Boaventura de Sousa Santos*
Os debates culturais, políticos e ideológicos do nosso tempo têm uma
opacidade estranha que decorre da sua distância em relação ao cotidiano
vivido pela grande maioria da população, os cidadãos comuns – “la gente
de a pie”, como dizem os hispano-americanos. Em particular, a política,
que devia ser a mediadora entre as ideologias e as necessidades e
aspirações dos cidadãos, tem vindo a demitir-se dessa função. Se mantém
algum resíduo de mediação, é com as necessidades e aspirações dos
mercados, esse mega-cidadão informe e monstruoso que nunca ninguém viu,
nem tocou ou cheirou, um cidadão estranho que só tem direitos e nenhum
dever. É como se a luz que ele projetasse nos cegasse. De repente, a
pandemia irrompe, a luz dos mercados empalidece e da escuridão, com que
eles sempre nos ameaçam se não lhe prestarmos vassalagem, emerge uma
nova claridade. A claridade pandêmica e as aparições em que ela se
traduz. O que ela nos permite ver e o modo como for interpretado e
avaliado determinarão o futuro da civilização em que vivemos. Estas
aparições, ao contrário de outras, são reais e vieram para ficar.
A pandemia é uma alegoria. O sentido literal da pandemia do
coronavírus é o medo caótico generalizado e a morte sem fronteiras
causados por um inimigo invisível. Mas o que ela exprime está muito para
além disso. Eis alguns dos sentidos que nela se exprimem. O invisível
todo poderoso tanto pode ser o infinitamente grande (o deus das
religiões do livro) como o infinitamente pequeno (o vírus). Em tempos
recentes, emergiu um outro ser invisível todo poderoso, nem grande nem
pequeno porque disforme: os mercados. Tal como o vírus, é insidioso e
imprevisível em suas mutações, e, tal como deus (Santíssima Trindade,
encarnações), é uno e múltiplo. Exprime-se no plural mas é singular. Ao
contrário de deus, o mercado é onipresente neste mundo e não no
mundo do além, e, ao contrário do vírus, é uma bendição para os
poderosos e uma maldição para todos os outros (a esmagadora maioria dos
humanos e a totalidade da vida não humana). Apesar de onipresentes,
todos estes seres invisíveis têm espaços específicos de acolhimento: o
vírus, nos corpos; deus, nos templos; os mercados, nas bolsas de
valores. Fora desses espaços, o ser humano é um ser sem abrigo
transcendental.
Sujeitos a tantos seres imprevisíveis e todo-poderosos, o ser humano
e toda a vida não humana de que depende são iminentemente frágeis. Se
todos estes seres invisíveis continuarem ativos, a vida humana será, em
breve (se o não é já) uma espécie em extinção. Está sujeita a uma ordem
escatológica e aproxima-se do fim. A intensa teologia que é tecida à
volta dessa escatologia contempla vários níveis de invisibilidade e de
imprevisibilidade.
O deus, o vírus e os mercados são as formulações do último reino, o
mais invisível e imprevisível, o reino da gloria celestial ou da
perdição infernal. Só ascendem a ele os que se salvam, os mais fortes
(os mais santos, os mais jovens, os mais ricos). Abaixo desse reino está
o reino das causas. É o reino das mediações entre o humano e o não
humano. Neste reino, a invisibilidade é menos rarefeita, mas é produzida
por luzes intensas que projetam sombras densas sobre esse reino. Este
reino é composto por três unicórnios. Sobre o unicórnio escreveu
Leonardo da Vinci: “O unicórnio, através da sua intemperança e
incapacidade de se dominar, e devido ao deleite que as donzelas lhe
proporcionam, esquece a sua ferocidade e selvageria. Ele põe de parte a
desconfiança, aproxima-se da donzela sentada e adormece no seu regaço.
Assim os caçadores conseguem caçá-lo.” Ou seja, o unicórnio é um todo
poderoso, feroz e selvagem que, no entanto, tem um ponto fraco, sucumbe à
astúcia de quem o souber identificar.
Desde
o século XVII, os três unicórnios são o capitalismo, o
colonialismo e o patriarcado. São os modos de dominação
principais. Para dominarem eficazmente têm de ser, eles próprios,
destemperados, ferozes e incapazes de se dominar, como adverte Da
Vinci. Apesar de serem onipresentes na vida dos humanos e das
sociedades, são invisíveis na sua essência e na essencial
articulação entre eles. A invisibilidade decorre de um sentido
comum inculcado nos seres humanos pela educação e pela doutrinação
permanentes. Esse sentido comum é evidente e é contraditório ao
mesmo tempo. Todos os seres humanos são iguais (afirma o
capitalismo); mas, como há diferenças naturais entre eles, a
igualdade entre inferiores não pode coincidir com a igualdade entre
os superiores (afirmam o colonialismo e o patriarcado). Este sentido
comum é antigo e foi debatido por Aristóteles, mas só a partir do
século XVII entrou na vida das pessoas comuns, primeiro na Europa e
depois em todo o mundo.
Ao contrário do que pensa Da Vinci, a ferocidade destes três
unicórnios não assenta apenas na força bruta. Assenta também na astúcia
que lhes permite desaparecer quando continuam vivos, ou parecer fracos
quando permanecem fortes. A primeira astúcia revela-se em múltiplas
artimanhas. Assim, o capitalismo pareceu que tinha desaparecido numa
parte do mundo com a vitória da Revolução Russa. Afinal, apenas hibernou
no interior da União Soviética e continuou a controlá-la a partir de
fora (capitalismo financeiro, contra-insurgência). Hoje em dia, o
capitalismo consegue a sua maior vitalidade no seio do seu maior inimigo
de sempre, o comunismo, num país que em breve será a primeira economia
do mundo, a China. Por sua vez, o colonialismo dissimulou desaparecer
com as independências das colônias europeias, mas, de fato, continuou
metamorfoseado de neocolonialismo, imperialismo, dependência, racismo,
etc. Finalmente, o patriarcado induz a ideia de estar moribundo ou
enfraquecido em virtude das vitórias significativas dos movimentos
feministas nas últimas décadas, mas de fato a violência doméstica, a
discriminação sexista e o feminicídio não cessam de aumentar. A segunda
astúcia consiste em surgirem capitalismo, colonialismo e patriarcado
como entidades separadas que nada têm a ver umas com as outras. A
verdade é que nenhum destes unicórnios em separado tem poder para
dominar. Só os três em conjunto são todo-poderosos. Ou seja, enquanto
houver capitalismo, haverá colonialismo e patriarcado.
O terceiro reino é o reino das consequências. É o reino em que os
três poderes todo-poderosos mostram a sua verdadeira face. É esta a
camada que a grande maioria da população consegue ver, embora com alguma
dificuldade. Este reino tem hoje duas paisagens principais onde é mais
visível e cruel: a escandalosa concentração de riqueza / extrema
desigualdade social; a destruição da vida do planeta / iminente
catástrofe ecológica. É ante estas duas paisagens brutais que os três
seres todo-poderosos e suas mediações mostram aquilo a que nos conduzem
se continuarmos a considerá-los todo-poderosos. Mas serão eles
todo-poderosos? ou a sua onipotência é apenas o espelho da induzida
incapacidade dos humanos de os combater? Eis a questão.
A
realidade à solta e a excepcionalidade da exceção. A pandemia
confere à realidade uma liberdade caótica e qualquer tentativa de a
aprisionar analiticamente fracassa porque a realidade vai sempre
adiante do que pensamos ou sentimos sobre ela. Teorizar ou escrever
sobre ela é pôr as nossas categorias e a nossa linguagem à beira
do abismo. Como diria André Gide, é conceber a sociedade
contemporânea e a sua cultura dominante em modo de mise en abyme.
Os intelectuais são os que mais deviam temer esta situação. Tal
como aconteceu com os políticos, os intelectuais também deixaram,
em geral, de mediar entre as ideologias e as necessidades e as
aspirações dos cidadãos comuns. Mediam entre si, entre as suas
pequenas-grandes divergências ideológicas. Escrevem sobre o mundo,
mas não com o mundo. São poucos os intelectuais públicos, e também
estes não escapam ao abismo destes dias.
A geração que nasceu ou cresceu depois da Segunda Guerra Mundial
habituou-se a ter um pensamento excepcional em tempos normais. Perante a
crise pandêmica, têm dificuldades em pensar a exceção em tempos
excepcionais. O problema é que a prática caótica e fugidia dos dias foge
à teorização e exige ser entendida em modo de sub-teorização. Ou seja,
como se a claridade da pandemia criasse tanta transparência que nos
impedisse de ler e muito menos de reescrever o que fôssemos registrando
na tela ou no papel. Dois exemplos. Logo no irromper da crise pandêmica
Giorgio Agamben insurgiu-se contra o perigo da emergência de um Estado
de exceção. O Estado, ao tomar medidas de vigilância e de restrição da
mobilidade sob o pretexto de combater a pandemia, adquiriria poderes
excessivos que poriam em causa a própria democracia. Esta advertência
faz sentido e foi premonitória em relação a alguns países, nomeadamente a
Hungria. Mas foi escrita num momento em que os cidadãos, tomados de
pânico, constatavam que os serviços nacionais de saúde não estavam
preparados para combater a pandemia e exigiam que o Estado tomasse
medidas eficazes para evitar a propagação do vírus. A reação não se fez
esperar e Agamben teve de voltar atrás. Ou seja, a excepcionalidade
desta exceção não lhe permitiu pensar que há exceções e exceções e que,
em face disso, teremos de distinguir no futuro, não apenas entre Estado
democrático e Estado de exceção, mas também entre Estado de exceção
democrático e Estado de exceção anti-democrático.
O segundo exemplo diz respeito a Slavoj Zizek que na mesma altura
previu que a pandemia apontava para o “comunismo global” como única
solução futura. A proposta vinha no seguimento das suas teorias em
tempos normais, mas era inteiramente descabida em tempo de exceção
excepcional. Também ele teve de voltar atrás. Por muitas razões, tenho
defendido que o tempo dos intelectuais de vanguarda acabou. Os
intelectuais devem aceitar-se como intelectuais de retaguarda, devem
estar atentos às necessidades e às aspirações dos cidadãos comuns e
saber partir delas para teorizar. Doutro modo, os cidadãos estarão
indefesos perante os únicos que sabem falar a sua linguagem e entender
as suas inquietações. Em muitos países esses são os pastores evangélicos
conservadores ou os imãs do islamismo radical, apologistas da dominação
capitalista, colonialista e patriarcal.
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* Doutorado em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale e Professor
Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de
Coimbra. Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
e Coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça
Portuguesa.
Fonte: https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/o-virus-transparente-e-os-unicornios-invisiveis/
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