemia. Mas nenhum cidadão no mundo, praticamente,
tinha informação sobre a preparação para uma epidemia.
Valor: E agora os Estados precisam tomar medidas às
pressas.
Tirole: Sim, seja em relação a
máscaras e respiradores, seja em relação a isso que estamos debatendo muito
agora: a capacidade de traçar o percurso do vírus. O “tracking” é a melhor e a
pior das coisas. Muito útil para manter a epidemia sob controle, mas pode ser
liberticida também. É preciso debater sobre isso. É preciso ter instituições à
altura. De repente, a Europa está descobrindo esse tipo de vigilância. Não
tivemos nenhum debate democrático sobre isso. Esse é um problema comum nas
democracias: a fixação no curto prazo. A preparação para crises sanitárias, o
aquecimento global, a educação e a desigualdade são problemas de longo prazo.
Podemos continuar um pouquinho mais, e isso não vai mudar muito. Mas, se a
gente continua um pouquinho mais, depois é mais um pouquinho. De repente,
estamos frente a frente com a mudança climática, com uma educação lamentável,
dívidas públicas enormes. Todos os problemas de longo prazo são mal
administrados pelas democracias, infelizmente.
Valor: Como introduzir o longo prazo na democracia?
Tirole: A única maneira de
conseguir uma boa administração dos problemas de longo prazo é por meio de
agências independentes, que avaliem o desempenho dos Estados nesses campos e
difundam de maneira suficientemente ampla nas populações as informações: veja,
seu Estado está cometendo erros; seu Estado está fornecendo informações
catastróficas em comparação ao país vizinho etc. A população precisa ter
informação para que a democracia funcione, porque ela deve ser ativa e se
apropriar do debate público. Caso contrário, os governos começam a se desviar,
e isso resulta em uma desconfiança da população em relação a seus governos.
Hoje essa desconfiança é muito forte, e ela cresce muito com a crise. Um dos
maiores prejuízos da crise financeira foi a perda de confiança no sistema, nos
Estados, nas políticas. Isso levou aos movimentos populistas. De um lado, há
interesses dos cidadãos pela coisa pública, mas perdeu-se interesse pelo
debate. Isso, combinado com a desconfiança das políticas e do Estado, é
devastador. Acabamos nas mãos de homens providenciais, que vendem sonhos.
Valor: O senhor começa o livro dizendo que o triunfo da
economia de mercado foi recebido com fatalismo. Em que consiste?
Tirole: É um fatalismo pela
ausência, por assim dizer. Quando as outras propostas, que muita gente via como
alternativa à economia de mercado, resultaram em totalitarismo em maior ou
menor grau, tiveram um fracasso tão previsível e tão forte, faltou educar as
pessoas. Faltou explicar que uma economia de mercado traz uma série de
benefícios, mas também tem inconvenientes. Ela permite o conforto material,
crescimento, uma certa democracia - embora não necessariamente, já que existem
economias de mercado que funcionam sem democracia, como a China. O mercado tem
muitas falhas. O erro foi passar a impressão de que a economia de mercado seria
uma panaceia. Disseram aos alemães do Leste que, com o mercado, de repente o
mundo seria maravilhoso. É verdade que a vida melhorou, mas não os preparamos
para entender que é preciso lidar com as falhas de mercado. Parte do meu livro
é justamente explicar quais são essas falhas e como lidar com elas.
Valor: Esse fatalismo persiste até hoje?
Tirole: Ouço muita gente dizendo
que é preciso mudar completamente de sociedade. Então perguntamos que tipo de
sociedade querem, e não é muito claro. Falam em parar a globalização. Isso
significa que os trabalhadores das empresas exportadoras vão ficar
desempregados. Significa que as coisas compradas da China vão custar mais caro.
Justamente no momento em que há uma recessão, seria uma segunda recessão
resultante do aumento dos preços dos bens de consumo. A questão não é
globalização ou não, nem mercado ou não. A solução é por meio da globalização e
do mercado. Mas ambos têm efeitos perversos que precisam ser combatidos. As
pessoas pensam que o mercado e a globalização são a mesma coisa que
“laissez-faire”. Mas não são. São uma liberdade combinada com intervenção
pública, sempre que há falha de mercado.
Valor: Como se chega a esse meio-termo?
Tirole: A questão é examinar as
falhas de mercado para compensá-las. São as externalidades, o meio ambiente, as
pandemias, a falta de vacinação. É a concentração de mercado. Trabalho muito
com direito de concorrência e regulamentação, motivado pelo poder de monopólio.
Desigualdade, acesso à saúde. Se não regulamentarmos, não teremos acesso à
saúde. A globalização tem muitos bons aspectos, mas outros maus. Se não
cuidarmos desses maus aspectos, tem uma reação da população contra a globalização.
As pessoas que perderam seus trabalhos no Meio Oeste americano estão sem
sustento financeiro e não podem mudar de setor. É um exemplo entre outros. Cabe
ao Estado resolver esses problemas. O Estado deve ser um árbitro, um regulador,
mas não um ator. Esta é outra coisa que as pessoas não entendem.
Valor: Na mesma época do triunfo do mercado, não só a
alternativa soviética fracassou, mas a social-democracia perdeu espaço. O que o
senhor está propondo é uma versão atualizada desse sistema?
Tirole: Sim, uma versão
atualizada da social-democracia. Temos necessidade da rede de proteção para as
pessoas: trabalho, saúde, educação etc. Uma certa redistribuição também. Por
outro lado, o papel do Estado mudou. Ele é mais regulador, menos produtor. Há
boas razões para isso. Na era da social-democrata, os “30 anos gloriosos”, o
Estado se tornou responsável por muito da produção, mas era algo relativamente
simples. Era um período de reconstrução depois da guerra. Para as empresas, era
um tempo de alcançar os Estados Unidos, onde o setor privado estava muito à
frente. Nesse cenário, uma economia um pouco planejada até que não vai mal.
Numa economia moderna, em que é preciso inovar, no sentido amplo, não só
tecnologias de ponta, mas também inovações comerciais, modelos de negócios, o
Estado não é muito bom. Ele é bom para seguir um roteiro claramente definido,
não para se ajustar a novos ambientes. Por isso, o crescimento foi rápido na
Europa nos 30 anos pós-Guerra e se tornou lento depois. Atingimos os limites do
Estado planejador. Precisamos passar a uma etapa em que o Estado seja um
regulador forte.
Valor: Passar de uma escrita para especialistas a uma
escrita para o público amplo não é uma tarefa trivial. A linguagem e o tom são
outros. Como foi esse processo para o senhor?
Tirole: De fato, não é uma
tarefa trivial. O grande público é perfeitamente capaz de entender um livro de
economia, mas a maneira de explicar tem que ser diferente. É preciso preencher
lacunas que podem ficar abertas ao escrever para especialistas. Também é
preciso fugir do jargão que usamos entre nós. Mas hoje esse esforço é
indispensável. A democracia não funciona se os especialistas não se comunicam e
não são ouvidos. Temos uma onda de populismo ao redor do mundo, e não é por
acaso que todos esses populistas são contra a ciência. Eles só podem ter o
apoio de uma maioria se a população não tem consciência do que está em jogo.
Nós, especialistas de qualquer disciplina, temos de comunicar melhor nossos
saberes para podermos ter uma democracia mais viva.
Valor: Houve uma boa recepção do livro?
Tirole: Minha impressão é que
existia uma demanda reprimida por livros como este. Quando saiu na França,
fiquei surpreso de ver que se tornou um best-seller. Eu esperava vender poucas
cópias. Isso mostra que havia um desejo de entender coisas que, a princípio,
são consideradas estranhas. As pessoas parecem pensar que a economia é
enfadonha. Mas muitas pessoas têm sede de saber, estão dispostas a aprender em
muitos campos, incluindo a economia.
Valor: No tema da concorrência, o senhor analisa a
dificuldade que haveria para dividir as grandes empresas de tecnologia, a
exemplo do que foi feito no início do século XX. Dividi-las seria desejável?
Tirole: Minha impressão é que
existia uma demanda reprimida por livros como este. Quando saiu na França,
fiquei surpreso de ver que se tornou um best-seller. Eu esperava vender poucas
cópias. Isso mostra que havia um desejo de entender coisas que, a princípio,
são consideradas estranhas. As pessoas parecem pensar que a economia é
enfadonha. Mas muitas pessoas têm sede de saber, estão dispostas a aprender em
muitos campos, incluindo a economia.
Valor: No tema da concorrência, o senhor analisa a
dificuldade que haveria para dividir as grandes empresas de tecnologia, a
exemplo do que foi feito no início do século XX. Dividi-las seria desejável?
Tirole: Desde que publiquei o
livro, refinei um pouco meu ponto de vista. De fato, não podemos regulamentar
esse setor como foi feito com empresas de eletricidade e ferrovias. Os produtos
e a tecnologia mudam muito rápido. Além disso, as empresas são globais. As
ferrovias, telecomunicações, eletricidade, eram nacionais. Como regulamentar
uma empresa internacional? Poderíamos desmembrá-las, mas isso também é difícil,
embora mais interessante. Como a tecnologia evolui rápido, teríamos que
identificar os insumos essenciais, o que não se pode duplicar. Seria um
desafio. O mais verossímil seria usar o direito da concorrência, mas
modificado.
Valor: Em que sentido?
Tirole: Não seria o caso de
mudar as leis, mas a maneira de aplicá-las. A ideia seria, para o setor da
tecnologia, ter algo intermediário entre um regulador e o direito da
concorrência. A agência de concorrência coletaria continuamente dados sobre as
empresas de tecnologia, para poder agir rápido. Ela teria mais poder de impor
medidas que impeçam, por exemplo, uma empresa de tecnologia de fazer predação
sobre um rival. O essencial seria intervir cedo no processo, para impedir
certos comportamentos. Isso poderia evitar que as grandes empresas de
tecnologia comprassem seus futuros competidores. O que proponho é inverter o
ônus da prova: dizer que se o Google e o Facebook compram startups, cabe a elas
mostrar que é pró-competição e não anticoncorrencial. Hoje, quem tem de provar
é o responsável pela concorrência.
Valor: O senhor mencionou a defasagem entre a jurisdição
das autoridades de concorrência e a atuação global das empresas. É um problema
não só na concorrência: também na taxação, na finança e outros.
Tirole: De fato. No caso da
finança, há um certo grau de cooperação internacional, embora Donald Trump
esteja tentando quebrá-la. O comitê de Basileia faz um trabalho útil. Não é o
suficiente, mas é bom. Sobre os impostos e paraísos fiscais, tem sido um
problema mesmo no interior da Europa. Quando digo que não temos Europa
suficiente, esse é um exemplo. Mesmo aqui, não conseguimos entrar em acordo
sobre os paraísos fiscais. No direito da concorrência, precisamos retirar seu
caráter político. Em casos que envolvem empresas europeias e americanas, por
exemplo, as autoridades muitas vezes tentam colaborar, compartilhando
informações. Mas o caso chega na esfera política, e uma ligação telefônica
entre Trump e os líderes europeus interrompe tudo. Acaba a colaboração
internacional.
Valor: O senhor comenta
que a pandemia pode dar impulso às medidas contra a mudança climática. De onde
vem esse impulso?
Tirole: As
políticas antiaquecimento são difíceis de colocar em prática quando a população
não está de acordo. Tivemos a experiência, na França, da taxa de carbono, que
era boa, embora tivesse muitos furos, como um queijo suíço. Agricultores, companhias
aéreas, táxis e motoristas de caminhão não pagariam. Com os coletes amarelos,
vimos que a população se opunha. É preciso que a população se aproprie desse
tema. Meu medo é que, ao sairmos desta crise sanitária com uma enorme recessão
e o poder de compra diminuído, será o momento de dizer às pessoas, como temos
mesmo de dizer, que vamos combater o aquecimento global. Elas podem responder
que só se interessam pelo curto prazo. É preciso fazê-las entender que não
temos mais tempo de atrasar o combate à mudança climática. Se não fizermos
agora, vai ser uma catástrofe. Exigir esforços de pessoas que já estão fazendo
esforços é difícil. Espero, pelo menos, que possamos aproveitar a crise para
mudar as mentalidades. Tomar o coronavírus como um exemplo em que não
preparamos o futuro. Estávamos despreparados para esta crise sanitária. É claro
que não podemos nos preparar para todos os vírus, mas podemos fazer melhor do
que fizemos. É preciso parar de viver no curto prazo.
Valor: No livro, o senhor afirma que o direito do
trabalho deve estar focalizado em proteger o trabalhador, não o emprego. Como é
essa proteção no século XXI, tempo de relações trabalhistas mais flexíveis?
Tirole: O Estado não tem
informação, não é competente para saber quais empregos se justificam. É melhor
proteger os trabalhadores, que não necessariamente são responsáveis por
sofrerem demissão, em vez de proteger o emprego, o que custaria caro à
sociedade. A excessiva flexibilização, porém, é má compreensão da economia de
mercado, como se ela fosse “laissez-faire” completo. Como nos Estados Unidos,
na Inglaterra e em alguns países emergentes, que não protegem os assalariados e
os empregadores podem fazer o que quiser. Até recentemente, ao contrário, na
França e outros países, o Estado estava por todo lado, decidindo se a empresa
podia demitir ou deixar de demitir um empregado. Mesmo se não houvesse demanda
pelo produto que ele fabricava, era visto como anormal mandá-lo embora. Mesmo
se fosse incompetente ou não tivesse mais trabalho na empresa, um juiz
intervinha para impedir a demissão, o que não faz o menor sentido. Há uma
alternativa intermediária, nem o “laissez-faire”, muito ruim para o assalariado,
nem o intervencionismo absoluto.
Valor: De que se trata?
Tirole: [O economista] Olivier
Blanchard e eu propusemos, há 20 anos, um sistema “bonus/malus”, parecido com o
princípio do poluidor pagador, que consiste em responsabilizar a empresa pelas
consequências da demissão. Isso é importante em um país como a França, onde as
empresas são muito pouco responsabilizadas. Emmanuel Macron adotou o
“bonus/malus” na França, e penso que pode ser adotado em todos os países.
Responsabilizando a empresa, ela é forçada a pensar duas vezes antes de mandar
alguém embora, mas ao mesmo tempo tem uma certa flexibilidade. Quando é
indispensável, pode-se dispensar o empregado. Caso contrário, o emprego é
mantido.
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